Estamos em 1970.
Em Março,
com cerca de um ano e meio de comissão cumprida como elemento da Esquadra
Operacional do AB4, sou destacado para o Cuito Cuanavale para pilotar um
Dornier DO-27 de Luanda, o 3498. O mecânico (MMA) também é da BA9. A missão era
dar apoio ao batalhão do exército e à companhia de Comandos lá colocada, fazendo
as evacuações, reconhecimentos e transportes que fossem pedidos ao comandante
do destacamento, geralmente um capitão (piloto) da esquadra 94 de Luanda. Foi
um longo destacamento – desde 17 de Março a 23 de Maio – recheado de incidentes
e até de um acidente rodoviário que determinou a minha evacuação e a do
mecânico, o 1º Cabo MMA Carvalho da BA9, para Luanda.
Depois disso, passado cerca de mês e meio, estava
havia 15 dias em Gago Coutinho quando sou de novo destacado para o Cuito
Cuanavale, desta vez com um avião e mecânico do AB4. No dia 4 de Julho faço uma
evacuação para o Luso e depois sigo para Henrique de Carvalho. No dia seguinte,
a 5 de Julho, juntamente com o 1º Cabo MMA José Sampaio, inicia-se uma longa viagem
de seis horas e meia para as terras do
fim do mundo no DO 3413, com escalas
em Cangamba e Gago Coutinho.
Para mim, com mais de 850 horas de voo registadas e já
a pensar no fim da comissão, que estava a uns três meses de distância,
tratava-se de cumprir mais uma missão numa zona que me agradava e que já
conhecia bastante bem. Para além do tempo que lá tinha passado destacado com um Dornier, também lá efectuara várias operações com T-6.
O destacamento do Cuito Cuanavale em 1970 - foto de Gonçalo de Carvalho |
No Cuito Cuanavale
havia também um posto de rádio permanente dos primos (os sul-africanos), onde se bebiam umas cervejas e se ouvia
boa música. Para o MMA José Sampaio, o Cuito Cuanavale era o seu primeiro
destacamento .
Sampaio e o 3413 em 12 de Julho 1970
|
Depois da chegada seguiu-se um período de lazer! Só passados seis dias, a 11, houve uma missão: um TGER ao Lupire, uma
pequena localidade, a nordeste, a cerca de meia hora de voo de distância. E no
dia seguinte, 12 de Julho de 1970, surgiu um pedido de evacuação para Serpa
Pinto.
Tratava-se de um soldado ferido, com fractura do
cóccix, que seguia em maca. Era mais um dia normal naquela guerra em que fomos
envolvidos e que se traduzia no transporte de um camarada do exército para o hospital
onde poderia receber tratamento adequado. O único motivo de preocupação era
mesmo a saúde do evacuado.
O percurso do Cuito Cuanavale para Serpa Pinto – ou
Menongue, o seu nome original – a cerca de cinquenta minutos de voo no Dornier,
não apresentava quaisquer dificuldades. Toda a região é mais ou menos plana,
com vegetação pouco densa e atravessada por quatro rios que correm de norte
para sul. Mais ou menos a meio caminho, um pouco para a direita, existia a
localidade de Longa , junto ao rio
com o mesmo nome, com uma boa pista onde já estivera várias vezes.
Pista de Longa 07Abr70 - foto de Gonçalo de Carvalho |
Carta Aeronáutica usada em Angola |
Nessa altura as cartas de navegação distribuídas aos pilotos, Carta Aeronáutica do Mundo, na escala 1:1.000.000 , não tinham pormenores e praticamente só mostravam os cursos de água e as picadas mais importantes. E ajudas rádio simplesmente não existiam. Em qualquer viagem era preciso confiar que não se iriam encontrar ventos laterais fortes e que, ao fim de determinado tempo, o destino estaria à vista. As cartas que os sul-africanos levaram mais tarde para Angola, na escala 1: 500.000, tinham mais pormenores e colorido, permitindo uma navegação-terreno mais segura.
Carta 1: 500.000 que os sul-africanos
levaram para Angola.
|
Tudo
normal, aproximávamo-nos do destino sem problemas. Atrás, o ferido gemia com
alguma regularidade e nós apenas podíamos dizer-lhe que já estávamos perto do
destino. Por baixo o terreno ia passando, fazia-se a contagem dos rios e em breve o destino seria avistado. Corria tudo
bem mas, de repente, a pacatez terminou. O motor do Dornier começou a vibrar
com bastante intensidade, os ponteiros de todos os relógios a oscilar e as rotações a baixar e acendeu-se a luz avisadora
de incêndio. Era uma EMERGÊNCIA.
Não
me devo ter preocupado muito na altura pois já tivera várias situações
semelhantes embora nunca as vibrações tivessem sido tão pronunciadas. Os
motores do Dorniers por vezes pregavam alguns sustos mas geralmente tudo se
resolvia efectuando alguns procedimentos. Já passaram muitos anos e a memória
desses momentos não está muito fresca. Mas suponho que foram efectuados todos
os procedimentos recomendados, como ligar a bomba de gasolina (ON), mudar o
selector de depósito do combustível e pôr a mistura em rica. Depois, como o problema persistia, era procurar um local onde
poisar o estojo, de preferência sem
nos partirmos. O motor vibrava cada vez mais, com tal força que parecia que ia
saltar do seu berço. E essa parte ainda está bem presente na minha memória,
embora não me recorde do facto de o motor ter parado, conforme me lembrou
recentemente o José Sampaio.
Ainda
segundo o seu relato, mantivemos sempre toda a calma e o nosso passageiro, o
ferido na maca, nem sequer terá percebido o que se passava.
Já
estávamos muito perto de Serpa Pinto, onde queríamos chegar. Lembro-me bem de
ter avistado uma picada à nossa frente e ligeiramente para a esquerda. Tinha
algumas curvas pouco pronunciadas e do lado direito havia uma barreira. Não
seria fácil colocar lá o Dornier, mas não havia alternativa. Ou será que havia?
Nessa altura vi do lado direito e um pouco mais distante, uma mancha branca que
me pareceu outra picada e foi para aí que decidi ir na esperança de ser uma
melhor alternativa para a aterragem de emergência. Quanto a altitude pareceu-me
que seria suficiente para chegarmos lá.
E
assim aconteceu. A mancha branca não era uma picada mas sim a nova pista de
Serpa Pinto em construção e, por ser domingo, não havia pessoal nem máquinas no
caminho, apenas alguns montes de terra que não representavam grande problema. A
pista estava numa fase adiantada da sua construção e, que maravilha, nós
encontrávamo-nos no seu enfiamento. Foi portanto como se o Dornier estivesse
numa final longa. Conseguimos chegar até lá e a aterragem fez-se sem qualquer
problema, como se pode ver pela foto anexa.
O 3413 depois da aterragem com o ferido ainda no interior - foto de Gonçalo de Carvalho |
O local estava deserto. Era necessário que nos viessem buscar e levar o ferido para o hospital.
Pedi ao José Sampaio que fosse até à cidade, ao quartel, pedir assistência. Era necessária uma ambulância para o ferido, transporte para a tripulação e montar guarda ao avião. Eu
fiquei junto ao Dornier, fui falando com o ferido que parecia não fazer ideia do
que se passava e que pedia insistentemente água. Dizia-lhe apenas para esperar
um pouco e que em breve seria transportado para o hospital.
O DO já depois de ter sido levado o ferido na ambulância - foto de e com Gonçalo Carvalho |
Passado algum tempo, que me pareceu uma eternidade, lá apareceram os socorros. O José Sampaio, depois do corta-mato até à cidade, ajudou a tirar o ferido do avião que seguiu depois numa ambulância e nós, depois de arrumar o Dornier seguimos para a cidade. Contactado o AB4, perante a descrição dos sintomas do motor, foi decidido a sua substituição. O Lycoming parecia ter gripado.
No
dia seguinte, 13 de Julho, chega a Serpa Pinto um Dornier pilotado pelo Fur.Mil.Pil.
Miguel Abecassis com o 1º.Cabo MMA António Nogueira e o Sarg. Ajudante MMA Murta
com um motor operacional para o 3413. De Gago Coutinho vem um ALIII pilotado
pelo Fur.Mil.Pil. José Lopes, com o 1º. Cabo MELEC Camilo Morgado para colaborar
na sua montagem.
A
substituição do motor foi feita pelo José Sampaio, António Nogueira e Camilo
Morgado em cerca de uma semana, na pista em construção, num local ermo sob a
guarda dos militares do Batalhão de Cavalaria 2870 e com o auxílio de um
guincho montado num Unimog do Exército. Terão sido necessários muitos esforços
e muito improvisação mas, com profissionais daquele calibre, em poucos dias o
3413 fazia os voos de experiência e estava de novo operacional.Estava
resolvida a EMERGÊNCIA. Não assisti à
reparação do Dornier.
Registo do voo na caderneta - foto de Gonçalo Carvalho |
De acordo com a recolecção do José Sampaio, eu terei
partido para Henrique de Carvalho com o avião que tinha vindo do AB4 com o novo
motor, transportando o Ajudante Murta, mas na minha caderneta de voo nada
consta. Depois do dia da aterragem de emergência, dia 12, apenas está
registada actividade a partir de 16, já em Gago Coutinho, o que significa que
fui enviado para esse destacamento.
Relativamente
ao DO 3413, o Miguel Abecassis no dia 20, já montado o novo motor, fez um voo
de experiência e depois seguiu para o Cuito Cuanavale transportando a equipa
que fizera a substituição: MMA José Sampaio, MMA António Nogueira e MELEC Camilo
Morgado. Abecassis e Sampaio ficaram destacados no Cuito Cuanavale.
Não
posso deixar de mencionar que durante o tempo que passámos em Serpa Pinto contámos
com todo o apoio logístico por parte do Comandante do Batalhão de Cavalaria
2870, o Tenente-Coronel Francisco José de Morais. Inicialmente, quando o José
Sampaio lhe pediu assistência em material e alojamento para o pessoal envolvido
na operação, ele mostrou-se surpreendido com a juventude do seu interlocutor,
mas tudo fez para que nada faltasse. Um
facto estranho, no meio de tudo isto, foi estarem a construir uma pista, que
seria para o novo aeroporto da cidade, sem que o piloto destacado no Cuito
Cuanavale tivesse conhecimento disso. A ignorância desse facto podia ter ditado
uma aterragem de emergência na picada avistada em primeiro lugar, com
consequências mais desagradáveis.
Mas o que fica para a História é que o DO-3413 deve ter sido o primeiro avião a aterrar na nova pista de Serpa Pinto e portanto posso afirmar que fomos nós que estreámos o novo aeroporto de Serpa Pinto, que agora se chama Menongue.
Mas o que fica para a História é que o DO-3413 deve ter sido o primeiro avião a aterrar na nova pista de Serpa Pinto e portanto posso afirmar que fomos nós que estreámos o novo aeroporto de Serpa Pinto, que agora se chama Menongue.
Na data encontrava-me em Serpa Pinto (Menongue), onde chegara em 6 de maio de 1969 e saíra para a Fazenda Tentativa em Outubro de 1970. Na construção da pista nova e no apoio à recuperação da DO 3413 esteve o Sargento Manel Mourão Soares, da «ferrugem», e a sua plural equipa, sob o comando do Major Ló e do Cmdt Francisco José de Morais, todos, em articulação com a Companhia de Engenharia alojada no quartel comando de Sector. Fiz algumas «viagens» em DO entre Menongue (Serpa Pinto) e Cuito Cuanavale e vive-versa, não tendo memória dos nomes do pessoal da FAP mas guardando a ideia que descreves - sobrevôo à vista dos acidentes orográficos, nomeadamente os rios, picadas e povoados de que gostava de dar palpites... além de algumas «habilidades aéreas» para impressionar «maçaricos e espertalhões»... Obrigado FAP... (?)
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