sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

FUMO PRETO



AR Luso sem precisar data mas terá sido em finais de 73 ou início de 74. Um qualquer dia a meio da tarde estávamos uns quantos a assistir a uma saída de dois T6 completamente municiados a fim de mais uma missão. Eram pilotados por um furriel cujo nome não lembro o outro pelo alferes Vinhas, rolaram para a pista, o primeiro a levantar foi o furriel com uma descolagem normal, a segunda descolagem também começou bem mas, após alguns metros de altitude o avião começou a expelir fumo preto a perder altitude até ao contacto com o chão ficando imóvel muito para lá da pista em zona de terra e vegetação. Os nossos bombeiros acorreram de imediato verificando que o alferes Vinhas já corria em passo acelerado afastando-se do avião. Devido ao estado emocional, o Vinhas esteve algum tempo sem conseguir falar. No dia seguinte já estava de novo rodas no ar, eram assim os nossos pilotos.
Por: António Pereira

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

FIM DE IMPÉRIO - Descolonizar Angola (PARTE II)



Aproveito a oportunidade para transcrever um emotivo relato de um dos nossos cabos especialistas que, encontrando-se na cidade, foi apanhado naquela turbulência (693)

O 12 de junho de 1975 foi de facto o despertar para um "fim" que se sabia calendarizado, mas não tão rápido e violento. A cidade foi varrida, por quase 30 horas de "guerra civil" e nos dias-semanas seguintes as noites eram escuras, fora da Base, e tracejadas por morteiros e projéteis que, vistos de longe, assustavam. Descolar e aterrar eram, contudo, rotinas sem grandes condicionantes. 
Pessoalmente, a minha noite de 12-13 de junho e todo o resto do dia foram passados deitado numa banheira da casa de banho, pois "fui apanhado" em plena cidade e pude refugiar-me numa das casas que a FA ali tinha (Bairro). Horríveis 30 horas, pois não se adivinhava o que estaria a acontecer em redor. Só uma operação feita por Comandos do ME nos evacuou para o AB 4. 
A destruição, com mortos à mistura (a maioria dos 3 "Movimentos" envolvidos), era imensa e foi aí a debandada dos civis para perto dos "aviões" na ânsia de sair e de ter mais (aparente) proteção. 
A enfermaria da Base parecia um bloco operatório, porque não uma morgue, aonde chegavam também feridos de outras localidades. Era um caos absoluto. Talvez dos locais mais assustadores, quando se olha para trás. Um comandante da FNLA, recordo, apareceu em maca, consciente, com um grande "buraco" num dos ombros, tapado com uma rolha de papel.… imagens que não saem. ...

Transcreve-se ainda parte do depoimento, de outro militar do AB 4 (694)

Os Movimentos de Libertação decidiram "digladiar-se" pela conquista da cidade de Henrique de Carvalho, aliás como o vinham fazendo por outras cidades, nomeadamente em escaramuças em Luanda desde março e em especial em Malange, onde também houve tiroteios.
Além da noite de 12 para 13 de junho referida, em 16 de julho, volta a haver nova disputa pelo território, com violentos tiroteios entre o MPLA e a FNLA durante cerca de 18 a 20 horas e foi de novo redobrada a vigilância em todos os postos da Unidade e Rondas.

A 13 de junho, após a tormenta, as famílias dos militares começaram a ser evacuadas e concentradas nas instalações do AB 4. Mas, perante essa retirada, a população civil (brancos e negros) dirigiu-se para a nossa unidade em busca de abrigo. Tarefa hercúlea, na qual colaborei, a de alojar centenas de pessoas em hangares, armazéns e outros edifícios, distribuir colchões e cobertores, gente dispersa por todo o lado. A enorme cozinha e os refeitórios funcionavam da madrugada ao anoitecer, recorrendo aos géneros que tínhamos em depósitos e câmaras frigoríficas, mesmo assim insuficientes para acudir a todos. 
Edificio do Comando e alojamentos
Mas já não era possível albergar mais gente. Os retardatários, vindos de mais longe, chegando em automóveis, carrinhas de caixa aberta e camionetas, foram-se instalando fora do arame farpado, em redor da porta de armas, em busca de proteção. Nos dois dias seguintes, ainda se ouvia o fragor de combates dispersos. Depois, os civis começaram a abandonar a segurança da manu militari, em busca dos seus espaços e haveres.
E pensávamos que, com a tormenta terminada, o vencedor MPLA seria além de invencível na guerra, magnânimo na vitória e respeitaria o vencido.
Contudo, exigiram ao comandante do AB 4 a entrega dos adversários feridos, que haviam sido recolhidos na cidade e se encontravam a ser tratados na nossa enfermaria, exigência que foi rejeitada. Humanidade e tolerância não existiam no léxico daqueles valentões. Tornava-se imperioso impedir que os pressupostos do anticolonialismo e as razões subjacentes à luta de libertação justificassem todo o tipo de condutas, incluindo as execuções sumárias. Infelizmente, os Movimentos, ávidos de poder, eram pródigos em discursos e promessas, mas, como diz o povo, de promessas está o mundo cheio. Porém, as confrontações e os ajustes de contas entre eles, causaram milhares de vítimas em Angola e indizível sofrimento às populações.
Nos meses seguintes, os militares da Força Aérea em serviço no AB 4 continuaram a ser evacuados para Luanda. Em fins de agosto de 1975, já eram menos de cinquenta. A unidade, entretanto, tinha sido ocupada pelos homens do Batalhão de Cavalaria 8322, que aí se mantiveram até efetuarem a transferência das instalações para o MPLA.
Minha mulher, quando lhe foi pedido, em 2008, ou seja, trinta e três anos depois, para descrever o acontecido em Henrique de Carvalho na noite de Santo António de 1975, escreveu um trecho que foi publicado numa obra coletiva, do qual respigo algumas passagens (696)

Angola, Henrique de Carvalho, 12 de junho de 7975, 18 horas. 
E subitamente a guerra rebentou! Terrível, ensurdecedora, inequívoca, imediata. Por detrás do nosso jardim, fora uma ala do hospital atingida por morteiros. Baixando-me e baixando-as, corremos para a única parte da casa que não tinha vidros, um corredor para onde o meu marido, chegado há pouco tempo, nos puxava e tentava acalmar o choro das duas garotas, estonteadas pelo barulho e pela urgência. 
Depois... foi o escuro, a loucura absoluta, as histórias que eu tentava murmurar para acalmar as miúdas, os clarões repentinos que nos iluminavam, os estrondos do mundo a desfazer-se, as granadas que eu temia caírem-nos em cima, o uivo luminoso das balas tracejantes, os gritos de ordens e desordens da turba em guerra fratricida: MPLA contra UNITA, MPLA contra FNLA, UNITA contra FNLA. E tudo vomitava fogo imprevisível, e o tempo era comprido, as metralhadoras furavam paredes, estilhaçavam vidros e as garotas não adormeciam... 
Tinham fome e medo e uma delas queria a mãe; em determinado momento, o meu marido, a arrastar-se foi buscar alimentos e apagar o fogão que enchera a casa de cheiros e teve também de ir até à parede comum às duas vivendas e bater com força. Esperámos e ouvimos batidas do lado oposto, a miúda acalmou um pouco. 
Depois adormeceram, cansadas de chorar e agarradas a nós que nos agarrávamos à fé. A esperança de que se matassem todos, que o pesadelo terminasse e novamente se ouvissem grilos, se pudesse olhar as estrelas, cheirar a terra nessa África fantástica de noites intensas e misteriosas. 
Eu também queria chorar e não podia e fugir se houvesse um escape. Mas não, eles, todos, não sei quantos, estavam ali à volta, a brincar com a morte, desprezando a vida, carregando ódios, executando vinganças ancestrais de tribos contra tribos, de etnias, concretizando sonhos de autoridade, ilusão resultante do poder das armas. 
Após algumas horas do início (temporário) das tréguas e depois dos militares portugueses haverem recolhido feridos e moribundos, transportando-os para a enfermaria da Base Aérea, a oito quilómetros da cidade, onde no dia seguinte se apresentaram intrépidos e conscientes guerrilheiros, armados até aos dentes, em missão de acerto de contas, exigindo a entrega dos inimigos agonizantes... 
Não pude colher, no jardim, as rosas de porcelana que floriam num canteiro, com violetas africanas, rodeado de ananaseiros e tive pena. E ainda mais me lembrei delas quando, poucos dias decorridos, novamente se viu ao longe, o céu da noite de Henrique de Carvalho fervilhar de explosões, riscado do horror da loucura assassina... por certo espezinharam as minhas rosas!...

Presto aqui as devidas homenagens aos militares com os quais convivi e enfrentaram estes tempos conturbados, sabendo respeitar valores e tomar decisões equilibradas, apesar da emergência das situações (697)
Uma referência muito especial para o alferes Victor Nunes que serviu como meu adjunto e em todas as circunstâncias manifestou lealdade e cooperação exemplares
(698)
À minha geração haviam sido pedidos dois esforços hercúleos, o de aguentar com a defesa do império, nos anos sessenta e setenta, e o de superintender às sequelas do seu abandono. 

4. Paraíso Perdido

Em junho de 1975, fui colocado em Luanda, na Base Aérea n°. 9, tendo os meus familiares regressado a Lisboa. Aí tive a prerrogativa de continuar a trabalhar e a conviver com outros camaradas, num período de confrontações e instabilidade permanente (700)

Nota dos Editores: o nosso reconhecido agradecimento ao Sr. Major-General ADMAER da FAP Manuel de Campos Almeida, por nos ter permitido publicar este excerto da sua obra.








Adendas:
693 e 694 - Relato recolhido no Blog
696 - Maria Teresa de Campos Almeida. In A mulher Portuguesa na Guerra e nas Forças Armadas. Ed. Liga dos Combatentes, 2008, pp 81 e seguintes.
697 - Entre eles, os majores João Carlos Oliveira e Fausto Cruz, os capitães José Bernardo Fermeiro e António Várzea, o tenente Pereira e o sargento Fartura.
698 - Natural de Alviobeira, concelho de Tomar. Recordo também a sua mulher, Maria Teresa Nunes, com quem mantivemos fortes relações de amizade.
700 - Destes destaco os tenentes-coronéis Velho da Costa e Feliciano Gomes, os capitães Mendonça Carvalho, Manuel António Melo, Mendes Barbas, Vitor Costa, Tavares de Lima e Vale de Gato, os alferes Antunes Moreira e Joaquim Rodrigues e o sargento Rafael Meireles.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

FIM DE IMPÉRIO - Descolonizar Angola (PARTE I de II)


No primeiro trimestre de 1975 entrou em execução o Plano Secreto de Operações da 2ª. Região Aérea, designado Luz Verde, conforme o que havia sido estipulado nos conciliatórios Acordos de Alvor de 15 de janeiro de 1975.
O AB4 em 1970. O aeródromo, rodeado de savana, 
ocupava um rectângulo com mais de 2Km de 
comprimento
Para o AB 4, estabelecia a extinção de todos os seus Aeródromos de Manobra e de Recurso, a redução progressiva dos seus efetivos e a manutenção de uma Esquadra de Voo com 6 DO-27, 1 C-47 e 3 AL III. A desativação da Base de Henrique de Carvalho estava prevista para 30 de agosto, sendo instalações, materiais e equipamentos entregues às Forças Militares Angolanas.
AB4 2/2/1975. Vindo da Zâmbia e recebido pelo
Gov. da Lunda Cor. Leandro, Maj. João Oliveira
do AB4 e elementos do MPPLA
Agostinho Neto regressou a Angola, através do AB 4, num domingo, 2 de fevereiro de 1975. Foi recebido com as deferências devidas, prestadas pelo MPLA e seus apoiantes. Todavia, o comandante não autorizou cerimónias no interior da unidade. De facto, num dos topos da pista, estava instalada a aerogare destinada ao trânsito de aviões civis, respetivos serviços de apoio e placa de estacionamento. E foi aí que foi recebido Agostinho Neto, pelos seus homens. 
Posteriormente, foi convidado a visitar o Clube de Oficiais, tendo sido acompanhado pelos seus seguranças e por militares portugueses, transparecendo, contudo, algum nervosismo na sua comitiva. A sua entrada oficial em Luanda deu-se na manhã de 4 de fevereiro (678). O simbolismo da data escolhida é por demais evidente. De facto, foi na madrugada desse dia, em 1961, que nacionalistas angolanos desencadearam uma série de emboscadas e assaltos na cidade (679)
O processo de desativação de todo o leste desenvolveu-se conforme o planeado, com a retirada do material e pessoal da F Aérea e sua concentração no AB 4, seguindo, depois, para Luanda. Nos fins de março de 1975, no dispositivo da F Aérea do leste de Angola, estavam totalmente desativados os Aeródromos de Camaxilo, Cazombo, Gago Coutinho, N’Riquinha, Cuito Cuanavale e a entrega das instalações do Luso já se encontrava em fase bastante adiantada (681)
Na Lunda, começaram a aparecer membros dos três Movimentos de Libertação, conforme o estipulado nos Acordos de Alvor. Nesses documentos, ficaram expressos os parâmetros para a partilha progressiva do poder, durante o processo de descolonização, até à data da independência.


Permito-me transcrever alguns articulados dos Acordos de Alvor, com mais incidência na área militar (682).

Artigo 6° - O Estado Português e os três Movimentos de Libertação formalizam, pelo presente acordo, um cessar-fogo geral, já observado, de facto, pelas respetivas Forças Armadas em todo o território de Angola. A partir desta data, será considerado ilícito qualquer ato de recurso à força, que não seja determinado pelas autoridades competentes com vista a impedir a violência interna ou a agressão externa. 
Artigo 8° -O Estado Português obriga-se a transferir, progressivamente, até ao termo do período transitório, para os órgãos de soberania angolana todos os poderes que detém e exerce em Angola. 
Artigo 32°.- Forças Armadas dos três Movimentos de Libertação serão integradas em paridade com Forças Armadas Portuguesas nas Forças Militares Mistas, em contingentes assim distribuídos:

- 8.000 combatentes da FNLA, 
- 8.000 combatentes do MPLA, 
- 8.000 combatentes da UNITA, 
- 24.000 militares das Forças Armadas Portuguesas.

Artigo 33° - Cabe à Comissão Nacional de Defesa proceder à integração progressiva das Forças Armadas nas Forças Militares Mistas, referidas no artigo anterior, devendo em princípio respeitar o calendário seguinte: 
- De fevereiro a maio inclusive, serão integrados por mês 500
combatentes de cada um dos Movimentos de Libertação e 1.500 militares portugueses; 
- De junho a setembro inclusive, serão integrados por mês 1.500 combatentes de cada um dos Movimentos de Libertação e 4.500 militares portugueses.

No ano anterior, havia sido necessário nomear um oficial para representar O AB 4 nas reuniões gerais do MFA. Embora sem ter manifestado interesse ou apresentado qualquer candidatura, fui escolhido no primeiro escrutínio e, a partir daí, viajava frequentemente para Luanda, no Noratlas, a fim de participar nos conturbados e pouco produtivos encontros, próprios de uma democracia nascente e ainda não sedimentada. 
Foi nesta conformidade que me coube receber, acompanhar e integrar três jovens, representando o MPLA, a FNLA e a UNITA, que se apresentaram no AB 4, no mês de março de 1975. Foram fardados com os nossos uniformes e graduados no posto de tenente. Sem experiência militar, com a arrogância e o atrevimento próprio do desconhecimento das coisas, tudo sabiam, queriam começar a controlar e sobretudo alvitrar. A minha tarefa requeria paciência infinita, em face da sua pouca cultura, da sobranceria de algumas das suas posições, exigências e afirmações, sobretudo, quando avançavam com sentenças obsoletas e primárias do marxismo-leninismo, recentemente aprendidas, mas não compreendidas. 
Mas a maçada não foi muito duradoura, porque as tensões e a confrontação entre os Movimentos levou à desagregação do plano geral de integração e à retirada dos angolanos do AB 4, para se juntarem às suas gentes. 
De facto, pouco tempo após os Acordos de Alvor, os independentistas começaram a digladiar-se por toda a parte, para controlar espaços, pessoas e instituições, em especial em Luanda e arredores (683). O que deu origem a uma competição, para incorporarem nas suas fileiras os desmobilizados das Forças Armadas Portuguesas-FAP (684), que eram recebidos de forma amigável e sem lugar a retaliações (685)
Cangumbe Jul1974. Fernando Castelo
Branco, Diamantino Mafaldo,
Dr. Jonas Savimbi e Luis Faria Costa
Os antagonismos geraram uma guerra civil duradoura, sangrenta e fratricida. Mas, é bem verdade, que quase todos os Estados nasceram de atos da violência e os pais fundadores tiveram de saber lidar com ela.
Infelizmente, os três Movimentos trucidaram-se, os mortos foram inúmeros, muitas infraestruturas físicas, escolas, hospitais e pontes acabaram danificadas ou destruídas, sem grande inquietação, pois tinham aprendido que era preciso destruir para construir, sem entenderem que, necessário era tomar conta do aparelho ideológico, político e administrativo, dominado pelo colonizador. Não haviam assimilado o essencial do dinâmico princípio da creative destruction (687). E, é sabido, que o grande adversário do conhecimento não é a ignorância, mas sim a ilusão do conhecimento (688).
No distrito da Lunda, em particular na cidade de Henrique de Carvalho, os antagonismos começaram a agudizar-se, em maio e junho. Os comandantes do AB 4 (689) e do Batalhão do Exército desdobravam-se em reuniões conjuntas, no sentido de impedirem confrontações e de superarem os incidentes, que iam acontecendo. 
Mas estas manifestações de boa vontade não foram suficientes para travar ódios e rivalidades (690)
Henrique Carvalho 12/6/1975
A confrontação mais violenta e duradoura aconteceu, na tarde de 12 de junho de 1975, véspera de Sto. António. Os combates ocorreram no centro de Henrique de Carvalho, incidindo em especial na zona dos bairros residenciais de oficiais e sargentos da F. Aérea, situados junto ao hospital da cidade. Com o início dos disparos de armas ligeiras e pesadas, as ruas ficaram desertas em segundos. Famílias desencontradas, combatentes a movimentarem-se junto às casas e quintais, inferno sem fim, apocalipse now, situação que perdurou até ao dia seguinte, quando foi possível o cessar-fogo. 
A nossa moradia, só com rés do chão, era geminada e tinha um pequeno jardim e quintal. Ao lado, habitava o tenente Pereira. Umadas suas meninas estava connosco e já não foi possível fazê-la transpor o muro rasteiro, que nos separava. Minha mulher, apanhada pelo violento tiroteio, nem conseguiu apagar o gás do fogão da cozinha, onde preparava o jantar. 
Meti-as num corredor interior, junto à casa de banho, porque era o local mais protegido. Depois de escurecer, sempre sem luz, rastejei para desligar o fogão, pois o cheiro a esturro já se espalhava em redor e recolhi pão, água, fruta e agasalhos. Consegui também alcançar a pistola Walther e as munições que me estavam distribuídas. 
Ao longo das horas continuámos a ouvir os passos, brados, gritos e movimentações dos combatentes, envolvendo as nossas residências, rua e quarteirão. Noite escura e medonha, luta ininterrupta, clarões e estrondos contínuos, tempo de incerteza e apropriado para se fazer um rápido balanço de vida. Como é lógico, as nossas forças militares não poderiam envolver-se em conflito alheio e aguardaram o silêncio das armas para, mais uma vez, tentarem a conciliação. Tarefa impossível, porque, em 13 de junho, após os combates, Henrique Carvalho ficava nas mãos do vencedor MPLA. 
As vítimas eram recolhidas na via pública. Os vitoriosos capturavam os adversários feridos e abatiam-nos. Do AB 4, chegaram o capitão médico Pedro Barreiros, os enfermeiros e os maqueiros, que começaram a recolher os que jaziam junto ao muro da nossa casa, paredes meias com o hospital. 
Foi-me pedida ajuda e colaborei na remoção de corpos ensanguentados, colocados em macas, que depois seguiram para a nossa enfermaria. 
Efeitos dos confrontos entre os Movimentos
Alguns dos edifícios envolventes da minha habitação estavam danificados e crivados de projéteis, mas o mais atingido tinha sido o hospital, com vidros, janelas e algumas paredes danificadas. O burlesco aconteceu com um camarada que vivia perto de nós. Quando acabou o tiroteio e foi avaliar os danos, verificou que o armário roupeiro havia sido atingido por rajadas de metralha e o vestuário ficara esburacado. 
Mas, apesar de tudo, os eventos descritos não eram comparáveis aos intensos ataques aos aquartelamentos portugueses da Guiné, atrás referidos.

CONTINUA

Nota dos Editores: o nosso reconhecido agradecimento ao Sr. Major-General ADMAER da FAP Manuel de Campos Almeida, por nos ter permitido publicar este excerto da sua obra.






Adendas:

678 - Ver Acácio Barradas, Agostinho Neto, Uma vida sem tréguas, 1922-1979, Lisboa-Luanda 2005. No 30° aniversário da independência de Angola. Biografia do Presidente António Agostinho Neto (1922-1979), completado por testemunhos inéditos de familiares e amigos. 
679 - Angola considera esta data como o início da luta armada, passando a ser feriado nacional. Foi ainda designado com este nome o aeroporto internacional da capital e a bela avenida marginal. 
681 - AHFA. Comando da 2." Região Aérea. Relatórios do Comando de 1975 
682 - In Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra. 
683 - A FNLA e a UNITA lançaram suspeitas sobre a governação portuguesa, pois não estaria a ser imparcial, apoiando o MPLA na sua corrida pelo poder em Angola, nomeadamente através da entrega de armas. Embora, desde os primeiros incidentes em Luanda, tenha declarado a sua neutralidade, a nossa administração não terá deixado de privilegiar o apoio a Agostinho Neto, que apresentava um programa político mais próximo daquele que se vivia em Lisboa, em pleno PREC, no chamado verão quente. Entretanto, os Acordos de Alvor foram suspensos em ago1975 (Decreto-Lei n.° 458-A/75 de 22ago). 
684 - Aos combatentes naturais de Angola, que pertenciam aos quadros permanentes das FAP, foi dada a possibilidade de continuarem nas fileiras, de acordo com o estatuído na legislação portuguesa, inclusive o direito de passagem à reserva ou à reforma. Já os do SMO e das Tropas Especiais e Flechas (criados em 1966), foram desmobilizados e receberam indemnizações do Estado Português, tendo muitos deles passado, posteriormente, a integrar as forças dos 3 Movimentos, em especial do MPLA. 
685 - Porque, ao contrário do PAIGC e FRELIMO, os 3 movimentos de Angola tinham estruturas militares menos robustas e organizadas. Por isso, entraram em competição para incorporar os desmobilizados. 
687 - Reduzir ou alterar a orgânica de instituições ou empresas, por forma a aumentar a sua eficiência e dinamismo. Na sua ingenuidade, apenas anteviam um futuro glorioso e de facilidades. 
688 - The greatest enemy of knowledge is not ignorance: it is the illusion of knowledge. Stephen Hawking, físico britânico (1942-2018). 
689 - Major piloto aviador João Carlos Oliveira, que enfrentou as dificuldades com coragem e determinação. 
690 - O processo de descolonização de Angola tornou-se o mais difícil de todos. Os 3 Movimentos entraram em confrontação e, em março de 1975, já estilhaçados os Acordos de Alvor, passou-se a uma fase de internacionalização do conflito, com interferências da África do Sul, EUA, URSS, Cuba e Zaire.




quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

O PRIMEIRO C47 EM PORTUGAL


Em Julho de 1944 um Douglas C47 Skytrain (versão militar do Douglas DC3 Dakota) da United States Army Air Force, USAAF, aterrou de emergência perto de Sagres. Tripulantes foram encaminhados para as Caldas da Rainha para serem mais tarde repatriados. O avião foi internado e entregue à Aeronáutica Militar. Depois da II Guerra foi convertido na versão civil e entregue ao SAC, Secretariado da Aeronáutica Civil, dirigido por Humberto Delgado.
Em 1945 foi entregue à TAP com a matrícula CS-TDA, tornando-se no primeiro avião da companhia.
Após 13 anos de bons serviços passou a voar para a DETA de Moçambique. Aí recebeu a matrícula CR-AGB e o nome "Gorongosa"
Em 1971 foi integrado na Força Aérea Portuguesa com o nº 6175 e passou a efectuar operações de transporte naquela Província Ultramarina.

Tudo acabou a 6 de Maio de 1974 quando transportava um grupo de Adidos Militares na região de Mueda. Um míssil terra-ar Strella acertou num dos motores e perfurou uma asa. Pilotos conseguiram aterrar de emergência num aeródromo de recurso e todos os ocupantes escaparam sem problemas de maior.
O Coronel Engenheiro Aeronáutico José Paulo Marques Pereira, autor das fotos, esteve no local e deu o aparelho como abatido ao efectivo. Não havia recuperação possível.
Acabou transformado em parque infantil.
Por: Comt. José Correia Guedes