quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

GUINÉ - QUANDO O TEN.COR. COSTA GOMES FOI ABATIDO

O G-91 5411 alguns dias antes de ter sido abatido.

Como habitualmente naquele dia saltei da cama às 05:00h da matina, tocava-me estar na equipa de alerta e a "parelha" de Fiat`s deveria estar pronta para descolar às 06:00 horas.
Éramos apenas dois, eu e o Luís Tavares, todos os restantes iniciariam a actividade normal cerca das 08.00 da manhã. Afinal não, "a parelha de alerta" naquele dia não descolou cedinho… 
Só cerca das 11:00h chegaram o Ten.Cor. Costa Gomes, Comandante do G.O. e o Capitão Fernando Vasquez nosso Comandante de Esquadra para voarem respectivamente o 5411 e o 5416. Uma hora passada, chegou a noticia de que um deles não regressaria à Base. Abatido por fogo de anti-aéreas na zona de Gandembel. Naquela manhã, algo tinha corrido mal… 
O Ten.Cor. Costa Gomes, com o seu bigodinho à Clark Gable, era um homem sisudo, vaidoso, de poucas falas e que nunca sorria. Não era simpático. Mesmo quando interpelado, respondia sempre com monossílabos. Mas era um bom Piloto. Tinha já passado pela BA9-Luanda onde tinha sido “alcunhado” com um curioso epíteto que nunca entendi muito bem! Não o vou dizer, por respeito à sua memória. Já o Capitão Vasquez, era o seu oposto… simples, simpático, sorridente, comunicador e um excelente piloto. Todos gostávamos dele. Um grande Oficial General felizmente ainda entre nós! 
Todos os aviões em voo mantinham escuta permanente em 49,0 MHz, que era o canal para apoio aéreo às forças de superfície. Entretanto foram vários os pilotos que alteraram as missões que estavam a cumprir para se dirigirem a Gandembel. Soube-se depois que o G-91 5411, pilotado pelo Comandante do GO 1201, tinha sido atingido por fogo antiaéreo e incendiara-se. O número dois da formação, alarmado com o enorme rastro de fogo deixado pelo avião, incitara o chefe a ejectar-se imediatamente o que ele fez alguns segundos depois.
Capitão Vasquez

Logo a seguir, enquanto observava o pára-quedas a descer para a mata, o Capitão Vasquez comunicou a situação ao Centro Conjunto de Apoio Aéreo (CCAA) e com essa transmissão rádio alertou o dispositivo aéreo para aquela emergência. 
Houve outros aviões que estavam no ar na altura em que o Tenente-Coronel Costa Gomes se ejectou, mas que não puderam dar apoio. Foi o caso de uma parelha de G-91 formada pelos tenentes Vasconcelos e Sá e Firmino Neves que tinha ido atacar um alvo na mata central do Como. Os pilotos estavam a regressar à Base quando ouviram a comunicação rádio do Capitão Vasquez, mas não podiam fazer nada. Tinham que aterrar porque estavam com pouco combustível.
Assim que chegaram ao estacionamento surgiu o Tenente Balacó Moreira, o único piloto de G-91 disponível na Base, a dar indicações aos mecânicos para aprontarem rapidamente outra parelha. Foi por isso que o Tenente Firmino Neves, desceu de um avião e entrou noutro logo a seguir e depois descolou atrás do Tenente Balacó Moreira em direcção a Gandembel. A meio do caminho ouviram a comunicação que finalmente nos sossegou informando que o Comandante do Grupo tinha entrado no aquartelamento e estava a salvo. 
Tudo o resto está descrito e bem, na bela prosa poética do amigo Jaime Marinho de Moura.

Por:








Mário Santos

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

BA2 OTA - JURAMENTO DE BANDEIRA DA ER 2ª./68


Na Base Aérea nº. 2 - Ota, realizou-se no passado dia 30 de Agosto o juramento de bandeira de 441 alunos recrutas e a entrega de diplomas a 70 aspirantes a oficiais milicianos técnicos que terminaram os cursos. 
Presidiu à cerimónia o Director do Serviço de Pessoal brigadeiro Dias Costa, que estava acompanhado pelos Directores dos Serviços de Instrução e de Saúde, brigadeiros Ivo Ferreira e João Varela.
Depois de ter passado revista à guarda de honra, o brigadeiro Dias Costa, acompanhado pelas entidades presentes dirigiu-se para a tribuna de honra.


A iniciar as cerimónias, usou da palavra o Comandante da Unidade coronel piloto aviador Rangel de Lima. Em seguida o Alferes Campelo dirigiu uma exortação patriótica aos soldados alunos recrutas.
Procedeu-se, depois, ao acto solene do juramento perante a
major Mac-Bride
bandeira. A fórmula do juramento foi lida pelo comandante do Grupo de Instrução e comandante das forças em parada, tenente-coronel Raul Tomás. 

Seguiu-se demonstração de manejo de arma a pé firme e em marcha, sob as ordens do comandante da Escola de Recrutas, major Mac-Bride, finda a qual os individualidades presentes procederam à entrega de diplomas aos aspirantes que terminaram os cursos e prémios aos que mais se distinguiram durante os cursos e recruta.
Finda a distribuição, as forças em parada desfilaram em continência perante a tribuna de honra.
A terminar as cerimónias, os soldados alunos recrutas fizeram a apresentação de um circuito de treino e demonstração de luta individual de aplicação militar, sob o comando do tenente Coelho Dias, coadjuvado pelo aspirante José Cid Tavares.
Durante as cerimónias três aviões T33 da Base Aérea nº.2 sobrevoaram a unidade.

Fonte: Revista Mais Alto

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

CIVIL E MILITAR

A cidade de Henrique de Carvalho, ao fundo o AB4


Este é naturalmente e tão só um testemunho pessoal, mesmo muito pessoal, que aqui deixo passados tantos anos, quase  cinquenta, e que contrasta naturalmente com outras vivências que por aqui vão aparecendo.
Abordo aqui, hoje, um dos aspectos mais marcantes da minha passagem (de quase 3 anos, até Agosto 75) por Angola-AB4, Henrique de Carvalho-Saurimo,  o mesmo é dizer que até ao fim: até ao seu fecho, melhor dito até à sua "desactivação" como Aeródromo Base da FAP em Agosto de 75, tendo  naturalmente trazido as "chaves", salvo seja, pelo menos uma das cópias das chaves...
Cheguei como quase todos os que por ali passaram  num Nord apinhado de tudo e de todos, que saía de Luanda manhã cedo. Aquelas 2/3 horas no ar foram agradáveis, depois de quase dois meses em Luanda na expectativa de ali ficar…mas valores mais altos se levantaram e eis-me a caminho da descoberta da excelente paisagem aérea de Angola; chegava-se a uma "terra" bem diferente de Luanda: ambiente, clima, a beleza singela e a vastidão da paisagem das Lundas. A Base uma enorme e grande surpresa.
Como militar fui colocado no CA (Conselho Administrativo) da Base, mesmo ao lado da Secretaria, e portas meias com o Comando; o CA era aquele sítio onde se ia "receber" o pré/vencimento e muito mais; tínhamos também um leque muito grande de responsabilidades atribuídas: os "tais" vencimentos, ajudas-de-custo, a cantina, a agro-pecuária, os combustíveis e lubrificantes (auto e de avião), o cinema,  as aquisições, a cerâmica, a gestão de bebidas brancas e todas as outras…enfim havia muito que fazer.
Como a própria foto da época abaixo mostra, a minha passagem pelo AB4 teve uma faceta "civilista" - de civil ! – muito acentuada, mesmo muito. O dia a dia passava-o sim na Base, quando não tinha, pontualmente, de me deslocar ao Camaxilo, ao  Cazombo, ao  Luso e outras  zonas das terras do fim do mundo, do "cú de judas" como lhe chamou Lobo Antunes; da Luiana ao Cuito, de Gago Coutinho a Serpa Pinto (sempre  ir e vir). Mas enfim, também almoçava na "messe" quase todos os dias em que ali me encontrava. Jantar  já não…só raramente e aos sábados ou domingos! 
No CA do AB4


Tinha o meu carocha-branco VW, que me dava alguma autonomia sem nunca ter falhado nos dois anos e meio que me pertenceu, foram dois anos e meio em que ele nunca me deixou ficar mal. Comprara-o ao dr. Baeta, alferes miliciano médico no AB4 de 1970 a 73. Lembram-se?
Mas  nessa rotina de muitos meses,  pelas sete da matina já estava na Escola I.C. /Liceu de Henrique de Carvalho até às 9 h  e lá regressava após as 18h muitas vezes até às 22h da noite.
Isto porque fora convidado no dia seguinte à chegada ao AB4 para ali leccionar. Convite feito num fim de semana, para leccionar na Escola/Liceu onde também alguns dos alunos militares da  Base estudavam. O então Director dr. Ferreira Dias (falecido no ano passado) no 1º. Domingo seguinte ao da minha chegada, aparecera para me convidar e aceitei depois de falar com o Comandante, Coronel J.Sachetti. Um "sim" no escuro pois de todo ignorava a realidade local.
E assim passei  de facto a ter uma actividade intensa e multifacetada: a de um professor (à força! mas muito bem pago, verdade!)  com apenas 23 anos, experiência de ensino até ali nula, mas que se foi adquirindo e se  tornou muito enriquecedora e de que guardo excelentes recordações,  que hoje revivo pelas fotos e testemunhos que fui guardando, e de que aqui deixo uma. O actual Governador do Moxico, por exemplo,  foi ali no Saurimo meu aluno, no curso comercial e como me lembro daquele ambiente e daquelas turmas, grande Muandumba!!.
Pic-nic

Daí que quando vou ao meu espólio fotográfico de então, - não muito grande com grande pena minha - as fotografias são na sua maioria à "civil" e  raramente fardado. Incontestável.
O permanecer e viver na cidade de Henrique de Carvalho , a actividade e as relações múltiplas com gente dali – comércio local, bares, restaurantes, cafés, cinema, o ter vivido também na Pousada do Governo da Lunda, coisa que só alguns privilegiados puderam, (verdade e com cunha, pois houvera vaga, após ter passado uma  semana no hotel do Pereira & Rodrigues), a pousada era um local absolutamente ímpar à época, um luxo. Atenção que  chegara ao AB4 casado. Mais tarde residiria no novo  bairro da FAP à entrada da cidade, lado direito de quem vinha do AB4.
A pousada

Contudo o conviver de perto com tanta gente diferente da cidade, o participar em pic-nics com alunos e colegas (civis e militares)  nos fins de semana no Chicapa e arredores, as petiscadas aqui e ali, os jogos à noite no "rinque" da cidade, acentuavam de facto esse toque civilista que referi. Claro que quando havia cinema na Base lá ia quando podia, era aliás uma das actividades de que era responsável, através do Conselho Administrativo, pois tinha então também  essa tarefa de receber os filmes que no Nord chegavam às 2ªs. e 6ªs.feiras, - ás vezes também na DTA - devolver e relatar e pagar os alugueres. Por vezes lá iam ao Cine Chicapa, a pedido, para ali ficarem e serem exibidos. Algumas vezes "produzi" pequenos resumos e achegas escritas em A4 dobrável sobre o filme a exibir. Lembro que "O Padrinho" por exemplo foi exibido em dois dias seguidos no AB4 - com guião escrito e tudo -  e só depois foi para o Cine Chicapa.
De Luanda guardo também esta outra fotografia, tirada algures no Mirante da Lua, Barra do kuanza, a caminho do Bengo, naturalmente e sempre à civil e com o velho blusão FAP de couro, para compor. Estávamos já em 1975, penso que em Abril, depois de ter vindo a Lisboa…encomendar, pasme-se, "bebidas brancas" !


Um dia na Base, pela manhã,  o Major Sampaio então 2º. comandante, entrou no Conselho Administrativo e disse-me: Oh  Santos Nunes, farde-se (!) que daqui a meia hora vamos ao Camaxilo! È verdade farde-se…O capitão Carvalho e comandante do Dakota, estariam algures à espera na "placa". Era uma experiência-passeio de que se gostava naturalmente: ir e vir a um AM. Por lá estariam os amigos Barbosa, Bernardino, Pimenta, Fernandes,  e companhia bem "alimentada".
Dir-se-á que tive sorte! Nem mais, mesmo muita e  é fácil reconhecer. Foram quase três anos  de   vivências algo peculiares, singulares e diria que únicas  para quem ali chegou com estatuto de "militar" puro e simples. Recordamo-nos bem de que quando se chegava a Luanda na mira de ali ficar, e nos davam guia de marcha para o AB4. Quão difícil era de digerir. Foi o meu caso, com substituição nominal em Luanda…mas que em boa hora seguiria  para Henrique Carvalho.
As Lundas eram outra coisa, outra realidade. E a minha foi esta.
Para terminar relembro que nas escalas de serviço de Oficial de Dia estavam poucos oficiais, a maioria ou eram operacionais  ou comandavam  destacamentos. Daí que de oito em oito,  dez em dez dias, quinze no máximo lá estava no render da parada às dez! Aí estavam as minhas 24 horas de permanência, no AB4, com aqueles imprevistos tão peculiares e situações inimagináveis; o estar de serviço implicava  muitas vezes  trocas e baldrocas para poder conciliar tudo e as noites eram uma surpresa quase sempre. E de que maneira…
E foi assim que esta espécie de civil foi militar no AB4. Momentos menos houve com toda a certeza, mas prefiro estes "slides" a cores que aqui deixo…




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quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

TARTIBO - DA RECONCILIAÇÃO Á TRAGÉDIA


Histórias de um tempo em que fomos soldados e irmãos . 
Após o regresso de África para quem tinha convivido com a realidade da guerra, era complicado a readaptação ao quotidiano num ambiente Pacífico.
O comportamento perante certas situações era confuso devido a traumas deixados por dois anos vividos sob momentos de alarme, ansiedade, angústia, e muitas e fortes emoções. 
Aqui em Almada onde vivo , quantas vezes parei junto á porta de uma tabacaria e ficava olhando um senhor todo vestido de preto que ali trabalhava, sabia quem ele era, tinha algo para lhe dizer, mas quando avançava para lhe falar, hesitava e recuava sempre, e o tempo foi passando acabando por nunca conseguir fazê-lo. 
É algo que ainda hoje me perturba por não saber se lhe causaria sofrimento ou alguma paz de espírito. 
Mas recuemos para os nossos verdes anos 66/67 juventude plena de sonhos e ilusões, das paixões e amores velozes, mas o espectro da guerra colonial e a mobilização pairavam já no horizonte. 
Poderia haver em alguns de nós um misto de curiosidade e descoberta por África, como jovens irreverentes de espírito aventureiro imaginávamos como seria experimentar a adrenalina no teatro de guerra. 
Mas para os nossos pais era um momento que esperavam com angústia, e depois se seguiam dois anos de preocupação e saudade ansiosos pelo regresso sempre em sobressalto. 
Sabemos como era o drama nos embarques dos contingentes militares nos cais de Lisboa, como se fosse o último adeus, o último abraço, o último beijo , num ambiente de desespero, dor , incerteza, e sofrimento. 
Certo dia em amena cavaqueira numa conversa de grupo, o assunto era uma disputa amorosa, e eis que sem esperar sou surpreendido com dois fortes socos na cara pelo meu confrontante o Pedro, que de imediato se pôs em fuga tipo bate e foge, que me deixou sem reacção. 
Não fiquei com sentimento de vingança, mas as relações de convívio e amizade entre os dois terminaram ali , e assim o tempo foi passando sem mantermos qualquer contacto, cada um na sua vida profissional pois ambos filhos de famílias humildes havia que trabalhar cedo, ele como montador de toldos, eu como serralheiro mecânico na Indústria automóvel, e assim foi até a incorporação militar, eu na Força Aérea e ele no Exército.




Nas tripulações dos Helicópteros, pela nossa ação na cobertura por todo o território de intervenção militar, aterrando e descolando em todo o lado, picadas, no mato, em aquartelamentos, no interior de pequenos destacamentos, eram frequentes muitos encontros com amigos e conhecidos. 
Ali naquela África longínqua estavam os jovens do nosso tempo, companheiros de escola, do trabalho, do bairro, e por vezes com laços familiares, primos, irmãos, cunhados, etc., era a juventude de uma geração sacrificada com tantos anos de guerra. 
Em Cabo Delgado nas missões que cabiam á Esquadra de Helicópteros (Índios) com destino a Nangade, quase sempre voávamos ao Tartibo levando mantimentos e correio, como não tinha pista de aterragem só o Helicóptero podia fazê-lo.

O Tartibo como muitos outros era um buraco aberto no coração verde da selva Africana, e este ficava perto de Nangade a que pertencia como destacamento, com um grupo reduzido de militares, situava-se na fronteira com a Tanzânia na margem sul do Ruvuma em zona de passagem e infiltração dos guerrilheiros da Frelimo.

Rio Ruvuma cujas águas muito sangue levaram na sua corrente para o mar, lembro o Capitão Ventura Piloto Aviador que ali perdeu a vida mergulhando com o seu T-6 abatido por fogo antiaéreo . 
Numa destas deslocações ao Tartibo uma surpresa me esperava; entre os camaradas que se aproximavam do Helicóptero para receberem os mantimentos e correio, uma cara me era conhecida, fixámos o olhar um no outro, indecisos sem nada dizer como que espantados. 
Ali estávamos os dois, numa zona de guerra, que local tão marcante para o reencontro, o Pedro e eu , a quem ele presenteou cerca de quatro anos atrás com dois surpreendentes socos na cara por causa do namorico. 
Qual vingança ? Qual pedir explicações ? 
Depois de alguma hesitação de ambos, abraçá-mo-nos fortemente com uma enorme alegria num momento de grande emoção tão longe da nossa terra, o que estava para trás ficou esquecido e a amizade de novo reatada. 
Assim nos fomos encontrando nas deslocações que ali ia fazendo, o Pedro era sempre o primeiro a aproximar-se do Helicóptero quando via que era eu o mecânico que lá vinha, pois também a partir daí mesmo não me pertencendo eu procurava sempre fazer esses voos para estarmos uns minutos juntos. 
Mas como diz o ditado: "não há mal que nunca acabe , nem bem que sempre dure " 
Até que um dia no reabastecimento habitual ao aterrarmos , o Pedro não comparece á chegada . 
Notei um certo embaraço nos camaradas que sabiam da nossa amizade, e já preocupado perguntei : então o Pedro ? 
Responderam: não soubeste que há dias sofremos um bombardeamento ? 
Sim soube, respondi logo nervoso. 
Pois o Pedro corria para o abrigo e foi atingido tendo morte imediata. 
Gelei ! fiquei abalado e tentei manter a calma, foi curto este tempo de reconciliação e amizade, na guerra eram breves os momentos de alguma felicidade, só o tempo era lento parecendo durar uma eternidade a chegada do dia do regresso. 
Descolámos de volta para Muéda, ali ficavam estes bravos soldados na incerteza constante pela vida, quantos mais a perderiam futuramente ali naquele buraco ? 
Terminavam assim tragicamente os momentos de alegria para os dois naqueles curtos espaços de tempo em que nem cortávamos o motor (turbina) do Helicóptero, mas era o suficiente para considerarmos um dia bom naquele ambiente tão pesado e adverso . 
A rotina continuou , mas perdi a vontade de voltar àquele local, sabia que á chegada já mais iria ver á frente de todos o amigo Pedro para aproveitarmos o máximo daquele pequeno momento. 
Alguns anos depois do regresso deixei de ver o senhor de preto a quem nunca tive a coragem de abordar, era o pai do Pedro, queria ter-lhe contado tudo isto e não consegui, ainda hoje sinto alguma mágoa. 
Achei por bem que não devia incomodar no seu recolhimento e dor, alguém que perdeu um filho no auge da juventude e tão longe de si , sem mesmo os restos mortais poder ter. 
Que descansem em paz ! 

Muéda de todos nós 
Que pisámos o teu chão 
Com tanto sangue regado 
Dizemos com emoção 
Que os mortos caminharão 
Para sempre ao nosso lado 





Francisco Serrano

Mecânico de Helicópteros - Moçambique 71/72

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

UM ALBURITELENSE NA VOLTA AO MUNDO (a trabalhar !)


Diz o velho ditado... quem espera sempre alcança!!!
Depois de 40 anos de aviação, faltava-me este prémio para juntar ao curriculum da minha vida de trabalho. Começou no dia 16 de Novembro de 2014, em Paris, no aeroporto Charles De Gaule. A agência turística chama-se TMR.
Os passageiros vão ser sempre os mesmos: 52 cadeiras executivas e 150 turísticas até ao final previsto para 6 de Dezembro, terminando assim a excursão da volta ao mundo deste ano.
Neste momento fizemos só uma etapa: Paris/Havana, dez horas e quarenta minutos. Ficamos aqui 2 dias para recuperar forças para a etapa seguinte que será Colômbia.
Espero documentar no jornal Notícias de Ourem, à minha maneira, o que irei ver por este Mundo.

Continuo a acreditar que sonhar é viver!!!
Na primeira parte dizia eu, que iria resumindo à minha maneira o que vai acontecendo nesta viagem à volta do mundo.

Estava em Havana e de Cuba já fiz uma crónica 
há cerca de 3 anos. Em pequenas conversas de ocasião com os empregados da recepção do hotel fiquei com a ideia que pouco mudou em relação às políticas, pequenas aberturas, mas pela cara deles tudo está na mesma.

Dia 19 - Saímos de Havana em direcção a Cartagena (Colômbia). Os passageiros são os habituais, e sendo sempre os mesmos já é quase uma família em voo. Aterramos no aeroporto Internacional Rafael Nunez e à noite fomos jantar a um restaurante típico no centro da cidade.
Dia 20 - Dia livre. Fomos fazer pequenas compras ao centro da cidade que é murada, tipo a nossa Évora.
Dia 21- Descolamos sem direcção à Ilha da Páscoa.
Um grande esticão. 7 horas e 45 minutos de voo já em pleno Pacífico, fomos ver o pôr do sol junto às estátuas, património da humanidade.
Dia 22 - Rumamos até ao Tahiti. Mais um voo de 6 horas. A água do mar parece uma banheira, límpida e parece que estamos numa piscina com kms de distância.

Ainda deu para ir a outra ilha chamada Moorea. Apanhamos um ferry.
Dia 25 - Tivemos partida para Sidney (Austrália).
Para os curiosos da aviação já fizemos 28 horas e 50 minutos de voo, e metemos 186 mil e 100 litros de fuel jetA1.

Para que os leitores do jornal Notícias de Ourem fiquem com uma ideia mais pormenorizada do que é organizar uma viagem turística deste género, aqui vão mais uns detalhes.
A companhia TMR Francesa capta os seus clientes, e traz a bordo uma equipa composta por 10 pessoas, de entre as quais um médico e um historiador que em todos os voos para onde vamos explica em Francês (claro), com alguns pormenores, a história do país onde vamos aterrar. Conforme já disse, os passageiros são sempre os mesmos e as idades oscilam entre 70 e 85 anos. São, em geral, casais, mas também há os passageiros que viajam sozinhos. Depois a companhia freta um avião em qualquer lado e andam de um lado para o outro na volta ao mundo.
Na última crónica escrevi que no dia 25 iria voar para Sydney (Austrália), e assim foi. Mais 7 horas e 55 minutos de voo. A cidade é bonita, com arranha céus.

Jantámos num restaurante português onde não faltou a cerveja Sagres, o chouriço assado na brasa e o frango com batatas fritas e salada. No fim, contas à merceeiro: bloco de notas, lápis e já está... aqui parece que IVA e número de contribuinte não existem.
No dia seguinte, passeio junto ao rio onde está a chamada Ópera (tipo casa da música do nosso Porto), com o feitio de grandes conchas e onde só os grandes artistas vão cantar... a nossa Marisa já lá esteve.
A seguir voámos para a Indonésia. Mais 6 horas e 40 minutos de voo. Visitámos o maior templo budista do mundo (Borobudur). 

O guia disse que demorou cerca de 85 anos a construir. Estou a escrever de Singapura, mais 1 hora e 55 minutos e amanhã estaremos em Katmandu (Nepal) seguindo-se o Uzbequistão, Paris e finalmente Lisboa, onde termina a nossa viagem ao mundo.

Já estou a escrever esta última crónica na minha casa, onde
cheguei no sábado passado, pelas 20 horas.

Na última crónica estava a escrever de Singapura, cidade bonita, com muitas lojas de marca, algum calor e bons  restaurantes. Nesta cidade, o nível cultural é elevado e os cidadãos são submetidos a elevados padrões de exigência: há multas pesadas para quem deitar uma beata de cigarro ou uma pastilha elástica para o chão e para os donos dos cães que sujem os passeios. As multas oscilam entre 500 e 1000 dólares. Ouvi dizer que o ordenado mínimo é de três mil dólares. Ganha-se bem, mas também se gasta muito. Dizem os entendidos que é assim que se desenvolve um país.

No dia seguinte voámos para o Nepal (Katmandu), a terra das montanhas. O Evereste lá estava imponente como o ponto mais alto do mundo. Aqui compra-se a chamada lã cachemira.
Há muito artesanato, quadros a óleo exibindo as montanhas
com neve. À chegada colocaram a toda a tripulação um lenço de seda branca ao pescoço e no almoço, à entrada do restaurante, fomos benzidos com um sinal vermelho na testa.
Dia 4/12 rumámos para o Uzebequistão, 3 horas e 50 minutos de voo. À chegada havia muito frio e neve nas montanhas. Eu estava a tirar uma foto, mas fui imediatamente avisado pela tropa de serviço ao avião que não podia tirar fotografias. 

cidade onde estivemos chama-se Samarkand. Nesta cidade há muitos templos, anteriores a Jesus Cristo, que têm uma longa história, muito artesanato, chapéus de pele de animais (tipo russo) para colocar na cabeça, tanto para homens como para mulheres. Troquei 50 Euros e deram-me como câmbio 150 notas de mil, portanto 150.000 dinheirinhos de lá o que dava um grande maço de notas atadas com um elástico. Fui jantar e tive de entregar 40 notas de mil, comprei algum artesanato e paguei com 50 notas de mil, mais umas coisas e assim se foram as  150 notas de mil. À noite houve um jantar de despedida oferecido pela companhia TMR com todos os turistas, cerca de 140, num grande salão, ricamente decorado, com música francesa  ao vivo, com danças regionais, nos intervalos dos diferentes pratos do banquete.

No dia seguinte realizou-se o último voo até Paris, onde deixámos os turistas e assim terminou a volta ao Mundo.
Mais uns pormenores para os mais curiosos: percorremos 42.240 Km, abastecemos o avião com 443.849 litros de fuel jet Al e voámos 63 horas. Foram gastas 200 garrafas de champanhe, marca Roederer, 200 garrafas de "vinho tinto marca Aurius e Guigal, 30 garrafas de bebidas espirituosas, wisky, brandy, etc., claro, isto para os passageiros, para os tripulantes só sumos e água.
Para terminar pedia ao Director do Jornal Notícias de Ourem que me permita dizer os nomes da tripulação do avião desta grande viagem à volta do Mundo e despedir-me carinhosamente dos leitores e agradecer a paciência que
tiveram para ler os meus breves comentários. Estou certo que se eu fosse um bom historiador tinha escrito um livro com 500 páginas tal foi a riqueza de tudo o que vivi e experienciei nesta viagem.
Aproveito para desejar um Bom Natal a todos e um próspero Ano Novo.
Comandantes: Mário Alvim, George Orphanides, Mário Tavares.
Cabine: Sofia, Nuno, Mariana, Tatiana, Ana, Natacha, Anne,
Marisa, Raquel, Gonçalo, Miguel e Pedro.
Equipa de manutenção: César e Sandro.


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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

CILINHA, PRESIDENTE DO MNF


Cilinha, como era conhecida a Presidente do MNF. 
Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto, conhecida popularmente como Cilinha, foi a criadora e presidente do Movimento Nacional Feminino, uma organização de mulheres que durante a guerra colonial prestou apoio moral e material aos militares portugueses. 
Numa das suas muitas visitas às tropas em missão em África, visitou o Leste de Angola em 1972. 
A senhora era criatura sempre muito bem disposta. 
Fiz a missão de a transportar a ela e à "secretária", em DO 27, de Gago Coutinho a Cangamba. 
Quando saía do DO, punha dois dedos na boca e assobiava aos militares que a esperavam. Depois em voz alta gritava: Hei camaradas!!!! 
Comigo voou o Hermano Ferreira que não quis perder a oportunidade de acompanhar tão ilustre criatura. De Ninda para Cangamba, o Hermano, apesar dos VIP's "rapou" quanto pode, mesmo no vermelho! Apesar de suscitar a natureza da missão e o perfil dos passageiros, só faltou cortar capim. De Camgamba para o Cuito Cuanavale seguiu com outra missão. 
O Vitor Matos Oliveira tem razão. A senhora perguntava aos militares o que fazia mais falta. Acho, que só depois fazia chegar, gillettes, baralhos de cartas, dominós e outras coisas poucas, assim para muitos satisfazer.

Torceu o nariz, compreensivelmente, quando alguém disse que fazia falta um jogo de matraquilhos. Era preciso confortar muita gente e o volume ia roubar espaço para prendas mais pequenas que satisfaziam um maior número de necessitados. 
Foi há 47 anos!

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sexta-feira, 15 de novembro de 2019

ADEUS MUÉDA TERRA DA GUERRA


Confesso que tive medo, por vezes muito medo !
MOÇAMBIQUE 19/1/73
AM51 é a linha da frente da Força Aérea Portuguesa no Distrito de Cabo Delgado com a sua azáfama habitual no movimento constante de homens e aviões que começava logo aos primeiros raios do alvorecer.
Eis chegado o momento por mim tão ansiado, estava no meu último dia de comissão, completava dois anos de África, e permanecia em zona de guerra.
A meio da tarde o avião da logística chega ao AM e estaciona na placa.
Com alguma ansiedade espero a saída dos passageiros, quando me apercebo que não trás o meu substituto fico desolado, assim a rendição só poderia acontecer daí a uma semana.Os meus últimos dias no Planalto foram passados sob uma enorme tensão e pressão psicológica, os voos em missão pareciam durar uma eternidade.
Só pensava nos percalços por que passei e de onde sempre saí ileso, mas agora sentia o medo de morrer a poucos dias de volta a casa, temia ser novamente abatido em missão e desta vez acabar por não sobreviver.

Na Esquadra de Helicópteros era um princípio; de após terminados os dois anos, não permanecer-mos mais em zona de guerra.
Cada mecânico tinha o seu Heli distribuído, eu não poderia vir embora sem ser rendido, o que me era difícil de aceitar.
O Furriel Soares (chaparro) chefe de equipa, ofereceu-se para ficar com o meu Heli até vir o substituto, para eu entretanto poder pedir ao Tenente Piloto Aviador Luís Araújo (Ícaro) se me deixava partir.
Faltava pouco tempo para a saída do avião, apressadamente dirigi-me ao seu gabinete e expus-lhe a situação.
Foi compreensivo, justo e humano como um verdadeiro ÍNDIO, deixou-me partir.

Agradeci-lhe e saí correndo fazer o saco com os pertences, dar um abraço de gratidão ao Soares, e fui apanhar o avião.
No meio daquela agitação e movimento habitual na placa do AM, entro no barrigudo Noratlas juntamente com os restantes passageiros, escolho um lugar nos seus típicos assentos laterais, e espero a partida sob um turbilhão de pensamentos e emoções.
Sinto algumas lágrimas que me esforço por suster, invade-me um sentimento de culpa e angústia por saber que vou partir são e salvo, e ali deixo camaradas e amigos de tantos momentos e aventuras entregues á incerteza do dia a dia, dos riscos e perigos nas missões naquele teatro de guerra.
Como que acordo do pensamento em que estava mergulhado com o roncar dos potentes motores do Noratlas, avião tão operacional e eficiente no apoio logístico ás Forças Armadas e populações, aterrando e descolando em pistas de terra batida curtas e mal niveladas, extremamente difíceis de operar.
Por fim rolamos da placa para a pista, posicionando-nos no início, potência máxima para a descolagem, e lá vamos tomando velocidade quase a todo o comprimento até ao fim do Planalto.
Nariz levantado, rodas no ar e ganhamos altitude sobre o Vale de Miteda, lugar sinistro e de perigo constante, que só de pronunciar o nome arrepiava, quatro dias antes ali tinha feito uma dramática evacuação na picada.
Mantive-me em silêncio sem trocar conversa com os restantes passageiros, no meu pensamento passavam imagens de um filme no qual fui personagem durante dois anos naquela terra inesquecível no Planalto dos Macondes.

Após algum tempo de voo espreito através da pequena janela circular, e aprecio a paisagem da selva Africana, cá em baixo o rio Messalo serpenteia por entre a floresta verde procurando o caminho para o mar ao encontro com o Oceano Índico através de uma terra apaixonante de encanto e beleza, martirizada pela guerra.
Mas o avistamento do rio Messalo transmitiu-me uma sensação de alívio, estamos saindo da zona de perigo.
Para trás vai ficando uma terra de morte e destruição, de ataques, de emboscadas, de picadas minadas e armadilhadas, de bombardeamentos, de angústia e incerteza pela vida, de interrogação e procura pelas razões e justificações da guerra, de momentos de dor, de amizade e camaradagem, ali deixava parte de dois anos da minha juventude que valeram por uma vida.
ADEUS MUÉDA TERRA DA GUERRA
Quantas vezes me perguntam porque não te esqueço, como se fosse possível esquecer-te !
Para além das operações de guerra, foram muitas e muitas evacuações, tenho na memória o sofrimento de quem resgatei do inferno das zonas de combate.
Ouço os seus gritos de dor e aflição, gravei os seus olhares que tudo diziam sem precisar de palavras, os seus olhos falavam.
Quantos mesmo em sofrimento exprimiam um leve sorriso como que dizendo: apesar de tudo sem um braço ou uma perna vou sair daqui vivo.
Já alguns devido á gravidade dos ferimentos, o seu olhar era de aflição pedindo que tudo fizéssemos para os salvar.
Por fim outros com uma palidez de morte no rosto desfaleciam dando o último suspiro ficando a olhar no vazio.
É impossível esquecer !
Muéda, que preço tão alto pagámos, quantas vidas cobras-te por pisarmos o teu chão e voarmos no teu Céu.
ADEUS MUÉDA TERRA DA GUERRA
Jamais te esquecerei !

E todos deixámos um pouco de nós
Na África de sonho lá onde estivemos
Momentos intensos de amizade e dor
Tão longe no tempo mas não nos esquecemos








Francisco Serrano
Mecânico de Helicópteros Moçambique 71/72