Histórias de um tempo em que fomos soldados e irmãos .
Após o regresso de África para quem tinha convivido com a realidade da guerra, era complicado a readaptação ao quotidiano num ambiente Pacífico.
O comportamento perante certas situações era confuso devido a traumas deixados por dois anos vividos sob momentos de alarme, ansiedade, angústia, e muitas e fortes emoções.
Aqui em Almada onde vivo , quantas vezes parei junto á porta de uma tabacaria e ficava olhando um senhor todo vestido de preto que ali trabalhava, sabia quem ele era, tinha algo para lhe dizer, mas quando avançava para lhe falar, hesitava e recuava sempre, e o tempo foi passando acabando por nunca conseguir fazê-lo.
É algo que ainda hoje me perturba por não saber se lhe causaria sofrimento ou alguma paz de espírito.
Mas recuemos para os nossos verdes anos 66/67 juventude plena de sonhos e ilusões, das paixões e amores velozes, mas o espectro da guerra colonial e a mobilização pairavam já no horizonte.
Poderia haver em alguns de nós um misto de curiosidade e descoberta por África, como jovens irreverentes de espírito aventureiro imaginávamos como seria experimentar a adrenalina no teatro de guerra.
Mas para os nossos pais era um momento que esperavam com angústia, e depois se seguiam dois anos de preocupação e saudade ansiosos pelo regresso sempre em sobressalto.
Sabemos como era o drama nos embarques dos contingentes militares nos cais de Lisboa, como se fosse o último adeus, o último abraço, o último beijo , num ambiente de desespero, dor , incerteza, e sofrimento.
Certo dia em amena cavaqueira numa conversa de grupo, o assunto era uma disputa amorosa, e eis que sem esperar sou surpreendido com dois fortes socos na cara pelo meu confrontante o Pedro, que de imediato se pôs em fuga tipo bate e foge, que me deixou sem reacção.
Não fiquei com sentimento de vingança, mas as relações de convívio e amizade entre os dois terminaram ali , e assim o tempo foi passando sem mantermos qualquer contacto, cada um na sua vida profissional pois ambos filhos de famílias humildes havia que trabalhar cedo, ele como montador de toldos, eu como serralheiro mecânico na Indústria automóvel, e assim foi até a incorporação militar, eu na Força Aérea e ele no Exército.
Nas tripulações dos Helicópteros, pela nossa ação na cobertura por todo o território de intervenção militar, aterrando e descolando em todo o lado, picadas, no mato, em aquartelamentos, no interior de pequenos destacamentos, eram frequentes muitos encontros com amigos e conhecidos.
Ali naquela África longínqua estavam os jovens do nosso tempo, companheiros de escola, do trabalho, do bairro, e por vezes com laços familiares, primos, irmãos, cunhados, etc., era a juventude de uma geração sacrificada com tantos anos de guerra.
Em Cabo Delgado nas missões que cabiam á Esquadra de Helicópteros (Índios) com destino a Nangade, quase sempre voávamos ao Tartibo levando mantimentos e correio, como não tinha pista de aterragem só o Helicóptero podia fazê-lo.
O Tartibo como muitos outros era um buraco aberto no coração verde da selva Africana, e este ficava perto de Nangade a que pertencia como destacamento, com um grupo reduzido de militares, situava-se na fronteira com a Tanzânia na margem sul do Ruvuma em zona de passagem e infiltração dos guerrilheiros da Frelimo.
Rio Ruvuma cujas águas muito sangue levaram na sua corrente para o mar, lembro o Capitão Ventura Piloto Aviador que ali perdeu a vida mergulhando com o seu T-6 abatido por fogo antiaéreo .
Numa destas deslocações ao Tartibo uma surpresa me esperava; entre os camaradas que se aproximavam do Helicóptero para receberem os mantimentos e correio, uma cara me era conhecida, fixámos o olhar um no outro, indecisos sem nada dizer como que espantados.
Ali estávamos os dois, numa zona de guerra, que local tão marcante para o reencontro, o Pedro e eu , a quem ele presenteou cerca de quatro anos atrás com dois surpreendentes socos na cara por causa do namorico.
Qual vingança ? Qual pedir explicações ?
Depois de alguma hesitação de ambos, abraçá-mo-nos fortemente com uma enorme alegria num momento de grande emoção tão longe da nossa terra, o que estava para trás ficou esquecido e a amizade de novo reatada.
Assim nos fomos encontrando nas deslocações que ali ia fazendo, o Pedro era sempre o primeiro a aproximar-se do Helicóptero quando via que era eu o mecânico que lá vinha, pois também a partir daí mesmo não me pertencendo eu procurava sempre fazer esses voos para estarmos uns minutos juntos.
Mas como diz o ditado: "não há mal que nunca acabe , nem bem que sempre dure "
Até que um dia no reabastecimento habitual ao aterrarmos , o Pedro não comparece á chegada .
Notei um certo embaraço nos camaradas que sabiam da nossa amizade, e já preocupado perguntei : então o Pedro ?
Responderam: não soubeste que há dias sofremos um bombardeamento ?
Sim soube, respondi logo nervoso.
Pois o Pedro corria para o abrigo e foi atingido tendo morte imediata.
Gelei ! fiquei abalado e tentei manter a calma, foi curto este tempo de reconciliação e amizade, na guerra eram breves os momentos de alguma felicidade, só o tempo era lento parecendo durar uma eternidade a chegada do dia do regresso.
Descolámos de volta para Muéda, ali ficavam estes bravos soldados na incerteza constante pela vida, quantos mais a perderiam futuramente ali naquele buraco ?
Terminavam assim tragicamente os momentos de alegria para os dois naqueles curtos espaços de tempo em que nem cortávamos o motor (turbina) do Helicóptero, mas era o suficiente para considerarmos um dia bom naquele ambiente tão pesado e adverso .
A rotina continuou , mas perdi a vontade de voltar àquele local, sabia que á chegada já mais iria ver á frente de todos o amigo Pedro para aproveitarmos o máximo daquele pequeno momento.
Alguns anos depois do regresso deixei de ver o senhor de preto a quem nunca tive a coragem de abordar, era o pai do Pedro, queria ter-lhe contado tudo isto e não consegui, ainda hoje sinto alguma mágoa.
Achei por bem que não devia incomodar no seu recolhimento e dor, alguém que perdeu um filho no auge da juventude e tão longe de si , sem mesmo os restos mortais poder ter.
Que descansem em paz !
Muéda de todos nós
Que pisámos o teu chão
Com tanto sangue regado
Dizemos com emoção
Que os mortos caminharão
Para sempre ao nosso lado
Francisco Serrano
Mecânico de Helicópteros - Moçambique 71/72
Abraço, camarada Serrano!
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