quinta-feira, 25 de junho de 2020

LEMBRANDO UM AMIGO...UM IRMÃO.


Corria o ano de 1974, dia 12 de Junho, e estava no destacamento do Cazombo.
Nesse dia veio o pedido de um TEVS "evacuação" do comando do Batalhão no Cazombo.
Piloto e Mecânico a bordo, motor em marcha e lá descolamos com destino à Calunda , evacuado a bordo, voltamos ao Cazombo, face à gravidade do evacuado descolamos para Teixeira de Sousa onde foi levado para o hospital. Regresso ao fim do dia ao Cazombo.
Ao jantar um dos OPC relatou o abate de um Alouette III em Cabinda. O assunto ficou por ali e fui me deitar-me.
Dia 13, logo cedo, voamos para o Jimbe e de seguida voltamos ao Cazombo.
Após abastecer o DO-27, lá cheguei às instalações onde os OPCs me informaram dos nomes dos tripulantes.
Foi terrível e difícil de aceitar, que o meu irmão de armas tinha sido abatido no heli canhão e faleceu bem como o piloto.
Meu irmão Paiva, continua no teu voo eterno, nunca te esquecerei nem os bons momentos que passamos na Ota, Sintra, OGMA, Tancos, Luanda, e todas as histórias que vivemos. 
Descansem em Paz .

O Alouette III 9367 da BA9, foi abatido em Muabi-Cabinda, tendo falecido o alferes piloto José Carlos Raimundo dos Santos e o cabo MMA Manuel Angelo de Matos Paiva.



Por:


quinta-feira, 11 de junho de 2020

QUANDO SPÍNOLA ASSUMIU O PROBLEMA DO "BRANQUINHO"


No dia 26.05.2020, o camarada Bernardes Neves, postou na página “Veteranos da Guerra Colonial” no Facebook, o vídeo da reportagem “Ninguém fica para trás”, que ilustra a recuperação dos corpos de vários camaradas falecidos em Guidage em 1973.
A reportagem, datada de 2008, por razões várias, não a vi na altura e só agora tive oportunidade de o fazer.


Como verão mais à frente, o massacre de Guidage teve na minha vida, uma influência determinante. No entanto, embora muitas vezes tenha pensado no assunto, desta vez, vá-se lá saber porquê, desencadeou em mim um misto de emoções tremendo.
Comentei isso no post do Bernardes Neves e ele perguntou-me o porquê dessa emoção.
Quando comecei a responder, a “prosa” foi crescendo e resultou no texto que a seguir transcrevo.
É uma longa história, com muitos antecedentes e que me vieram à memória naquele momento.
Para começar, o meu percurso na FAP não foi fácil. Ofereci-me como voluntário aos 17 anos, porque as relações com a minha família não eram as melhores. Não era, nessa idade, um gajo “bem comportadinho” e, vivia em guerra contínua com a família.
Hoje, olhando para trás com os olhos de um adulto, tenho de concluir que, apesar de a minha família ser do tipo conservador e castrador, eu também tinha as minhas “culpas no cartório”. Era uma família grande e que achava que o facto de a minha mãe ter ficado viúva muito cedo, lhes dava o direito de mandar nela e em mim, obrigando-me a pensar pela cabeça deles. A minha revolta deu para o lado errado. Basta dizer que aos 17 anos eu andava no liceu e ainda só tinha completado metade do 5º ano (o actual 9º ano) … à laia de piada (piada parva, claro…), eu costumava dizer que “era aluno, não era estudante".
Senti a necessidade de me tornar independente e cheguei à conclusão que, sem o serviço militar cumprido não havia a mínima possibilidade de arranjar um trabalho que me permitisse “voar sozinho”.
A FAP surgiu como uma salvação para me libertar “do jugo familiar” (aos 17 anos temos a tendência para dramatizar…).
Embora a relação com a minha mãe fosse esplêndida, com o resto da família era uma guerrilha contínua…
Na altura vivia no Entroncamento e o grupo de malta com quem me dava veio mais tarde a criar a UDP (alguns estão agora no Bloco de Esquerda). Em 1969 andei metido na campanha da CDE, com alguns episódios algo caricatos com a pide (que tinha um esquadra no Entroncamento). Era uma zona operária, devido às oficinas principais da CP e que tinha gente de todo o país e daí o facto da pide estar lá em força.
Quando tratei da papelada para a FAP, dado que era menor, tive a necessidade de ter o consentimento da minha mãe, o que não foi fácil, pois ela não concordava. Como sempre, resolvi a questão à bruta: “Ou assinas a autorização ou eu falsifico a assinatura e avanço na mesma!”
Moral da história, em Fevereiro 1971 estava na Ota, de cabelo rapado e metido num fato macaco azul, com mais 600 tipos todos de igual.
A recruta não foi fácil. O comandante era o Major Catroga, paraquedista da linha dura, que achava que tinha de fazer de cada um daqueles putos, um “guerreiro rijo”. Logo aí, a minha posição não foi a mais favorável. Para quê dar instrução com tanta rigidez e tanta minúcia (chegando ao ponto de lidar com cargas de demolição, montagem de armadilhas, estratégias de guerrilha, etc…) quando os 600 putos que tinha à frente poderiam vir a desempenhar muitas tarefas, mas nunca a guerra directa e activa no mato.
Mas enfim, lá me aguentei sem grandes sobressaltos e sem “levar uma porrada”. 
BA2 Ota - 30/4/1971 Juramento de Bandeira da 1ª. de 1971 - foto revista Mais Alto

Quando chegou a altura de escolher a especialidade (já não me lembro se foi no fim da recruta ou logo no início da “candidatura” a voluntário), escolhi como duas primeiras opções Controlador Aéreo e Radarista de Detecção (embora o meu sonho fosse a pilotagem, a minha “elevada estatura” – 1,60m… - e o facto de usar óculos, há muito que tinham afastado essa hipótese).
A especialidade que me deram foi Abastecimento. Primeira patada!! Enfim, nada a fazer, o que me interessava era ser independente e não ter de responder a ninguém…
Como facilmente se entende, fui-me meter no pior sítio… soldado raso num ambiente que trata de nos fazer entender da pior maneira possível que “aqui estás abaixo de cão 3 palmos”… que ingenuidade a minha…
Tinha um familiar na FAP (um tio por afinidade) que era, na altura, 1º Sarg. de Abastecimento. Esse foi um dos que mais me fez querer “largar o ninho” na primeira oportunidade. Como era militar achava que tinha o direito de mandar em mim… azar dele… eu não era exactamente um puto obediente. Houve um dia que o animal, já não me lembro bem porquê, me disse com o seu semblante habitual: “Um dia parto-te um braço!” A minha resposta foi “e eu dou-lhe com uma cadeira pela cabeça abaixo!” Valeu a intervenção da minha tia para a coisa não acabar mal…
Entretanto lá foi seguindo a “nobre carreira das armas” sem grandes sobressaltos… mais desenfianço, menos desenfianço, lá me aguentei e acabei a especialidade.
E chegou a altura de escolher a unidade de colocação.
Mais um pormenor: tinha mais um familiar na FAP (também tio por afinidade, com quem eu tinha uma relação normal): um Major que trabalhava na Direcção do Serviço de Pessoal, ou seja, o gajo ideal para “dar um jeitinho” para eu ficar na unidade que queria.
Falei com ele e fiquei descansado sobre o assunto.
Na altura eu morava nos Olivais, em Lisboa, e é claro que escolhi o AB1 – Figo Maduro (julgo que actualmente tem outra designação). E pronto… lá fui para o AB1… mas para apanhar o DC-6 para a BA4 !! Segunda patada!!
BA4 - Lajes - Açores

Mas no fim de contas, acabei por gostar de estar nos Açores. Tínhamos um grupo de malta porreira e o ambiente era agradável e descontraído. O único senão foi o chefe que me tocou pela frente: o 1º Sarg. Relvas… uma autêntica fotocópia do meu tio Sargento: gordo, de bigode e bruto que nem uma carrada de mato!!!
Como no grupo de especialistas a camaradagem era óptima, até conseguimos passar por lá quase um ano que acabou por ser o melhor tempo da minha estada na FAP e que lembro até com alguma saudade.
E na sequência do percurso, lá chegou a altura de escolher a “província ultramarina” para onde seríamos mobilizados.
E aqui vou introduzir mais um “pormenor”: nasci em Lourenço Marques, onde estive muito pouco tempo. O meu pai (na altura o gerente e guarda-livros da “Delagoa Plantation”, uma empresa de dimensão apreciável em Moçambique) morreu quando eu tinha 2 anos e voltámos para a “metrópole”. Por lá ficaram vários familiares com quem mantínhamos um contacto permanente (de vez em quando vinham “ao puto” e ficavam em minha casa).
Escolhi Moçambique e, mais uma vez fiquei confiante que seria para aí que iria.
Quando as mobilizações saíram na ordem de serviço, lá veio o choque: mobilizado para a Guiné! Terceira patada!!
BA6 - Montijo

Vim para Lisboa e fiquei como adido na BA6 Montijo, para fazer as inspecções médicas.
Nessa altura, fui acometido de dores fortes no abdómen e fui parar ao Hospital Militar da Estrela. Diagnóstico: apendicite.
Fui operado, cumpri umas semanas de convalescença, ao fim da qual fui a uma junta médica.
Lembro-me como se fosse hoje… 3 coronéis médicos, todos de cabelo branco e ar sisudo… e lá veio diálogo que veio a determinar tudo o que me aconteceu no ano seguinte:
- “Então, como é que te sentes?”
- “Sinto as mesmas dores que sentia antes de ser operado” (e era verdade!)
A resposta do coronel que chefiava a junta (que afinal era mais uma quadrilha…) veio duma forma brusca, fria e com uma entoação autoritária:
- “Tu estás é a tentar protelar a tua ida para a Guiné!”
Imediatamente, num gesto brusco, revelador duma certa raiva, pegou num carimbo e com toda a força carimbou uma folha que tinha na frente.
Fiquei parado… siderado com a decisão, amedrontado com a atitude brusca… durante uns segundos (que me pareceram muito longos) fez-se um silêncio gelado. A minha cabeça trabalhava a 100 à hora… sentia-me doente, cheio de dores e estavam a dizer-me que estava a fingir… nem sequer estava a pensar que isso significava que ia seguir de imediato para a Guiné… estava apenas chocado porque estava a ser olhado como um aldrabão…
O tal coronel que chefiava “o bando” olhou para mim com um ar irado e disse-me quase a gritar:
- “Podes sair!”
Sai da sala, mecanicamente, ainda a tentar perceber o que tinha acontecido. Aquilo que eu esperava que tivesse sido algo semelhante a uma consulta médica, não tinha passado de 3 frases e uma ordem de saída…
Os momentos e mesmo os dias que se seguiram já foram apagados da minha memória.
O momento que recordo a seguir foi a manhã de 27.12.1972. Estava um dia frio e no Figo Maduro o vento enregelava-me até aos ossos, apesar da camisola de lã que tinha vestido por baixo da farda de Verão … afinal, ia para África, não podia ir com a farda de Inverno que era grossa, pesada, áspera… só a tinha usado uma ou duas vezes. A meio da viagem, trataria de tirar a camisola de lã.
Embarquei no Boeing 707 e o desconforto desapareceu. Que luxo…
A nível de aeronaves, pouco conhecia. Recordo o avião em que fiz o meu baptismo de voo, teria cerca de 5 ou 6 anos de idade, e aconteceu por iniciativa do Tem. Eiró Gomes, piloto na BA3, Tancos, e amigo da família. Um Junkers JU52 (julgo eu) que era usado para o lançamento dos paraquedistas. Lembro-me do barulho ensurdecedor do vento na chapa metálica que constituía o revestimento do avião. Quase não nos ouvíamos uns aos outros. O empolgamento e o entusiasmo de voar pela primeira vez nem me deixou sentir medo…
Depois, voei em DC-6 entre a BA4 e Lisboa. Por isso, ao entrar no Boeing 707, estava a entrar numa dimensão diferente, um avião espaçoso, confortável e que transmitia segurança.
O momento seguinte que recordo acontece quando o avião se aproxima da BA12.
BA12 Bissalanca

Espreitei pela janela e sofri um choque. Embora nascido em África, como já referi, sai de lá com 2 anos. Não tinha qualquer memória desses tempos.
Para mim, a África era um continente luxuriante, de selvas frondosas, verdadeiros mares verdes e extensos… resultado dos livros que lia, das fotos de família em Lourenço Marques, nas praias moçambicanas e de outras zonas de Moçambique. O que estava a ver naquele momento era uma terra avermelhada, com umas palmeiras esguias e enfezadas… um cenário desolador…
O pensamento que me veio à cabeça foi qualquer coisa como “Porra! É ali que vou passar os próximos 2 anos!”
Rodas no chão, avião parado, abertura das portas… cada um de nós a aproximar-se da porta. Novo choque… e este mais contundente… o momento em que saio e em que aquela África bate na minha cara. A sensação que tenho é a mesma que temos quando  abrimos a porta de um forno de padeiro e levamos com a baforada quente. Neto de padeiros e depois de morar até aos 17 anos no andar de cima duma padaria, conheço bem a sensação. Mas o cheiro agradável do pão acabado de cozer foi substituído por uma amálgama de cheiros desagradáveis: mofo, humidade, lixo…
Desço a escada do avião e sinto o calor e aquela humidade asfixiante a entrar-me no blusão da farda, a empapar-me a camisa de suor (a camisola de lã ficou na casa de banho do avião pouco tempo depois de iniciar a viagem… encafuei-a no compartimento destinado aos papéis… para que raio quereria eu uma camisola interior de lã se ia passar 2 anos em África…).
Levei vários dias a adaptar-me àquele malvado clima. Andava como um autómato… cada movimento parecia acarretar esforço, cansaço e calor, sempre mais calor e humidade… pegajosa, doentia. Um ambiente que nos consumia o esforço e a vontade, que nos esvaziava o pensamento, que nos oprimia.
Logo a seguir à chegada, fui tratar da minha instalação. Havia, salvo erro, 3 pavilhões para especialistas. Barracões rectangulares, cobertos a chapa de zinco… a habitabilidade
e o conforto adivinha-se…
Para “ajudar”, não havia camas disponíveis… deram-me um colchão, lençóis (que mais pareciam pano de tenda) e um armário ferrugento e mal cheiroso.
Durante um par de semanas foi essa a minha situação, até finalmente conseguir arranjar uma cama e um mosquiteiro… até lá, passei as noites a ser devorado por mosquitos. As noites alternavam entre tapar-me todo para fugir às picadas e ter depois de me destapar porque o calor era insuportável.
As dores que sentia e que tinha referido na célebre junta médica que me tinha empurrado para a Guiné, resultavam duma infecção que, com o clima local, se adensou e que rapidamente começou a fazer efeito. Deixei de conseguir comer, as dores eram cada vez mais fortes e a vida era um tormento permanente. Quando tentava insistir em comer qualquer coisa, por pouco que fosse, acabava quase sempre por “largar a carga ao mar”.
Ao fim de alguns dias, não me lembro quantos, a zona da cicatriz da operação ao apêndice, estoirou literalmente com a infecção. Fui parar à enfermaria e daí directo para o Hospital Militar de Bissau. Foi a primeira de muitas visitas…
Limparam toda a zona infectada e a cavidade interior, colocaram-me um dreno e lá fiquei uns dias internado até a ferida ficar com um aspecto menos mau…
A recordação que tenho da enfermaria faz lembrar os filmes da II Grande Mundial…
várias filas de camas, numa sala gigantesca (42 camas…). Gente armazenada num depósito com as mais variadas situações… cabeças ligadas, braços e pernas engessados, membros amputados… Sinais de sofrimento e dor mas, alguns mantinham a disposição própria da idade (obviamente, dependendo da gravidade dos ferimentos), alguma alegria no meio daquela amálgama de gente ferida, anedotas e piadas fortes que amenizavam de certa maneira aquele cenário terrível.
No espaço de 4 ou 5 meses, fui internado nas mesmas circunstâncias por várias vezes.
As dores faziam parte de cada dia, de cada momento. Deixei de conseguir raciocinar duma forma lúcida. A única coisa que estava sempre presente era a dor. Uma dor forte que me roubava as forças, que me cortava o pensamento…
Deixei de pensar no que quer que fosse, deixei de ter vontade própria. Vivia apenas para os momentos em que a dor aliviava. Consegui arranjar auto-injectáveis de morfina (e, lamento muito, não vou dizer onde consegui desencantá-los...tratem de imaginar. E se conseguirem descobrir...guardem para vocês...)…injectava-me às escondidas e gozava dos momentos de alívio que me proporcionavam. O efeito da morfina é algo mágico…assim que entra na veia a dor desaparece de imediato.
E sente-se uma paz enorme. O mundo deixa de existir à nossa volta e “estamos bem”…
Ao fim de algumas horas a dor voltava… 
Hospital Militar de Bissau

No mês de Maio 1973 (não me lembro do dia exacto) mais uma vez a infecção explodiu…lá fui para o hospital e de novo…mais do mesmo: raspagem da zona interior afectada, limpeza, suturação e dreno…
Alguns dias depois de lá estar fomos avisados de que o Gen. Spínola vinha visitar a enfermaria. Tinha havido um ataque violento em Guidage e os feridos estavam no hospital.
Foi a primeira vez que o vi. Avançou pelo meio das camas, acompanhado de um oficial (salvo erro um capitão), pelo director do hospital e mais um grupo de médicos. Foi falando
com os vários feridos de Guidage…quis saber como tinha sido, qual era a extensão dos ferimentos e ia perguntando ao director do hospital o que estava a ser feito com cada um deles.
A cama a seguir era a minha, olhou para mim, apercebeu-se que tinha o abdómen ligado
e perguntou-me, com a sua voz pausada e característica:
- “Também foste ferido?”
-“Não meu General, eu sou da Força Aérea e estou com uma infecção há meses”
- “Mas estás na Guiné há pouco tempo, não?” (eu estava muito branco, com a palidez dum cadáver… nada que se parecesse com quem está num clima africano…)
- “Não meu General, estou na Guiné desde Dezembro”
Aí aproveitei e “despejei o saco”… contei a quantidade de vezes que já tinha estado internado pelo mesmo motivo, sem que alguém desse solução ao caso., nem no Hospital nem na enfermaria da Base, e das dores que me acompanhavam sempre…
Ele voltou-se para o director do hospital, olhou-o de frente e disse-lhe com uma voz autoritária:
- “Levem este homem para a sala de observação. Quero saber o que se passa com ele.
Amanhã volto cá”
De repente os senhores oficiais médicos perderam o seu ar altivo, superior e ficaram com cara de cachorro acossado.
O General retirou-se e eu fiquei rodeado pelos médicos. Um deles recuperou o ar superior e lá disse duma forma jocosa:
- “Pronto… já temos mais um caso clínico do General!”
Fiquei depois a saber que, sempre que aparecia um caso estranho, ele queria saber o que se passava e voltava no dia seguinte para saber o resultado. Os médicos sabiam dos hábitos dele e não largavam o assunto enquanto o caso não fosse resolvido. Sabiam que ele tinha memória de elefante… depois de fazer a pergunta tinha de haver uma resposta.
Ao fim de cerca de 2 horas eu estava numa sala do bloco de operações. Deram-me uma anestesia local (epidural) e alargaram a incisão do dreno. Um dos médicos limpou a cavidade com uma compressa e disse para os outros, mostrando a pinça com a compressa:
- “Eh pá, não estou a gostar nada disto…”
Aí, eu que estava acordado, embora um pouco abananado perguntei:
- “O que é que se passa?”
Ele não me respondeu e disse para um deles:
- “Dá-lhe anestesia geral”
Só tive tempo para ver o fulano injectar a anestesia no tubo do soro. Ao fim de alguns segundos “apaguei”…
Acordei (não sei se no dia seguinte ou muitas horas depois) numa enfermaria pequena, com 6 ou 8 camas, toda muito limpa, impecável… nada comparável ao depósito de feridos em que tinha estado. Estava no SO.
Tentei dobrar o corpo para me soerguer e a dor fez-me gemer. Estava ligado desde a parte de baixo do peito até “aos ditos”.
Quando tacteei a mão ao abdómen, corri a mão ao longo da barriga e deu para perceber que tinha um corte longo…
Só depois reparei que tinha um frasco de soro ligado a um braço e outro de sangue ao outro.
Entretanto, o sargento enfermeiro veio falar comigo e lá me disse que eu tinha sido operado aos intestinos. Nada mais do que isso…
Ao fim de um par de horas, apareceu de novo o sargento e disse-me:
- “Tens uma visita…”
Logo de seguida entrou o General Spínola, acompanhado do General Costa Gomes (que, soube mais tarde, estava em visita oficial à Guiné), do director do hospital e mais um Major médico. Olhou para mim, deu um sorriso e disse-me
- “Então branquinho, já te sentes melhor?
- “Meu General, não tenho dores…há muito tempo que não me sentia tão bem…”
Ele voltou a sorrir, deu uma pequena palmada no ombro e disse-me.
- “Isso agora vai…”
Trocou algumas palavras que não consegui ouvir com o General Costa Gomes, cumprimentou os restantes doentes com um “Boa tarde” e saiu. Nunca mais o voltei a ver.
O tal Major médico (se a memória não me trai, Maj. Pinto Barata) ficou e veio falar comigo.
Contou que tinha sido ele a operar-me. O meu problema tinha sido uma rotura intestinal com infecção grave. Tiveram de me cortar cerca de 25cm de intestino e tudo tinha corrido bem.
E contou-me também que a frase do outro médico quando me tinham levado para a sala de operações:
- “Eh pá, não estou a gostar nada disto…”
se explicava porque, ao limpar a cavidade interior tinha encontrado fezes!!!
Eu já estava com uma rotura enorme e com as fezes a espalharem-se pelo abdómen.
Com o clima da Guiné, estava a horas de ter uma septicemia e aí… nada feito…era mais um que regressava à Metrópole “numa caixa de pinho do outro lado do mar”…
A partir daí, toda a gente, incluindo os médicos me tratavam por “branquinho”… e, de certa forma, fui tratado como um “cliente especial”…
Vim depois a saber que tinha doença de Crohn e que a guerra tinha acabado para mim.

Fiquei mais cerca de uma semana no SO, depois voltei à tal enfermaria-depósito e mais tarde veio uma ambulância da Base e fiquei internado cerca de um mês na enfermaria da Base.
De repente, o mundo ficou diferente… deixei de ter dores (com excepção das que decorrem duma operação em que me abriram “de alto a baixo”, mas que, comparadas com as anteriores eram apenas um ligeiro incómodo).
E voltei a ter fome, como há muitos meses não tinha. Uma fome tremenda… estava sempre à espera da hora da refeição.
Ainda me lembro que, como estavam 2 ou 3 paraquedistas, do BCP12, que ficava paredes meias com a Base, vinham trazer o pão para o pequeno-almoço. Eu adorava aquele pão! Era uma verdadeira delícia.
Quando cheguei à Guiné, o General Spínola era considerado como alguém por quem se tinha respeito… não medo, mas sim RESPEITO. Deu para perceber porquê…
…………………………..
E esta história termina por aqui… ao fim de algumas semanas, vim evacuado para Portugal.
Quando cheguei a minha casa, em Lisboa, pesei-me pela primeira vez em muitos meses… pesava 43kg!!!
(Para vos dar uma ideia: agora peso entre 63 e 64Kg e não sou gordo. Imaginem o que significa menos 20Kg num ser humano com apenas 1,60m de altura…)
A fome continuava… comia que nem um desalmado! Ao fim de 4 ou 5 meses já tinha 65Kg. Tive de começar a “racionar” para não ficar gordo.
Entretanto voltei à Junta Médica da FAP, onde tornei a encontrar 3 coronéis médicos…não me lembro se eram os mesmos, mas o “chefe da quadrilha”, esse era o mesmo…
Tinha passado menos de uma ano desde a junta anterior… não sei se me reconheceu.
Saí de lá com um papelucho no bolso que diz “Incapaz para o Serviço Militar. Apto para angariar meios de subsistência”.
Nas várias vezes que estive no Hospital Militar de Bissau, como durante parte do tempo não estava “agarrado à cama”, andava por ali a circular e, sempre que chegava alguma evacuação, acabava por assistir. Embora, sendo um Cabo Especialista duma área que era, afinal, algo como o “backoffice” da guerra, eu vi durante esse período vi a pior face dessa guerra… feridos graves, estropiados, e muitos mortos…
Se alguém um dia vos disser que a Guerra Colonial foi “uma colónia de férias” (como já li algures…), não acreditem!!!
Quando vi o vídeo no Grupo, esta fase terrível da minha vida, veio-me à memória…recordei cada minuto, cada episódio, cada pedaço de sofrimento e dor e as lágrimas correram-me pela cara…
Sou um gajo de sorte…
Estou vivo graças a uma data de camaradas que morreram num ataque violento e graças a um Homem que olhou para mim e fez o que sempre fazia: queria saber o porquê de cada situação estranha e exigia que fosse resolvida.
E o resto não fica na história, porque como dizia Paul Valéry “Os povos felizes não têm história”

Por: Vitor Beça Cabo Especialista de Abastecimento









quinta-feira, 4 de junho de 2020

PRIMEIRA MISSÃO DA FAP EM ANGOLA



Os aviões deixaram Lisboa na noite de 11 de Abril de 1959, escalaram o aeroporto do Sal, em Cabo Verde, e chegaram ao aeroporto civil de Luanda, Craveiro Lopes, em 19 de Abril.
As actividades em Angola incluíam demonstrações de ataques simulados pelos PV2, descarregando bombas de napalm sobre um alvo, seguindo-se bombardeamentos com bombas GP de 110 lb (50 Kg), e ataques a picar, disparando as metralhadoras M2 de .50 polegadas (12,7 mm) do Nariz.
A demonstração não deixava de se relacionar com o possível emprego do poder aéreo em actividades anti-rebelião. 
A demonstração foi seguida por uma maciça largada de três pelotões de  para-quedistas pelos C-47 Dakota e C-54 Skymaster, proporcionando uma demonstração inédita nos céus angolanos. Similares demonstrações foram proporcionadas em outros aeródromos do norte de Angola, antes que a missão retornasse à metrópole, em 1 de Maio. Esta missão ficou designada por "Exercício Himba"-

Mais de um ano se passaria antes que a FAP restabelecesse uma força permanente em Angola, devendo-se o relativo atraso à provisão de bases adequadas ao uso militar. 
As primeiras destas bases seriam a BA9 de Luanda, nas imediações do aeroporto internacional, e o AB3 (Aeródromo Base do N'gage), no norte do território.
Os trabalhos de terraplanagem e as obras de construção civil começaram em Outubro de 1960 na BA9 e em Fevereiro de 1961 no AB3, mas os aviões que viriam a ser usados começaram a chegar ao aeroporto de Luanda, em 19 de Maio de 1960, com a aterragem do PV2 com o número 4619. Este foi complementado, em devido tempo, por mais cinco, os 4603, 4620, 4621, 4623, e 4629 e mais o PV2D 4607, este para proporcionar capacidade de transporte à subunidade que se viria  a tornar a Esquadra 91, como um dos componentes do Grupo Operacional 901, sob o comando do Ten. Cor. Manuel Diogo Neto.

A Base Aérea nº.9 tornou-se operacional em Maio de 1961, embora não fosse oficialmente inaugurada senão em 1 de Junho de 1962, e à Esquadra 91 juntou-se, no Gupo Operacional 901, a Esquadra 92, que voava seis transportes Nord 2502A Noratlas, equipados com turboreactores "Marboré" nas pontas das asas, para melhorar o desempenho à descolagem, em condições de temperatura e altitudes elevadas