quinta-feira, 26 de outubro de 2017

TUDO, MENOS O CORREIO!

 
Cazombo - foto de Gonçalo de Carvalho

Também tenho uma história passada no Cazombo, com a aterragem de um PV2 pilotado pelo Capitão Carvalho.
O avião vinha do Luso para o Cazombo a transportar mantimentos, que já se tinham acabado. Trazia caixas com frangos e outros mantimentos. O 2º. Sarg. Pinto que era o radio-telegrafista de bordo informou-nos que um dos motores estava com falhas, o outro estava em bandeira e pedia autorização para deitar a carga fora para aliviar o peso do avião.
Contactei o AB4 - Henrique de Carvalho, a pedir autorização que foi consentido.
Depois pedimos ao sargento Pinto para passar a informação ao piloto, mas por tudo, que não deitasse o correio fora pois era a única coisa que podíamos ter.
Passado pouco tempo lá apareceu o PV2 pilotado por um extraordinário piloto, que conforme bateu com as rodas no chão no princípio da pista ali ficou. O avião veio rebocado à mão por todo o pessoal do AM43 e claro que houve festa.
Voltámos a comer peixe frito com arroz ao jantar e arroz com peixe frito ao almoço, que já tinha sido descongelado várias vezes...mas o correio salvou-se !


Por:

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

PROCURA-SE UM AVIADOR

Algures no leste de Angola 1971 - foto de José Carvalho

Procura-se um Aviador, nem jovem nem velho, apenas antigo. Que tenha sensibilidade para lidar comigo e compreenda minhas manias, pois já estive à beira do desaparecimento e fui ressuscitado – ou restaurado – como dizem por aí… Cada novo pedaço de tela, cada nervura, representa cicatrizes dos lanhos de uma vida de voos e pousos, mais rangidos, estalidos e tendências deste meu corpo – ou fuselagem…
Meu piloto poderá falar quando quiser, mas, sobretudo, terá que saber escutar, ouvir e entender os sons que sou capaz de emitir: como o assobio do vento relativo nos meus contornos; o ronco do meu fiel motor que, às vezes, espouca e tosse, com um bafo de fumaça azulada.

Procura-se um humano que compreenda meus códigos, que talvez sejam mensagens diluídas pelo tempo e remanescentes de aviadores antigos que me conduziram, ou a outros iguais a mim.

Procura-se um aviador que não se importe com meu cheiro de dope, graxa e gasolina, também não se melindre quando eu o respingar de óleo. Deverá ainda saber usar a bússola e ler uma carta seccional, reconhecendo referências no terreno, compensando o vento e mantendo a rota, sem precisar de mostradores elétricos. Este piloto decerto apreciará as pistas de grama e cascalho.

O aviador que procuro deverá saber extasiar-se com minhas antiquadas chandelles, tonneaux e loopings, apenas alegres e espontâneos bailados, sem pretensão a aplausos ou troféus.

Procura-se um aviador que tenha prazer de voar a qualquer hora, mas preferindo decolar ao nascer do sol, ou conduzir-me nas luzes mágicas do sol poente. Meu piloto será um saudosista por certo, sobrevivente do tempo em que um avião era um avião, e não um foguete com asas, recheado de automatismos.

Este piloto será tido como esquisito, pois será reservado e escondido, numa surrada jaqueta manchada de óleo. Será encontrado, junto com poucos iguais a ele, numa boa conversa de hangar.

O aviador que vier por este anúncio será aquele que procure poesia na aviação, que tenha amor pela máquina.

Gago Coutinho 1969 - foto de Eduardo Cruz

Procura-se este aviador raro que tenha carinho por mim, a despeito de minha idade, e que, principalmente, não permita que lhe arranquem o romantismo.

Interessados dirigirem-se ao Hangar da Saudade, no Campo dos Sonhos, procurar pelo velho, porém majestoso, North American Texan T-6, mais conhecido por “Têmeia”.
(Autor desconhecido – Encontrado no salão de estar do ACSP), via Franco Ferreira, tenente-coronel da reserva da FAB

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

S.A.R. O SENHOR D.DUARTE PIO DE BRAGANÇA, PRÍNCIPE DA BEIRA E A FAP.

D. Duarte no AB3 Negage


Como monárquico, tenho o maior respeito pelo actual Duque de Bragança assim como uma enorme admiração pelo patriotismo, cultura e comportamento civil do Senhor Dom Duarte.
São já tantas as suas obras e tal tem sido a sua enorme contribuição para a grandeza de Portugal que tentar fazer dele o que nunca foi só mancha a “folha limpa” do Senhor Dom Duarte.
Falei longamente sobre o assunto com o historiador Prof. Mendo de Castro Henriques, que é o biógrafo da Casa de Bragança (e, coincidentemente, meu patrono na Sociedade de Geografia de Lisboa) corrigindo-o para o errado grande destaque à acção de D. Duarte na FAP dado no seu livro “Dom Duarte e a Democracia”. Tudo falso! Lembrei-o que, quando a verdade acabar por ser exposta (mais cedo ou mais tarde sempre é), os leitores serão tentados a pensar que outros feitos mencionados de grande destaque também o poderão ser. O que mais me admirou, e devo dizer que me decepcionou, foi que Dom Duarte, que leu o manuscrito antes da publicação, não tenha mandado eliminar o que se refere à sua passagem pela FAP.
Nas férias de verão de 1967 um importador Português de helicópteros oferece ao Dom Duarte a frequência de um curso de PPH (Piloto Privado de Helicópteros) em França. Lá voou em Hughes 300 e obteve a respectiva licença Francesa que foi reconhecida pelo DGAC. Totalizou cerca de 20:00 de voo.
Apesar de não ter concluído o curso complementar dos liceus no Colégio Militar, como seria necessário, foi, mesmo assim, dispensado da recruta. Mesmo com forte deficiência de visão, foi dado apto para pilotagem pelos serviços médicos da FAP e apresentou-se em Tancos como Soldado Cadete para frequentar o Curso Complementar de Pilotagem de Helicópteros. Vale lembrar que nestas alturas o CCPH só era dado a pilotos já brevetados em T-6 ou T-37.

PH1/67, D. Duarte é o 4º. da direita.

Dom Duarte, como Cadete, foi incluído no curso de helicópteros frequentado pelos Aspirantes do curso P1/67, que já tinham sido brevetados em Aveiro (Chipmunk e T-6).
Recebeu a instrução de helicóptero normal com o pequeno detalhe: nunca voo solo (largado). Um dia foi chamado ao gabinete do Comandante da base que lhe colocou as asas no peito e o promoveu a Aspirante.
Depois da conclusão do curso, um camarada de curso foi um bom amigo e, arriscando a sua própria carreira, num voo de navegação, após uma aterragem, autorizou o Dom Duarte a experimentar um breve voo solo. Este voo “secreto” foi a única vez que Dom Duarte voou solo numa aeronave da FAP.
Ao ser mobilizado para o Ultramar Dom Duarte foi colocado no AB3 Negage onde não só não existiam helicópteros como era até raro lá passarem! Apesar de manifestamente Dom Duarte muito desejar voar como os outros pilotos, “to add insult to injury” estava expressamente proibido (sabe-se lá por quem) de voar em monomotores, donde só lhe restava voar como co-piloto no Beech D.18S da base, o que acontecia raríssimas vezes pois todos os outros pilotos também queriam ter essa oportunidade e o avião não voava mais do que uma vez por semana.
Quando eu cheguei ao Negage ele já lá estava havia uns meses. Era uma pessoa normal, como nós todos e fizemos uma boa amizade. Nos meus passeios de mota à volta do Negage levei comigo várias vezes o então Príncipe da Beira (na altura tratávamo-lo por “tu” pois era, para nós, simplesmente o Duarte, nosso camarada piloto) e foi para mim um fantástico cicerone ao me mostrar os melhores pontos para assistir ao magnífico por do sol Africano.
Duarte piloto
Também fomos várias vezes no seu VW 1500 visitar fantásticas e belíssimas fazendas de café da região do Uíge. Era um bom Amigo!
O que era engraçado é que, se nós, de Furriel a Tenente o tratávamos por “tu”, de Capitão para cima tratavam-no por “Senhor Dom Duarte” (?!) Como para o Capitão França (Cte da EO) e para o T,Coronel Belo (Cte da Base) a presença do Duarte e a situação que ele vivia de “piloto-nãopiloto” só criava embaraços, deixavam-no “desenfiar-se” à vontade (até gostavam!) e assim o Duarte apanhava “boleia” no Noratlas (Guia de Marcha para quê?) e ia para Luanda, e daí para onde quisesse, semanas a fio sem ninguém saber onde parava. 
O “diabo teceu-as” quando o T.Cor. Belo foi substituído pelo T.Cor. Cruz Novo. No dia seguinte de lá ter chegado, entra de manhã na sala de “briefing” com uma prancheta na mão onde tinha a lista dos pilotos. Começou a chamar um a um para se apresentarem. Quando diz “Bragança!” o Cap. Franca disse: “Ah! Esse é o Príncipe, não está cá”. Quando o Comandante perguntou onde é que ele estava e o Cap. França respondeu “não faço ideia!”! Então o Comandante perguntou pela “Guia de Marcha” e quando o Cap. França respondeu só com um sorriso o bom do T.Cor. Cruz Novo, que até era republicano ferrenho (como ele próprio o disse) teve um ataque de fúria e gritou: ”Ou amanhã de manhã ele se apresenta no meu gabinete ou eu levanto-lhe um processo por deserção!” E não estava a brincar! Como o Cap. França sabia que o Zé Inácio Vasconcelos e eu éramos amigos dele, pediu-nos para tentar achá-lo e deixou-nos usar o telefone do gabinete dele.

Negage 1969, Jorge Carvalheira
 e Duarte de Bragança
Depois de vários telefonemas para amigos comuns em Luanda lá ficámos a saber que ele estava numa fazenda algures e pedimos para alguém o avisar urgentemente da “pega” em que ele estava metido.
Cinco dias mais tarde lá apareceu o Duarte no Negage, mas o Comandante já tinha mandado abrir o processo. No dia seguinte foi para Luanda, o Comandante da 2ª.RA deu-lhe por encerrada a comissão e ele foi recambiado para a Metrópole.
Por mais respeito que eu tenha pela pessoa do Duque de Bragança, e tenho muito, acho um absurdo tentar enaltecê-lo deturpando a verdade, não só contando as suas “façanhas” como piloto, como também afirmando que ele tenha sido corrido de Angola por motivos políticos.
Esta é a VERDADE dos factos!

Por:
João M. Vidal

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

UM VOO DE RECONHECIMENTO

DO 27 - foto de José Carvalho

Na guerra, como tantas vezes acontece na vida, criam-se hábitos que, pouco a pouco, se vão enraizando e acabam por se transformar em normas que roçam o vício. Quase sempre condicionam a nossa actuação ao imporem-se como regras subconscientes a que se obedece com irracionalidade.
A luta que travámos em África enfermou, desde o início e talvez por falta de outros recursos, como a fotografia aérea, de uma modalidade de acção, quase viciosa, que, em nossa modesta opinião, muito prejudicou o resultado de algumas das operações que levámos a cabo, sempre com grande esforço e sacrifício. Refiro-me ao chamado voo de reconhecimento visual (RVIS). Era largamente praticado, tanto por iniciativa nossa, Força Aérea, como a pedido dos comandos das diversas unidades das forças terrestres.
Para quem nos lê e é leigo nestes assuntos de guerras especificamente orientadas para a contenção de forças subversivas, como as que enfrentámos em África, devo esclarecer que uma missão de RVIS consistia num voo de observação e reconhecimento visual de determinada área.
Era muitas vezes efectuado pormenorizadamente, com voltas e repetidas passagens, sobrevoando alvos que, uma vez referenciados, localizados e analisados, se tencionavam bombardear ou atacar por terra.
Nas esquadras por onde passámos, sempre tentámos fazer prevalecer o nosso ponto de vista, contrário a tal prática. Parecia-nos importante incutir nos pilotos a noção dos inconvenientes que essa modalidade de acção efectivamente acarretava. Em virtude da convicção que perfilhávamos, sempre procurámos que voos de rotina, como os de transporte, de evacuação de feridos, de substituição de aviões ou tripulantes e até mesmo os de observação e reconhecimento propriamente ditos, fossem aproveitados para que, voando a uma altitude apropriada, permitindo assim uma boa visibilidade, se pudesse fazer uma observação atenta do solo. Mantendo um rumo definido evitavam-se voltas suspeitas sobre o local onde poderia estar instalado um objectivo e que, certamente, não deixariam de alertar o inimigo.
As tripulações tinham, para isso, que desenvolver a capacidade de observação e concentração compatível com a atenção necessária às normas de uma boa pilotagem. Dessa observação de terreno, resultava depois a anotação das coordenadas do ponto onde algo de suspeito parecia existir. Trilhos convergindo para determinado local dentro de uma mata poderiam indiciar a instalação de um aquartelamento ou um ponto de concentração de rotas de infiltração. A confirmação dessa suspeita era verificada num outro voo, igualmente tranquilo, simulando uma rotina, mas cujo objectivo era a confirmação dos indícios anteriormente observados.
Era então elaborado um relatório, distribuído exclusivamente aos serviços competentes, evitando-se fugas de informação, para que fosse avaliado o interesse do que havia sido referenciado. Tudo era executado com a rapidez e eficiência de maneira a permitir uma intervenção tão rápida quanto possível.
O sobrevoo repetido, com voltas apertadas, para melhor visualização, sobre um provável objectivo, sempre nos pareceu, pelas razões apontadas, prejudicial ao resultado final de um posterior ataque.
Lembro, com alguma ironia, que num desses voos de reconhecimento, de tão pormenorizado, até um piano, roubado durante o ataque a uma missão protestante, foi avistado. Estava insolitamente abandonado em plena mata. A solidão em que se encontrava tão nobre instrumento musical tornava-se patética. Parecia que, no auditório verde e sumptuoso de uma floresta africana, ele aguardava pacientemente a chegada de um intérprete que, ao afagar-lhe delicadamente as teclas, tirasse delas, em tão magnífico cenário, uma sonata de Chopin.
Ficámos sem saber o que terá levado a guerrilha a transportar até ali tão pesado instrumento. Talvez o chefe do grupo assaltante fosse dado a momentos musicais. Se foi esse o caso, naquele instrumento não chegou, certamente por falta de tempo ou oportunidade, a interpretar qualquer partitura.
Muitas vezes, no posteriori consequente desenrolar da acção levada a cabo, era encontrado um acampamento mas, por norma, recentemente abandonado. Outras, no caso de o inimigo se encontrar forte e bem armado, as nossas forças eram emboscadas antes de chegarem ao objectivo. Tinha sido previsto pelo inimigo, com alguma antecedência, que após a evidente identificação aérea, uma operação, incidindo sobre aquele local, iria ser efectuada.
Aconteceu que, certo dia, um RVIS deu origem a um acontecimento insólito tanto pelas consequências, como pelo desfecho que teve.
Na zona dos Dembos, no Norte de Angola, foi localizado um acampamento inimigo. Encontrava-se implantado sob a copa densa de uma mata cerrada. Situava-se na meia encosta de um monte, separado dos outros montes que constituíam a serrania, por um vale profundo, onde corria um rio, como aliás é típico dos cenários daquela região.
Foi decidido fazer um RVIS para confirmação e planeamento de uma futura operação terrestre.
O piloto a quem foi atribuída a missão era experiente. Conhecia perfeitamente a zona e também as características do avião que pilotava. Era-lhe por isso possível operá-lo, com segurança, a baixa velocidade, numa pormenorizada observação do terreno. Procuraria ver tudo o que estivesse sob a copa do arvoredo.
Cokpit de um DO 27
Acompanhava-o um jovem cabo mecânico colocado na linha da frente da sua esquadra. Era sempre voluntário, pois tinha a grande ambição de, também ele, mudando de especialidade, vir a frequentar um curso de pilotagem. Aproveitava, por isso, todos os ensinamentos que os pilotos lhe iam ministrando durante os voos para que se oferecia.
Descolaram os dois com alegria, entusiasmo e confiança. A juventude e o desejo de bem cumprir, levando a bom termo qualquer missão que lhes fosse atribuída, animavam sempre aquelas tripulações.
Chegados à zona referenciada iniciaram, como habitualmente, as voltas de maneira a conseguirem-uma boa observação do terreno.
Nas passagens em que aproveitavam a profundidade do vale, voavam quase ao nível do acampamento inimigo que efectivamente ali existia. Estava implantado, com abrigos e cubatas subindo pela encosta, camuflado e não muito afastado do rio, cuja água lhe era preciosa. Numa terceira ou quarta volta sobre o objectivo, subitamente o piloto tombou inanimado. Fora atingido por um disparo vindo de terra e cujo projéctil, numa probabilidade mínima, talvez de um para mil, entrara pela pequena janela da cabine que tinha sido aberta para permitir uma melhor visibilidade. Atingido na face pela bala fabricada algures com o destino de o malar, o piloto teve morte imediata. O corpo, inerte, tombou sobre os comandos do avião, obrigando-o a um voo picado que o lançava em direcção ao solo.
O cabo mecânico, sentado na cabine de pilotagem, ocupando o lugar do lado direito, acompanhava as manobras ajudando na observação do terreno. Por instinto ou fazendo uso dos ensinamentos que tão atentamente ia aprendendo, recostou de imediato o corpo do camarada morto na cadeira. Aliviou assim a pressão sobre o comando que impelia o avião vertiginosamente em direcção ao rio que, no fundo do vale, mostrava já as águas revoltas. Depois, mantendo com o braço esquerdo o corpo do piloto recostado no acento e com a mão direita no manche, procurou trazer o nariz do avião para a linha de horizonte. Conseguiu assim ganhar altura e sair do vale. O avião voava descompensado, com uma das asas em baixo e com os regimes do motor fora do que seria adequado, mas voava.
Aquele jovem mecânico tinha adquirido já as noções básicas sobre a velocidade e a atitude necessárias para evitar uma perda que esmagasse a aeronave no solo. Isso permitia-lhe ter a esperança de se salvar, caso conseguisse levá-la voando até à base e aí pedir auxílio à torre de controlo. Constatou então que não sabia operar o rádio na busca da frequência adequada para efectuar uma comunicação. Os ensinamentos que ia assimilando com as lições dos pilotos não tinham chegado ainda a essa fase. A impossibilidade de falar para o exterior equivalia a que ficasse isolado no espaço, entregue a si mesmo.
Procurando não entrar em pânico, ele tinha a noção de que poderia estar dentro de um avião que, subitamente, se transformara num caixão voador. Aquele improvisado piloto, aos comandos de uma aeronave que não dominava tentava encontrar o caminho que o levasse de regresso à base donde, há tão pouco tempo, cheio de alegria e confiança, havia partido. Tinha algum sentido de orientação e por isso uma ideia da direcção a seguir para encontrai o caminho de regresso.
Não conseguia, no entanto, coordenar o avião para seguir o rumo,sobretudo porque não estava instalado na cadeira de pilotagem que dava acesso aos pedais. Na posição em que se encontrava, apenas podia manobrar, e mal, o comando de profundidade e o das asas, o que equivalia a poder fazer subir, descer e voltar a aeronave que obedecia, ainda que descoordenadamente. Como mecânico que era tinha o conhecimento da função das manetas que regulavam o motor e dos valores que, através delas, deveria introduzir no painel de instrumentos. Isso valeu-lhe o poder trazer a pressão de admissão e as rotações do hélice para valores normais. 
Continuando com o braço esquerdo a amparar o corpo do companheiro morto e com a mão direita segurando o manche que comandava o avião, ele pesquisava o horizonte, na esperança de ver surgir o casario branco da povoação junto à qual tinha sido implantada a base a que pertencia. A partir daí localizaria a pista onde, mesmo sem saber como, para se salvar, teria que aterrar.
Resolveu ir ganhando altitude para, ao voar mais acima, ter um melhor campo visual na pesquisa do horizonte. Com suavidade foi puxando o comando e o avião, docilmente, foi obedecendo. Ocorreu-lhe então que, mais livre de obstáculos, poderia, com alguma segurança, desbloquear os cintos que mantinham o corpo do piloto morto seguro na cadeira de pilotagem. Conseguido esse intento, foi-lhe possível, cautelosamente, retirar o vulto inerte do companheiro de tão infeliz missão, empurrando-o depois para fora da cabine, deixando-o jazer no compartimento que lhe ficava atrás. Tinha assim o espaço livre para ele próprio ocupar o lugar de comando da aeronave.
Levou a bom termo tudo o que pensara e instalou-se, dominando o medo e a angústia. Sabia que a sua vida dependia do que,, sem entrar em pânico, conseguisse fazer. Pela primeira vez estava no lugar que sonhava há muito ocupar por direito próprio. Nunca lhe tinha ocorrido que a ocasião surgisse em condições tão dramáticas.
Voou sempre na direcção em que, para lá do horizonte, lhe parecia situar-se a base, na esperança de, ao longe, a ver surgir. Avistou lá em baixo, serpenteando entre as serras, por vezes desaparecendo sob a copa do arvoredo, uma estrada. Resolveu segui-la, na convicção de que ela o levaria até ao destino que procurava. Depois de algum tempo passado numa angustiante incerteza, quase de repente, viu surgir ao longe o casario do seu aquartelamento que tão bem conhecia. A torre de controlo avistava-se, elevando-se por entre os edifícios e para lá dela estendia-se a pista onde poderia encontrar a salvação. A aterragem seria uma manobra que ele não tinha possibilidade de realizar com êxito mas, dadas as circunstâncias, havia que tentar. Recordando tudo o que atentamente observava os pilotos executarem em tal manobra, quando acompanhava as aterragens no fim de voos mais felizes, ele procurava agora imitá-los. A ausência da prática, essencial a uma boa execução, era secundária nesta emergência.
Aproximação ao Negage

Na torre de controlo, o operador de serviço viu aproximar-se o avião. Tentou entrar em contacto com ele como era normal, mas não obteve resposta. Estava longe de imaginar o drama que se vivia lá em cima. O controlador não estranhou o facto de o avião permanecer mudo, sem emitir qualquer comunicação. Eram frequentes as avarias no rádio, sempre supridas pela experiência dos pilotos. Nessas circunstâncias aterrava-se por conta própria. Escolhia-se a pista, depois de um sobrevoo para observação da manga que, no alto de um mastro, indicava a direcção do vento. Aguardava-se depois, já na aproximação final, o sinal de luz  que, da torre, era normalmente emitido.
No entanto este avião sobrevoava a base num voo fora do estabelecido por essas regras. Afastou-se numa volta muito larga para, perdendo altitude de uma maneira que parecia descontrolada, apontar à faixa contrária àquela em que deveria aterrar. Ficava por isso, com um vento, relativamente forte, pela cauda o que, entre outros inconvenientes, lhe iria prolongar, em muito, o comprimento da pista a utilizar na corrida de aterragem. Além disso era notório que trazia demasiada velocidade, parecendo até, pelo ruído que fazia, que não reduzira o regímen do motor, aparentando no entanto a intenção de aterrar.
Algo de anormal estava a passar-se naquele voo e o controlador, sem hesitação, accionou a sirene de emergência. O carro dos bombeiros encaminhou-se rapidamente para a zona paralela à faixa de aterragem, aguardando na berma o desenrolar dos acontecimentos, na expectativa de ser necessária uma intervenção.
Dentro do avião, aquele jovem cabo mecânico tentava manter-se alinhado com a pista de alcatrão que à sua frente se estendia. Era essa a sua única preocupação. Absorvido pela execução da manobra, esquecera-se de que era necessário reduzir o regimen do motor. Continuava, por isso, a manter uma velocidade que não lhe iria permitir aterrar. Parecia, a quem o observava, que tinha intenção de simplesmente fazer uma passagem, voando baixo sobre a faixa, manobra que precisava, para ser executada, autorização da torre de controlo. Subitamente, ele recordou-se de que era necessário reduzir a potência para que a velocidade diminuísse até valores que permitissem ficar no solo. Foi isso que fez e com um movimento brusco puxou a maneta da pressão de admissão para trás. Simultaneamente, num reflexo, fruto da inexperiência, levou, com a outra mão, também o comando à frente, obrigando assim o avião a baixar o nariz, perdendo altitude mas ganhando novamente a velocidade que perdera, como acontece a um carro quando, desligado e sem travões, desce sozinho uma ladeira.
Cruzou o início da faixa com velocidade excessiva. Bateu com o trem de aterragem na pista e com o impulso recebido, o avião ganhou novamente altura, numa atitude de nariz levantado muito acima da linha do horizonte. Agora, felizmente, a velocidade a mais que trazia, permitiu-lhe uma sustentação que evitou uma entrada em perda que lhe poderia ter sido fatal. Com o motor reduzido, perdendo por isso ímpeto, aquela máquina tão nobre, foi caindo sozinha, afundando-se como um pássaro ferido que aflitivamente quisesse pousar. Acabou por, já muito junto ao solo, meter uma asa em baixo e com ela roçar o chão, rodopiando sobre si própria, saindo da pista para a berma de terra batida onde, por entre a poeira levantada, os bombeiros acabaram por abordá-la.
Sentado aos comandos, aquele jovem cabo mecânico foi retirado da cabine, num estado de prostração total. Desmoronara-se-lhe finalmente o ânimo que o salvara. Murmurava repetidamente que o piloto morrera e estava lá atrás. Afirmava, quase absorto, que fora ele quem trouxera o avião para a base.
Só dias mais tarde, quando recuperou, é que consegui contar finalmente, ao oficial da segurança de voo, como tudo acontecera durante aquela fatídica missão de reconhecimento. Foi louvado. A Força Aérea estava orgulhosa daquele seu filho. A coragem, determinação e sangue frio que revelou, foram realçados e apontados, como virtudes e exemplo a seguir por todos os outros. A Pátria manifestou-lhe reconhecimento.
Não sei se lhe foi facultado ingresso num curso de pilotagem, como era sua vontade e tanto merecia.
Aquela guerra terminou subitamente numa manhã de Abril. No ar ficou a estranha sensação de que ninguém ganhara e todos haviam perdido.
Desde então, dia a dia, os anos foram caindo na cascata do tempo e aquele cabo mecânico, como todos os jovens dessa geração, deverá ser hoje um homem já com alguma idade. É bem possível que os netos, em noites de festa ou reuniões de família, oiçam, perplexos e muito duvidosos da veracidade, a história daquele voo que o avô, de cabelo branco, face enrugada e alguma tremura na voz, insiste em recordar.
É natural que assim seja. Ele fala de coisas que já ninguém entende. São factos que há muito foram esquecidos por há muito terem deixado de ser lembrados. São recordações que pertencem apenas à vivência da última das gerações de Portugueses que teve um Império à sua guarda. Elas, essas gerações, durante séculos, mantiveram vivo o milagre de transformar impossíveis em realidades quotidianas. Foi esse milagre da vontade, essa força de ânimo, esse desígnio, que tornou real o sonho de um povo que sempre sobreviveu em condições que só em sonhos é possível imaginar.
A história que aquele avô, de vez em quando, relembra, pouco difere de tantas outras histórias que, ao longo dos séculos, durante a epopeia do encontro com o mundo desconhecido, gerações de jovens de Portugal protagonizaram. Só foi possível manter um Império tanto tempo, com tão pouca gente e tão escassos meios, porque houve sempre alguém que, em noites de medonha escuridão, quando o céu perde as estrelas e o mar ruge apavorante, em navios sem velas nos mastros quebrados ou cruzando os céus em aviões em que o homem do leme morreu, conseguiu ter ânimo para, vencendo o medo e a tormenta, levar o seu batel a varar na praia onde só os audazes têm o privilégio de arrimar.
Capítulo do livro do Major Carlos Acabado