sexta-feira, 25 de julho de 2014

O BAR AMERICANO DE GAGO COUTINHO.

Tirar fotografias “para mais tarde recordar”, era um dos clássicos passatempos a que nos entregávamos apaixonadamente, o reverso é que nos destacamentos mais isolados não havia nenhuma possibilidade de revelar e imprimir as tão desejadas fotos, e na maior parte dos casos os negativos perdiam qualidade.
Em Gago Coutinho, existia um fotógrafo que supria essa falta, mas a qualidade dos banhos “revelador e fixador”, para não falar mal do “fotógrafo”, deveriam ser muito deficientes pois passado pouco tempo as fotos desapareciam ou ficavam sem qualquer qualidade. 
Numa dessas idas à vila para fazer algumas compras e ver se revelava um rolo, fomos no camião das obras aproveitando a ida do mesmo ao rio Nhengo, para carregar areia. 
Na volta, resolvemos ir beber umas cervejas e o condutor, o 1º. cabo Lamares, levou-nos directos ao “Bar Americano”. Não me perguntem o porquê do nome pomposo para uma construção com quatro pilares, um telhado de chapas de zinco, e paredes formadas por grades de cerveja, sem porta ou cadeiras, mas com muitas “mininas” muita confusão e música “autóctone” acima dos decibéis recomendados por um qualquer otorrinolaringologista. 
Entrámos animados, sob o olhar guloso das presentes, e da luz esfuziante do exterior, passámos a uma penumbra amarelada e poeirenta, coada pelas garrafas vazias das grades das paredes, e provocada pelo bater dos pés descalços na terra batida do interior. Num dos cantos um balcão com um branco entroncado, a atirar para o barrigudo, careca, com uma camisola interior de alças outrora branca, que nos perguntou o que queríamos beber. 
Pedimos Nocais, e ele virou-se para uma arca que tinha por detrás, retirou as cervejas e uma a uma foi retirando as caricas não de qualquer forma conhecida, mas apanhando o rebordo rugoso com as falanges das articulações dos dedos médio e anelar da mão direita, depois de tirar as caricas, voltou a colocá-las entre os mesmos dedos e dobrou-as ao meio e ainda não satisfeito voltou a repetir a operação e a dobrá-las novamente, atirando-as por cima do ombro direito para uma pilha existente ao lado da arca no chão de terra batida. 
Tudo sem aparentar o mínimo esforço ou desconforto, olhando-nos nos olhos e atirando num tom neutro, “mais alguma coisa”? Os nossos olhos estavam pregados naqueles dois trambolhos, calosamente deformados por anos de maus tratos, só me ocorreu perguntar-lhe onde poderia comprar tabaco, sem me responder, apontou uma porta interior que dava para uma “quitanda” comum em todas as povoações do leste de Angola onde se vendia de tudo. 
Levei a Nocal comigo, não ia meter a boca no gargalo de uma garrafa afagado por uma mão daquelas, e de caminho entornei alguma da cerveja e limpei o gargalo na fralda da camisa, cruzei a porta e o cheiro mudou do perfume barato das "mininas", para o de peixe seco e outras iguarias, olhei em volta deslumbrado, do chão até ao tecto, pilhas de alguidares de plástico, peças de fazenda, ferramentas e sacas com os mais variados cereais e leguminosas enchiam todo o espaço visível, passei os olhos pelas prateleiras mais altas, e num canto mais escuro e distante, dois vultos chamaram-me a atenção, o meu coração disparou e aproximei-me curioso, aquelas latas vermelhas com desenhos e letras douradas, eram exactamente iguais às da fábrica “Dominguez & Dominguez”, da minha terra adoptiva, a Golegã. 
Agarrei num escadote e com o coração aos pulos trepei na ânsia de não me ter enganado, como é que era possível, duas latas de cinco quilos cada, do melhor pimentão que se fabricava no Ribatejo, estarem ali, no “cu de judas” à minha espera, desci com os olhos marejados de lágrimas, mais carregado que subira, e perguntei ao espantado moleque que estava atrás do balcão quanto era pelas duas latas, ele não sabia e berrei-lhe “vai perguntar ao patrão, molenga!” como ele demorasse, atravessei novamente a porta de ligação com uma lata debaixo de cada braço, na certeza que dali já não sairiam. O careca, olhou-me com o mesmo ar de espanto com que eu assistira ao retirar das caricas das Nocais, e atirei-lhe por cima da música, quanto custam as duas latas? 
Ele balbuciou, não sei! Tenho de procurar a lista dos preços que o antigo dono tinha quando lhe comprei o negócio, e não sei se a vou encontrar. Não desisti, aproximei-me ainda mais do balcão e disse-lhe: olhe amigo, a fábrica que faz esta preciosidade é ao fim da minha rua lá na terrinha, se verificar no fundo da lata, terá a data de validade e o preço recomendado, e enquanto falava, virei uma das latas em cima do balcão e terminei, dou-lhe o dobro do que lá estiver escrito. 
Ele olhou-me nos olhos e retorquiu, são suas, quando fizerem um churrasco, convidem-me e ficamos pagos, demos um aperto de mãos e viemos embora rapidamente, esquecendo a música e as “mininas”, não fosse o fulano mudar de ideias e eu ter de devolver as minhas queridas latas de pimentão, que iriam fazer as delícias do meu amigo civil, Eduardo Pita-Groz. 
Dali em diante tudo o que fosse comida, levaria pimentão, da sopa à sobremesa...


Gago Coutinho 1973
OPC ACO

sexta-feira, 18 de julho de 2014

ÁLVARO BARROSO - A CAMINHO DO AB4


Depois de dezanove meses de serviço militar, e quando nada o fazia esperar (há explicação para tal, mas não vem agora ao caso), eis que na Ordem de Serviço da BA 1 – Sintra, sai a minha nomeação para o AB 4 – Henrique de Carvalho – Angola.
As datas eram bem definidas e tinha duas semanas para tratar de tudo, desde a despedida da família (que estava a mais de 400 Km, entre ida e volta) até ao desquite, na unidade e o recebimento do fardamento para o Ultramar.
Na BA 1, não tinha recebido qualquer tipo de fardamento, mas sim na recruta na BA 2 –Ota, e nem todo ele novo (a estrear), mas quando do “famigerado” desquite, toca a pagar pelo uso que não tinha dado, desde as botas que eram para 26 meses (mas que agora o Sarg. Avaliador) dizia que nem para um mês davam, até aos lenços que não me assoei, tive que pagar. Como isto fosse pouco, ainda havia que passar por todas as Secções, Serviços, Secretarias e Bares (de Praças, Sargentos e Oficias, como se lá tivéssemos entrada, pois que era Cabo Especialista/praça), em como não tínhamos dividas.         
Posto estas primeiras “aventuras“ e para encurtar, pois que mais haveria para dizer, estava pronto para embarcar, mas não de avião como seria suposto uma vez que servia a Força Aérea, mas sim de barco, no Vera Cruz.

Maio de 1967, Cais de Rocha de Conde de Óbidos, sozinho e sem ninguém para dizer um adeus (mas com algumas centenas de homens do Exército que formavam Companhias/Batalhões ) e alguns poucos companheiros da Força Aérea, em que só conhecia UM.
Este (UM) tinha feito os Cursos comigo e tinha vindo de Angola (onde tinha toda a família ) fazer o serviço militar na F.A.. Grande AMIGO e COMPANHEIRO que foi quem me deu grande apoio e ânimo para aquela viagem até África, que ele tão bem conhecia.
A viagem no que respeita a termos meteorológicos, até decorreu bem com mar calmo e céu limpo, mas já o mesmo não aconteceu no que diz respeito a alojamentos e alimentação. Como Praças que éramos, lá fomos instalados num beliche lá bem no fundo do navio, que tinha todos os espaços (corredores) ocupados com camas duplas de r/c e 1º andar, tal como no beliche, pois que quantos mais coubessem, melhor seria.
Com tanta gente a bordo, para o qual o navio não tinha sido construído é de prever o que acontecia com as casas de banho, com uma piscina (tanque em madeira) forrado com uma tela impermeável, colocada na popa (ré) do navio. Pois bem, no meio de todo aquele pessoal encontravam-se militares que da semana de campo (treino que faziam para embarcar para África) seguiram para bordo, e ainda traziam lama nos calções da preparação física, e que seriam os mesmos que iriam servir de fato de banho para irem para a piscina. 
Escusado será dizer, que passados poucos minutos de a piscina ser lavada, e cheia de água limpa, estava toda turva e imprópria. Nunca lá me meti, mas numa noite (de dia não era possível) e quando o calor já era muito a anunciar a proximidade de África, fui para a piscina dos oficiais, pois que viajavam em 1ª classe e os sargentos em 2ª . Na 3ª classe, a das praças, via-se de tudo, desde o urinar para o chão até obrar para a bacia das limpezas da referida zona.     E assim se foram passando os 11 onze dias de viagem, mas quando na noite de véspera da entrada do navio na baía de Luanda, este desliga uma das hélices e adorna para um dos lados, nem vos passa pela cabeça, o que eram aqueles corredores, cheios de líquidos…

Finalmente Luanda, cidade lindíssima e com uma baía, uma ilha e uma marginal espectaculares, mas muito, muito quente.

Ainda não bem refeito de todas as peripécias da viagem (porque foram mais que as anteriormente descritas), eis outro problema pela frente o calor, com a sede que ele provoca, a transpiração e a necessidade de roupa leve.
Qual quê, nada disso: ainda dentro do navio, tínhamos sido avisados de que tínhamos que sair fardados com o uniforme de 1ª ; “ Dólmen, Camisa e Gravata, etc. “ para apresentação na Região Aérea.
Apresentação feita e envio para a BA 9 - Luanda, para camarata pré-fabricada em metal, em que o calor ainda era superior ao do exterior. Tomávamos banho e em seguida, a transpiração era superior à anterior ao banho, e sem ser necessário enxugar a água- Vou-me desfazer com “em suor”, e vou desaparecer para sempre……- Calma “ irmão “ , dizia-me o UM – para onde vamos, Henrique de Carvalho – AB 4, tem um clima muito idêntico ao da Metrópole.Por ali ficámos mais uns dias, aguardando o NordAtlas que nos levaria ao destino.O dia chegou e o destino também, e uma Família desconhecida nos esperava.FAMÍLIA essa, que ainda hoje se reúne e que com SAUDADE, AMIZADE e que com um ESPIRITO FRATERNO, recorda essas histórias...“ os CHAMUANZAS “
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quinta-feira, 10 de julho de 2014

O DOVE CR-LKE

 Posição do CR-LKE após aterragem de barriga
De todos os aviões civis e militares que controlei, o CR-LKE, foi o que mais recordações me deixou, quer no Cazombo, em Neriquinha , ou em Gago Coutinho.
Era um De Haviland DH-108 modelo Dove, “Pombo/a” com dois motores gipsy queen 70-2 de seis cilindros em linha com 400 cavalos cada, com um curioso cokpit em bolha destacada da fuselagem, transportava dois tripulantes e até oito passageiros, pertencente à AERANGOL, Transportes Aéreos de Angola, operava a partir de Moçâmedes, cruzando todo o Sul de Angola, passando por Sá da Bandeira, Vila Artur Paiva, Serpa Pinto, Cuito Cuanaval, Neriquinha, Gago Coutinho, Luso,  Vila Teixeira de Sousa e Cazombo, a rota era delineada conforme os passageiros ou a mercadoria mas muitas vezes também o correio. 
O início da produção deste modelo deu-se em 1945, para substituir o De Havilande modelo Dragon Rapid, de que existe um belo exemplar no Museu do Ar. Desconheço o ano de fabrico do LKE, mas já aparentava bastante uso, e nalguns instrumentos que guardo como recordação está inscrito o ano de 1965.
Vem tudo isto a propósito do acidente que presenciei em directo em Gago Coutinho. Efectuava um voo à vertical com o Corredeira, já tínhamos conhecimento do movimento do LKE, e o Corredeira já tinha entrado em contacto directo com o piloto, depois de verificar-mos a sua posição, acompanhámos a aproximação a Gago Coutinho voando na sua asa, retribuindo os acenos dos passageiros, no início da perna-base, a aproximação fizera-se de Oeste para Leste, comentei com o Corredeira se eles não estariam demasiado baixo, e ele respondeu-me que eles deveriam saber o que estavam a fazer, o avião voava cada vez mais devagar e mais baixo, e dei comigo a pensar que eles não iam chegar à cabeceira da pista sem bater na vegetação que ficava no seu enfiamento.
Acompanhávamos a aterragem e o afundamento do avião, quando o piloto se apercebeu finalmente que não chegava à pista, tentou em desespero elevar o avião, mas devido à pouca asa, praticamente não havia metido flaps e à pouca velocidade o pior aconteceu, a asa direita bateu numa árvore e o avião começou a rodar pela direita e afundou subitamente, envolto numa núvem de pó vermelho, soltando peças das asas e num bailado em câmara lenta, foi dando voltas arrastando-se pelo chão, levantando ainda mais pó até se imobilizar de nariz, perpendicularmente à pista mas ligeiramente fora dela. 
Enquanto eu assistia a este bailado macabro o Corredeira avisou o posto de rádio, para que mobilizassem o hospital e toda a gente que pudesse vir dar uma ajuda aos passageiros e tripulação. Passámos entretanto a rapar sobre o destacamento a abanar as asas, tentando chamar a atenção do pessoal que estava na placa.
Aterrámos contra o vento e parámos ainda longe do avião, corríamos na sua direcção quando a porta lateral se abriu e saiu um homem com sangue na cabeça, a esposa grávida em final de tempo, ia para o Luso onde teria a criança, e ele estava completamente alterado, tentando a todo o custo retirá-la pela pequena porta onde ela mal cabia. Um a um todos os passageiros e tripulação acabaram por sair pelo seu pé, ninguém para além do marido nervoso se feriu, e a mulher grávida aparentava ser a única calma do grupo.
O facto da pista ser de terra batida evitara o pior, uma das asas vertia combustível, a roda de nariz do trem de aterragem em triciclo estava dobrada, do mesmo modo que a esquerda, a direita fora simplesmente arrancada, os hélices, estavam dobrados, como o trem colapsara a aterragem fizera-se de barriga, toda a parte de baixo da fuselagem estava amolgada, as asas a mesma coisa, possivelmente teria sido a última aterragem do CR-LKE. 
 Retirada do CR-LKE da pista para zona da placa. 
Agora levantava-se outra questão, o que fazer àquele monte de sucata, ali não poderia ficar. Com tudo mais calmo, fui a corta-mato para o posto de rádio confirmar com o Costa como se passaram os contactos na aproximação, não queria que ainda sobrasse para nós qualquer dúvida sobre o porquê da queda do avião, restavam os passageiros e a carga. Após conversa com o piloto, enviei uma mensagem para Luanda para a companhia, para que enviassem um transporte que levasse os passageiros e a carga, e para que nos informassem de como iriam proceder para retirar o avião da posição em que ficara, uma vez que obrigava à utilização bastante limitada da pista.
Feitos os avisos para a ICAO,  Secarleste, a pedido do piloto recolhemos a carga, e “sequestrámos” uma das caixas de caranguejo de Moçâmedes, que “inexplicavelmente” ficara inutilizada e que constituiu o nosso jantar. 
Quanto ao LKE, foi desmontado e transportado via terrestre para Luanda, julgo para ser canibalizado para outros aviões do mesmo modelo.
Ainda hoje passados quarenta anos, conservo alguns dos seus instrumentos.
Conta e Indicador de Rumo de Rádio Farol (ADF)

Gago Coutinho, 1973
Por:
OPC ACO

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O BEECHCRAFT 2519, DA MINHA EVACUAÇÃO.


No interior deste avião, não sei se o silêncio era absoluto. O barulho dos dois motores em estrela ficava fora, na madrugada que clareava a cor prata do 2519. Os meus colegas pesavam o silêncio, a viagem não era um passeio agradável.

No interior desse avião, eu estava a acabar. O meu corpo extinguia-se por dentro, as hemorragias eram fatais, a perna esquerda e algumas costelas fracturadas eram o menos, o meu cérebro adormecido – sonharia com palmeiras? – acordou uma vez durante a viagem – lembro-me de rostos indecifráveis que me olhavam de cima.

O dia amanheceu cedo, no Leste de Angola, do ar do AB 4 para o ar da vila do Luso, o rumo era o hospital militar. O dia 9 de Maio de 1970.
O Beech deve ter-se feito à pista conforme os procedimentos, no interior da minha mente, como no interior do avião, nada, silêncio.
Recobrei os sentidos na mesa de operações, para voltar a entrar num túnel.

Voltei da anestesia geral horas depois, regressei das mãos de Deus e do cirurgião militar, há quarenta e quatro anos.

Aquele Beech (na foto estacionado na placa do AB4, Henrique de Carvalho), não sei hoje onde está, talvez sucata apaixonada, não sei que voos fará, de certeza só nas nossas memórias, dos que ainda vivem.

© João Tomaz Parreira