quinta-feira, 10 de julho de 2014

O DOVE CR-LKE

 Posição do CR-LKE após aterragem de barriga
De todos os aviões civis e militares que controlei, o CR-LKE, foi o que mais recordações me deixou, quer no Cazombo, em Neriquinha , ou em Gago Coutinho.
Era um De Haviland DH-108 modelo Dove, “Pombo/a” com dois motores gipsy queen 70-2 de seis cilindros em linha com 400 cavalos cada, com um curioso cokpit em bolha destacada da fuselagem, transportava dois tripulantes e até oito passageiros, pertencente à AERANGOL, Transportes Aéreos de Angola, operava a partir de Moçâmedes, cruzando todo o Sul de Angola, passando por Sá da Bandeira, Vila Artur Paiva, Serpa Pinto, Cuito Cuanaval, Neriquinha, Gago Coutinho, Luso,  Vila Teixeira de Sousa e Cazombo, a rota era delineada conforme os passageiros ou a mercadoria mas muitas vezes também o correio. 
O início da produção deste modelo deu-se em 1945, para substituir o De Havilande modelo Dragon Rapid, de que existe um belo exemplar no Museu do Ar. Desconheço o ano de fabrico do LKE, mas já aparentava bastante uso, e nalguns instrumentos que guardo como recordação está inscrito o ano de 1965.
Vem tudo isto a propósito do acidente que presenciei em directo em Gago Coutinho. Efectuava um voo à vertical com o Corredeira, já tínhamos conhecimento do movimento do LKE, e o Corredeira já tinha entrado em contacto directo com o piloto, depois de verificar-mos a sua posição, acompanhámos a aproximação a Gago Coutinho voando na sua asa, retribuindo os acenos dos passageiros, no início da perna-base, a aproximação fizera-se de Oeste para Leste, comentei com o Corredeira se eles não estariam demasiado baixo, e ele respondeu-me que eles deveriam saber o que estavam a fazer, o avião voava cada vez mais devagar e mais baixo, e dei comigo a pensar que eles não iam chegar à cabeceira da pista sem bater na vegetação que ficava no seu enfiamento.
Acompanhávamos a aterragem e o afundamento do avião, quando o piloto se apercebeu finalmente que não chegava à pista, tentou em desespero elevar o avião, mas devido à pouca asa, praticamente não havia metido flaps e à pouca velocidade o pior aconteceu, a asa direita bateu numa árvore e o avião começou a rodar pela direita e afundou subitamente, envolto numa núvem de pó vermelho, soltando peças das asas e num bailado em câmara lenta, foi dando voltas arrastando-se pelo chão, levantando ainda mais pó até se imobilizar de nariz, perpendicularmente à pista mas ligeiramente fora dela. 
Enquanto eu assistia a este bailado macabro o Corredeira avisou o posto de rádio, para que mobilizassem o hospital e toda a gente que pudesse vir dar uma ajuda aos passageiros e tripulação. Passámos entretanto a rapar sobre o destacamento a abanar as asas, tentando chamar a atenção do pessoal que estava na placa.
Aterrámos contra o vento e parámos ainda longe do avião, corríamos na sua direcção quando a porta lateral se abriu e saiu um homem com sangue na cabeça, a esposa grávida em final de tempo, ia para o Luso onde teria a criança, e ele estava completamente alterado, tentando a todo o custo retirá-la pela pequena porta onde ela mal cabia. Um a um todos os passageiros e tripulação acabaram por sair pelo seu pé, ninguém para além do marido nervoso se feriu, e a mulher grávida aparentava ser a única calma do grupo.
O facto da pista ser de terra batida evitara o pior, uma das asas vertia combustível, a roda de nariz do trem de aterragem em triciclo estava dobrada, do mesmo modo que a esquerda, a direita fora simplesmente arrancada, os hélices, estavam dobrados, como o trem colapsara a aterragem fizera-se de barriga, toda a parte de baixo da fuselagem estava amolgada, as asas a mesma coisa, possivelmente teria sido a última aterragem do CR-LKE. 
 Retirada do CR-LKE da pista para zona da placa. 
Agora levantava-se outra questão, o que fazer àquele monte de sucata, ali não poderia ficar. Com tudo mais calmo, fui a corta-mato para o posto de rádio confirmar com o Costa como se passaram os contactos na aproximação, não queria que ainda sobrasse para nós qualquer dúvida sobre o porquê da queda do avião, restavam os passageiros e a carga. Após conversa com o piloto, enviei uma mensagem para Luanda para a companhia, para que enviassem um transporte que levasse os passageiros e a carga, e para que nos informassem de como iriam proceder para retirar o avião da posição em que ficara, uma vez que obrigava à utilização bastante limitada da pista.
Feitos os avisos para a ICAO,  Secarleste, a pedido do piloto recolhemos a carga, e “sequestrámos” uma das caixas de caranguejo de Moçâmedes, que “inexplicavelmente” ficara inutilizada e que constituiu o nosso jantar. 
Quanto ao LKE, foi desmontado e transportado via terrestre para Luanda, julgo para ser canibalizado para outros aviões do mesmo modelo.
Ainda hoje passados quarenta anos, conservo alguns dos seus instrumentos.
Conta e Indicador de Rumo de Rádio Farol (ADF)

Gago Coutinho, 1973
Por:
OPC ACO

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