quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

11 DE JUNHO DE 1975 EM HC

Henrique Carvalho, 1974. Em primeiro plano o Colégio e a Igreja - foto de Alfredo Anacleto Santos

Nessa tarde de 11 de Junho, também vim para a cidade de carro civil, de um amigo, que me foi buscar à base, para passar um pouco, do cair da tarde pela Bonina e picadeiro lá do sítio. 
Uma vez que ali tinha começado, em 1964/65 o meu secundário, no colégio de Saurimo, por detrás da igreja matriz...
O tiroteio deflagrou ao entardecer e nós, antes do cruzamento da Bonina e do Cine Chicapa, fomos alertados pelas primeiras rajadas vindas do lado do MPLA, que tinha o quartel no armazém do Marques Dias Lda. Uma das ditas estilhaçou os para-brisas do nosso carro, quer o da frente quer o de trás! Saí ainda em andamento e baldei-me para o quintal contíguo à casa do presidente da Câmara, uma vivenda de esquina, pertencente à família Matos.
O Carlos Matos, tinha sido Comando e já tinha saído da tropa. Embora mais velho do que eu, conhecíamos-nos dos tempos de escola, onde ele ia à saída das aulas para ver as "miúdas"! Eu e o meu amigo Gorgulho, passamos até às 4 da manhã, com um cacimbo do caraças, deitados ao toro das árvores do seu quintal, ouvindo aquele zumbido das granadas a sair dos morteiros, que eram as que mais me preocupavam uma vez que se caíssem no quintal iríamos pelo ar. Quer as disparadas do quartel do MPLA, quer as que vinham do lado das (OP) Obras Públicas, onde a FNLA assentou arraiais...
Efeito dos combates entre os movimentos

Tínhamos por companhia um pastor alemão pertencente à família dona da casa. O cão estava ferido e veio deitar-se entre nós...só às 4 da matina, já clareava e como nós, começávamos a ficar destapados, pois a noite ia levantar breve e ficaríamos expostos aos tiros directos do outro lado da rua, pois já tínhamos sido alvejados por 4 elementos que estavam no quintal oposto, ao lado do cinema, os quais foram destruindo o parapeito do muro...
Aí, tomei a iniciativa de rastejar até à porta das traseiras, que como é uso em África, é sempre alta, havia uma escadaria de 4/5 degraus, que me punham ao nível do muro circundante e me exponham a ser baleado. Então rastejei até lá, pondo-me encostado a dita escada, e esticando o braço, batia com o punho na parte de baixo da porta, chamando pelo Carlos Matos! Passado um bocado, ele perguntou, sem abrir a porta, quem era...identifiquei-me bem! Pois o meu apelido familiar, era sonante naquela região. Ao entreabrir a porta, o pastor de salto foi o primeiro a entrar, depois eu, rastejando e o Gorgulho que estava atrás de mim...
Das 4 da manhã até ao meio dia e tal ali permanecemos...os tiros escasseavam pela manhã e de repente começamos a ouvir um megafone em português, com palavras de ordem para cessar o fogo, que se estavam a matar entre irmãos. Era um Capitão do Exército, em pé, num jeep Willys, apenas acompanhado do condutor...entre o meio dia e a uma da tarde, houve uma acalmia, que deu tempo para que toda a cidade de Saurimo ou Henrique de Carvalho, como queiram, se mudasse literalmente para a Base, o AB4.
O resto que conte quem quiser...Ainda quero acrescentar, que no dia 10 de Junho, fizemos uma formação de 3 Alouettes llI em continência à bandeira, eu voava héli canhão! E no dia imediato, estava deitado num quintal a assistir ao que já foi reportado...ainda bem que alguém se lembra destes tristes episódios passados pelas nossas FAs..."Foxtrot".
Depois disto, ainda fui ao Luso, várias vezes nesse carro era
um Ford Taunus 17M RS de cor verde, sem para-brisas nenhum...coisas dos 20 anos, "idade da imortalidade"...
Fui o último piloto de Hélis que passou pelo AB4...saí do Luso a 16 de Agosto de 1975. Fui eu que fui com a delegação do MFA a Camissombo e Veríssimo Sarmento, para desarmar os Catangas...nem me deixaram aterrar dentro do quartel...!


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O ALFERES BUFO E A PRISÃO DO ROLO.


Em certo dia de Outubro de 1971, na Enfermaria da Base,  partilhava numa roda de companheiros, algumas opiniões pessoais sobre a guerra numa conversa descontraída entre camaradas como muitas vezes acontecia. 
Vivia-se um clima de desconforto perante um conflito que já durava há muito tempo e que continuava sem resolução à vista, e eu opinava que aquela situação era insustentável e algo teria de ser feito para pôr fim àquela guerra. Esta opinião não era apenas minha, havia muita boa gente com o mesmo sentir.
Andava por perto um alferes zeloso amigo do regime, que ouviu a conversa, não gostou e fez uma participação. Seguiu-se o castigo em ordem de serviço, que determinava o meu encarceramento na prisão do AB4.
Com.Wilton Pereira
Já me imaginava julgado e condenado em Tribunal Militar com um mínimo de oito anos no Forte-Prisão de Tomar, mas felizmente beneficiei da visão de outras mentes mais arejadas, nomeadamente de um homem a quem fiquei para sempre agradecido: o comandante da base, coronel piloto aviador Eduardo de Melo Wilton Pereira. Era não só bom comandante como boa pessoa e entendeu alterar-me o castigo para uma pena de prisão de dez dias, a cumprir ali mesmo, em Henrique de Carvalho. 
Enfermaria
1º.plano cabo PA Grama,
em fundo a Casa da Guarda

Passei então esses dez dias numa cela da prisão, mas com certa liberdade: de vez em quando circulava pela base, sem dar muito nas vistas, e o sargento Carvalho, responsável pela prisão, deixava-me a porta do cárcere aberta por fora e dizia-me que a fechasse por dentro quando não quisesse ser incomodado.
E desta forma fui um dos presidiários do AB4.





Por:

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

OS DESMANDOS DO TEN. CORONEL SACHETTI

Na generalidade no Leste de Angola de 1970 a 1972 a guerra era remanescente, muito embora se fizessem relatos hiperbólicos da Zona Leste, desde Teixeira de Sousa até N'Riquinha, de Companhias e Batalhões aí sediados.
Havia operações tipo "Siroco", mas a verdade é que os confrontos reais eram sustidos pelo Flechas e Katangueses, nada comparável com o que estava a acontecer ao tempo em Moçambique ou em toda a Guiné. Eram maiores as baixas por acidentes e fogo amigo, como aconteceu em Gago Coutinho e outros.
Estive por diversas vezes em vários destacamentos, em reparações de DOs e T6 e era difícil passar o tempo, restava-nos a caça, que fiquei a adorar e ainda hoje recordo os bons bifes de nunce que comi em Gago Coutinho. Foi também nesta Vila que conheci o Sargento Meirim, que pelas suas qualidades e dons de sabedoria foram muito enaltecidos nas magnificas histórias do Capitão Carlos Acabado.
Em meados de 1971, procedeu-se a uma pequena revolução
Ten.Cor. Wilton Pereira
no organograma do AB4, que coincidiu com o fim da comissão do Comandante Ten.Cor. Wilton Pereira, um grande senhor, que enquanto nos comandou 
estávamos resguardados das acções farejadoras dos 2º. Comandante Major Ladeiras, maningante só estava na tropa para se orientar, era responsável pelas messes, pelos combustíveis, pela agro-pecuária e ainda da fábrica de cerâmica em Saurimo. Mau piloto e só fazia viagens para onde lhe cheirasse a kamangas.
O Ten.Cor. Wilton Pereira foi substituído, em Agosto de 1971, pelo 
Ten.Cor. Fernando Manuel Gago Elias de Sousa, sem relevância, por um período de um ano, 1971 a 1972.
Quem substitui o Ten.Cor. Elias de Sousa, em 23 de Agosto de 1972, foi uma figura sinistra, minúscula, o Ten.Cor. José Luis Azevedo Barreto Sachetti que veio transferido da BA7 onde era Comandante. Parecia ter sido investido de largos poderes, de que mais tarde tivemos a confirmação. Toda a guarnição do AB4 vestiu a farda nº. 1 e formou na placa para a sua apresentação e vassalagem.
Cerimónia da transferência de comando do T.Cor. Elias de Sousa para o T.Cor. Sachetti

Das suas primeiras acções foi transferir o Comando Operacional para o destacamento do Luso. Rodeou-se de oficiais da sua confiança, aumentou o número de T6, que passaram a voar somente em parelha. Passaram a estar em permanência no Luso os 3 Dakotas, o de passageiros e os dois "Shelltox". As mudanças não se ficaram por aí, o Major Simões e o Capitão Gonçalves foram nomeados para o comando do AM e o Capitão Santana para o comando da Esquadra 402 dos helicópteros, Capitão que foi atingido em 4 de Maio de 1973 numa operação no Lutembo e acabaria por falecer. O BC Beechcraft ficou praticamente à sua disposição, trocou o MMA Francisco Simões pelo José Chambell e não ficou por aí !
Foi transferida toda a linha da frente do AB4 para o Luso, preparou e instalou uma messe e casernas, para retirar ajudas de custo ao pessoal de voo e reduzir a importância do AB4, que ficava somente a 260 kms e era dotado de todos os equipamentos necessários, desde messes, alojamentos, enfermaria...aviário e pocilga e algumas condições de lazer.
O Ten.Cor. Sachetti tinha um prazer supremo de colocar o
Sachetti e o BC
BC de rodas no ar às cinco horas da manhã para acordar o pessoal nos diferentes destacamentos.

Dentro do programado foi empreendida uma cruzada de produzir operacionais obedientes, e rapidamente apareceram os videirinhos, sabujos e rambos. Ainda hoje, passados mais de 40 anos há quem admire esse culto da personalidade, nomeadamente os nossos camaradas (alguns especialistas) dos Saltimbancos, ou AR Luso, que trocam galhardetes recíprocos do tipo, "nós fomos mais operacionais" que os outros, o que é triste. Deveriam ver a camaradagem dos Especialistas do AB4, que se reúnem  anualmente sem interrupção há 46 anos, sempre no segundo sábado do mês de Novembro, por todo o Portugal, para manifestar a vida e as lembranças dos bons momentos que passámos juntos no apogeu da nossa juventude.
Foi naquela terra distante, que a maioria de nós crescemos e aprendemos à nossa custa a sermos gente.

Não foi a doutrina implantada pelo Ten.Cor. Sachetti que ficou favorável nas nossas mentes, mas admito que serviu a poucos para alimentar egos e brandir heroicidades. Faço lembrar que o Ten.Cor. Sachetti era filho de um dos mais mordazes e sanguinários do regime e da Pide, onde foi até director.
Esse sim a par dos comparsas era um ideólogo.

Se alguém se lembrar, pode confirmar. Em Setembro de 1969 ficámos retidos nos quartéis, eu em Paço de Arcos, por causa das eleições que se iriam efectuar, e em que o regime receava uma viragem. Assinámos uma lista que nos apresentaram e nem sequer fomos ás urnas. Era tempo da União Nacional, Legião Portuguesa e Movimento Nacional Feminino, movimentos que se armavam defensores da Pátria, bandeira e família, filosofia em desuso, mas activa em Portugal e Espanha que nos foi incutida desde a Mocidade Portuguesa.
Mais tarde um francês escreveu um livro sobre o assunto, a que deu o título de Tentação Totalitária. Chamava-se Jean François Revel.
Esta grande alteração do organograma da FAP, no leste de Angola, foi direccionada por Luanda. O Cor. Silva Cardoso, que tinha chefiado a BA9, passou a general e a comandar a 2ª. Região Aérea. Entre outras menções, que fez no seu extraordinário livro de memórias, foi de sua escolha pessoal o Ten.Cor. Sachetti, o Cap. Santana dos helicópteros, e um Maj. Corbal, que nunca vi nem sei o que fez, todavia chegou ao generalato depois de comandar a BA5. Recebeu-nos num encontro dos Especialistas, já pilotava os Corsair.
Silva Cardoso foi um militar brilhante, a sua coroa de glória foi organizar e conduzir por via aérea, a esquadrilha de PV2 do Montijo até Luanda. Ficaram dois pelo caminho, um em S.Tomé, outro no Gabão, que acabaram por chegar a Luanda.
Os PV2 chegaram em fins de 1960, e em Março de 1961
PV2 em acção em Quicabo em 1961
foram chamados para salvaguardar as populações e tiveram os Gen. Diogo Neto, Galvão de Melo e o próprio Silva Cardoso, acções de heroicidade em Mucaba, Pedra Verde e todo o norte de Angola.
Foi também Silva Cardoso que dinamizou a esquadra de SA Pumas e introduziu os B26 que estavam em Alverca há vários anos, mas que por imposições burocráticas, ou técnicas
, não voavam.
B26 na BA9
Este bombardeiro, totalmente diferente do PV2, tinha o coquepit de acesso exterior. A tripulação era constituída por três elementos; piloto, co-piloto e mecânico, que atrás dos primeiros num assento que mais parecia de motorizada. Tinha o trem de aterragem contrário ao PV2, ou seja atrás, e uma autonomia considerável. Não sei como o Gen. Cardoso estava habilitado para pilotar esta aeronave, mas foi ele que lançou o nosso comandante de PV2 Ten. Godinho, que pediu transferência para Luanda para estar junto da família.
Cerimónia de despedida do Gen.Bettencourt Rodrigues

A organização do comando do Exército na ZML também mexeu com o que tinha estado em vigor, ao tempo o Gen. Bettencourt Rodrigues. O seu novo comandante, o Gen Hipólito, dito falcão, que eu acrescento sem garras, tinha sido braço direito do Gen. Kaúlza de Arriaga de triste memória, mas ficou ligado á FAP quando foi SEA, ao criar as tropas paraquedistas inspiradas na formação francesa na Argélia e daí o aparecimento dos Nord-Atlas. Foram os dois os arquitectos da operação "Nó Górdio", que apesar dos pesados meios envolvidos, não resolveu nada e foi o início da guerra a todo o Moçambique, com a criação de nova frente de combates em Tete.
AB7 - Tete


No AB7-Tete houveram flagelações e mortes, apesar de ali estar estacionada uma esquadrilha de Fiats. O inimigo tornou-se mais agressivo e audaz, estando a infligir baixas consideráveis na nossa tropa regular. A quantidade de minas anti-pessoais e anti-viaturas limitavam drasticamente o movimento de pessoal e viaturas, e a sua saída dos aquartelamentos, ou povoações. Dois aviões rodesianos Hunter foram abatidos. Este estado de sufoco originou a operação dos comandos mais vergonhosa da nossa estadia em África, em Wiriyamu, relatada por missionários espanhóis, o inglês Adrian Hastings e outros.
Os nossos generais não aprenderam nada. Em 1966 na Guiné, ao tempo do Gen. Arnaldo Schulz, foi empreendida uma operação de grande envergadura na ilha de Como, tendo mobilizado os três ramos das FA e todos os meios bélicos disponíveis. Resultado a ilha ficou deserta, no entanto mal as nossas tropas voltaram as costas, o IN saiu dos seus refúgios e ficou mais forte. A ilha passou a ser o QG de Nino Vieira !
Para substituir o Gen. Schulz, foi nomeado outro, o Gen. António Spínola, com entrada de leão e saída de sendeiro. General que até tinha sido observador das manobras dos alemães em Estalinegrado em 1942, pensava revolucionar as artes da guerra, parecia que estava em todas, percebeu que não ia lá e escreveu um livro em que só faltava dizer...tirai-me daqui !

Em 1973 aconteceram os tristes acontecimentos de Guidage no norte, Guileje e Gadamael, onde pereceram dezenas de militares dos quais praticamente um pelotão de paraquedistas em Guileje, cujos corpos lá sepultados, foram resgatados em 2002, sob os auspícios da Liga dos Combatentes.
Os novos senhores do leste de Angola, Hipólito, Pezarat, Sachetti e seus correlegionários, a primeira coisa visível foi denunciar o acordo da "operação madeira", entre as NT e a Unita com a participação dos madeireiros. Foi como mexer num vespeiro, até aí vivia-se em paz relativa, a Unita armada por nós,  entretinha-se a guerrear o seu arqui inimigo o Mpla, o comércio e as infraestruturas fluíam. Daí para a frente os pelotões e companhias isoladas eram flageladas, cresceram as emboscadas e mortes. Os comandos passaram a ter baixas consideráveis, expressas no livro do Furriel comando Albano Sousa, "Chão de Sangue", ou no ataque a uma coluna no Luvuéi. Abriu-se a guerra até Luiana, activou-se Silva Porto, os nossos aviões e helicópteros começaram a ser alvejados e atingidos, que o digam o Patrício e o Corredeira, e tudo se encaminhava para sairmos do leste envergonhados e humilhados.
Silva Cardoso era um homem que observou com minúcia o problema angolano, assim como o Cap. Carlos Acabado que nos brindou com as suas histórias vividas no leste, que irei, se me deixarem, pronunciar num texto posterior. Não era nenhuma flor de estufa, ficou famosa a sua guerra pessoal com o Cap. Ervedosa, que saiu compulsivamente da FAP, e no Prec foi readmitido numa manhã e á tarde passou á reserva.
Sorte diferente teve um comandante dos PV2, o Ten Vitor, que pediu a passagem á reserva no fim de uma comissão em Moçambique, mais tarde solicitou a reintegração e apareceu em Henrique de Carvalho. Era bom piloto mas sorumbático, ar superior e até malcriado. Em 1975, surpreendi-o na televisão á direita do Gen. Vasco Gonçalves, num célebre comício de Almada. Com estes "artistas" íamos longe !
Conclusão:
Gen. Bettencourt
O Gen. Bettencourt Rodrigues acabou por substituir o Gen. António Spínola, que já tinha fraquejado quando escreveu o livro "Portugal e o Futuro"...foi o primeiro que fechou as portas da Guiné.
Quando recordo o Ten.Cor. Sachetti, lembro-me de um dito muito repetido pelo meu pai, que argumentava que um homem que só gaste dois metros de fazenda e pequenino, ou é filho da...ou, bailarino! Eu acho que ele correspondia á primeira opção!




Por: Toneta



quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

AS BOTAS E OS RACISTAS DOS "PRIMOS".


Aqui, em N'Riquinha, aconteceu-me uma surpresa no primeiro destacamento que aqui fiz.
No Luso, tinham-me dito que lá a vida era facilitada quanto ao vestuário. Não havia exigência alguma. Eu, maçarico da silva, tentei imitar alguns velhinhos adquirindo umas botas de meio cano que também ficavam bem com as calças de trabalho. Inclusivé o OPC "ZéGalo" confirmou que podia andar como quisesse, que ali raramente ia alguém incomodar.
Acontece que certo dia acordámos com o barulho do BC (beechcraft) a fazer duas rapadas. O gerador do exército estava desligado pois era a vez do nosso trabalhar e, em suma, o BC estava a fazer- se à pista tendo vindo do Luso sem rádio farol e sem comunicações. 
À pressa lá fui ligar o gerador dizendo que estava avariado e que estava a terminar a sua reparação. Sujei o rosto com óleo e a camisa também. 
Era o Comandante Sachetti ! Cumprimentou-nos, disse ao
sargento que o acompanhava para se inteirar do que se estava a passar e, para meu desespero, para identificar o responsável pelo gerador, que ainda por cima, estava incorrectamente fardado, tinha as ditas botas calçadas.
A visita inesperada a partir daí decorreu normalmente. O Comandante Sachetti levantou voo com o apoio necessário. Quando cheguei ao Luso no fim do destacamento, fui chamado ao Capitão Oliveira, que me chamou a atenção para a dita incorrecção, e como castigo se saldou na privação de férias durante um ano. 
Como disse o "Zégalo", não há problema, hehehe... para ele, digo eu! Aqui vai um grande abraço para ele.

Noutro dos destacamentos que aqui fiz aconteceu-me outra surpresa. 
Estava destacado com um companheiro preto de comunicações. Eu era de rádio. Tudo muito bem até à chegada dos "primos" para uma operação conjunta com os "saltimbancos".
Acontece, que no fim de jantar no segundo dia, alguns primos depois de um bom repasto bem...muitíssimo bem regado, decidiram incomodar o companheiro preto. Este apercebendo-se das intenções dos sul africanos, recolheu-se no quarto. Pouco depois também regressei ao quarto pois de manhã cedo teria de ligar gerador. 

Os "primos" depois de muita algazarra na messe do exército resolveram vir para os aposentos que lhes eram destinados. Ai a coisa complicou-se porque queriam incomodar o especialista preto. Bateram às portas e janelas diversas vezes, cada vez com mais violência reclamando a presença do companheiro. Chegaram a partir vários vidros. Eu tinha trancado a porta e foi o que nos valeu. 
De manhã, para minha admiração, estavam frescos e bem dispostos para começarem as operações. O companheiro OPC pode então descansar! Grandes pilotos e grandes racistas! Tempos idos.

Por:




quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

VISÃO "FOTOGRÁFICA" DO POVO LUENA.

Estamos no Carnaval, mas...estes não são palhaços nem estão a brincar aos carnavais, são Tchinganges no bairro de Benfica no Luso. A sua participação aqui prende-se com uma das maiores cerimónias entre os povos do leste de Angola: a Iniciação, nesta cerimónia jovens entravam na sociedade. Tinham passado por um período de instrução onde aprendiam técnicas de sobrevivência na mata ministradas por um "Mais Velho" e alguns segredos da tribo...depois eram submetidos à circuncisão, estavam aptos a entrar na vida social.
Ainda há por aí muita gente, que ao ver soldados "pretos" junto com soldados idos de Portugal ficam confusos, pois fiquem sabendo que essa mistura era natural, aos soldados idos de Portugal juntavam-se outros de recrutamento local. No caso de Companhias formadas em Angola isso era ainda mais evidente. Esse processo visava preparar um futuro exército angolano, já que pelo menos que eu saiba, a independência de Angola estava a ser planeada desde 1971. Eu sei do que falo já que fui algumas vezes a Cangumbe e as mensagens passavam por mim. Pretendo com isto contrariar alguma polémica sobre a nossa missão em África. Evidentemente que aceito que houve coisas más...praticadas por ambas as partes. Mas adiante, prega-se um movimento de hostilidade entre os portugueses e angolanos, com ódio destes aos portugueses.
Olhem bem para a foto! Quantos portugueses estão na foto? Era a festa dos Tchingangues e no meio deles estava eu sozinho, apenas armado com a minha Nikon. Valentia? Não! Boa convivência que outros na Argélia ou Paris envenenavam...

Duas cidades, duas culturas? Eis um tema que se manterá actualizado por muito tempo. Impondo uma cultura estranha? É um tema difícil, fácil é dizer que se impunham novos hábitos sociais, alheios à cultura dos povos, maneiras de vestir, escola, uma língua de comunicação universal em que podem ser integrados tribos, etnias e línguas diferentes, criando um novo conceito de nação entre as diversas nações angolanas.
Pois! Foi assim que nasceu um novo conceito de nação angolana.
Ou se preserva o mito da sociedade primitiva, com várias línguas, hábitos e costumes tribais, com tudo o que tenham de bom, mas também com hábitos que não são aceites numa sociedade civilizada. O choque cultural existe sempre. O contrário é condenar as pessoas a estagnar, não lhes facultando o acesso a bens culturais e novos conceitos de civilização, fundamentais ao futuro e bem-estar dos povos.
Em nome da preservação da cultura própria, é condená-los à estagnação, fazendo desses povos reservas típicas muito interessantes. Ao vacinar as crianças está-se a interferir com a cultura dos povos…é-se preso por ter cão, é-se preso por não ter cão.
Há sempre nestas questões a tentativa de impor modelos sociais que chocam as pessoas, que se sentem marginalizadas por não quererem prescindir dos seus hábitos costumes e valores tradicionais. Duvido que haja solução perfeita para esta questão. O choque cultural existirá sempre.
No Luso eu era um privilegiado, tinha transporte próprio, uma mini-honda, o que me permitia andar pelos muceques a tirar umas fotografias. No meio dos muceques havia fontanários, simples torneiras, mas com água potável, onde a população se abastecia...não havendo água canalizada recorria-se à água encabaçada. Achei curioso a adaptação das pipas, transformadas agora em pipas-roda. Por um lado gostei da ideia, por outro fiquei triste por ver aquelas pipas vocacionadas e treinadas para envelhecer um bom tinto maduro, acabarem a sua vida cheias de água...triste destino. Quando se chega, toda a gente a olhar para mim, não só pela mini-honda, mas também pela máquina fotográfica. Ora, eu não queria tirar uma foto com toda a gente a olhar para mim. Retirei o visor prismático e enquadrei calmamente através do ecrã de focagem e quando eles já estavam fartos da minha presença, fiz clic e assim gravei um momento da vida nos muceques.

Um dia do ano de 1971 comprei um rolo de slides, era caro custava mais de 300$00, ou seja ia-se ao cinema por 7$50 ou 10$00. Fazer click era caro, com o digital vejo muita gente a fazer click, click, click, sem qualquer noção de enquadramento ou estética, depois mostra-se aos amigos: -Tás a ver? e desaparecem ...pois o rolo era para poupar, só slides que valessem a pena e assim fui até à praça do Luso...em 20 minutos gastei o rolo. Havia mangas à venda...

Coisas novas e diferentes como esta família que ali mesmo torrava ginguba.

Alguma experiência em fotografia cria certos hábitos úteis quando de está preparado. Um desses hábitos era ter a máquina preparada para um disparo instantâneo. Hoje com as máquinas com bons programas automáticos não é tão importante, mas um bom fotografo não usa o automático. A máquina estava preparada para apanhar qualquer cena entre os 2 e os 6 metros, recorrendo à programação da profundidade de campo. Mais longe ou mais perto era só dar um jeitinho, nem era preciso olhar para a objectiva.
Sempre gostei de praças onde as pessoas levam as suas coisas para vender, encontram os amigos e andam por ali. Foi na Praça do Luso que esta mulher passou por mim e ao passar reparei na bébé que levava as costas nesta maneira bem africana de a transportar.
A foto foi tirada depois do almoço, seriam umas duas da tarde, fazia calor e esta contradição entre o tropical e o capuz de lã enfiado na cabeça da criança chamou-me à atenção. Não dá para pensar ou regular a máquina, ou se está preparado para estas coisas ou não e eu estava.
Fiz clic e ainda hoje 48 anos depois,olho para a foto e acho graça.

O tema aqui era escolher qual a fotografia de que gosto mais. Naturalmente cada uma tem uma história, que não se pode desligar da fotografia. Tendo recebido talvez já no inicio de 1973 uma objectiva de 135 mm, esta foi de imediato eleita como a minha preferida e aquela que andava montada na máquina. A ideia é que se havia alguma coisa a fotografar rápido era a meia distancia, se assim não fosse dava tempo de mudar para a de 50 mm.
A fotografia foi tirada no Macondo, onde a convivência com a população era muito boa, andando eu normalmente sozinho e desarmado no meio da sanzala. Havia uma escola primária, as casas eram todas feitas de adobe, e o posto de enfermagem do quartel prestava assistência à população, perguntei-me algumas vezes o que mais se podia fazer, a resposta não era fácil.
Numa dessas visitas à sanzala captei o sorriso desta menina com o irmão as costas, gordinho e bem tratado e ainda hoje sorrio, esta criança foi uma das que andei por lá a proteger, eu e mais umas centenas de milhar de nós.

Já ouvi alguns angolanos a falar na "cultura das nossas mamãs". Claro que respeito a cultura de todos os povos e de toda a gente. Aqui falam disso referindo-se ao meio em que cresceram quando candengues, em oposição cresceram numa cultura diferente, com grandes influencias portuguesas, em que por vezes os seus valores tradicionais nem sempre foram respeitados. Ponho aqui apenas uma nota pelo uso da língua portuguesa, elemento aglutinador da nacionalidade angolana.
Voltarei um dia a este tema, por agora estou a mostrar fotografias e entre elas esta a que me refiro como a foto de todas as mentiras. Uma mulher no meio da sanzala pilando milho, sob uma bananeira, ao lado vai secando a farinha de mandioca, enquanto um dos candengues, que não quis ficar na foto vai trincando uma manga, a irmã vigia perto a panela onde o feijão vai cozendo junto com o óleo de palma, é esta a cultura genuinamente angolana?
Bom! isso não é importante sendo que é a cultura com quem se identificam. Mas a foto das mentiras porquê? -Porque da descrição acima só o óleo de palma é africano, oriundo da zona da Guiné, as bananeiras vieram da Tailândia, as mangas da India, o feijão do México, o milho dos incas mexicanos, assim como o tomate e os pimentos. Mesmo o pilão e a mandioca vieram dos índios Piauis do Brasil...mas és tu português sujeito a 1300 anos de colonização dos diversos povos que aí abortaram, que estás a discutir o que é a verdadeira cultura angolana? ...pois...

Não me digas que esta foto, com as pessoas todas de costas é uma das tuas preferidas? -Sim,é! É porque foi tirada num domingo num bairro dos arredores do Luso. Era dia de festa e actuavam os tchinganges na festa da mucanda, relacionada com a cerimónia da circuncisão dos rapazes. Sem estar a defender que estava tudo bem, que não estava, noto que as pessoas estão razoavelmente bem vestidas e que a minha presença era tão natural que nem me ligavam, estavam na deles, mas mais importante é que aqui nascia uma nova Angola. Povos que duas ou três gerações antes eram inimigos e se guerreavam, conviviam agora e numa boa percentagem usando a língua portuguesa como elemento de união.
Esta questão do aculteramento é e será sempre um tema em aberto. Deixar os povos com a sua cultura tradicional, sem interferir...bom para os filmes da National Geografic...sem esquecer que vacinar as crianças contra o sarampo, ou mandá-las para a escola, são igualmente uma agressão à cultura tradicional dos povos...


Cazombo 1972, estava com a câmara sem o visor prismático e a objectiva de 135 mm, focando directamente através do ecrã de focagem, assim quem olhava para a câmara via-se a si próprio como se se estivesse a ver ao espelho, eles divertiam-se e eu ria, fiz clik e registei o sorriso destes rapazes do Cazombo.

Em 1895, caminhava para leste o Capitão Trigo Teixeira, para ali montar 4 fortes, o CFB só chegou ao Luau em 1929, ou seja, a fixação de portugueses por aquelas paragens era relativamente recente em 1971, data da fotografia abaixo. Claro que já por ali andavam há muito, mas sem grande significado.
Foi o CFB que promoveu aquelas terras. O CFB criou serviços e empregos para muita gente, com larga in
tegração de angolanos, que se adaptaram a novas formas de vida. Onde antes havia tribos diversas, começava a haver angolanos. Onde antes as tribos se guerreavam, ou no mínimo eram rivais, começavam agora a conviver de forma diferente como angolanos. Esta questão pode ser discutida, até com muita polémica pelo meio, mas a verdade é que a língua e de certo modo a cultura portuguesa modificou modos de viver e foi elemento aglutinador daqueles povos. Tão simplesmente uma nova pequena burguesia frequentava a praça a comprar mangas, com tudo que tal gesto tem de bom e ou mau...mandar as crianças para a escola também é interferir na cultura tradicional dos povos...

É verdade, havia uma nova sociedade angolana a florescer, já mais urbana e menos tribal,mas era preciso ir à praça a um sábado para melhor a ver e poder fotografar. Praça do Luso, algures no ano de 1971.

E já que falámos em netos, mostrem-lhes também que foi graças ao seu avô, que existia em Angola uma nova sociedade, onde as pessoas faziam uma vida normal, tendo o seu emprego, tendo a sua escola, frequentando cafés e restaurantes sem qualquer discriminação.
Mas hoje mostro uma imagem de paz, as pessoas foram à praça a comprar umas coisinhas...mostra ao teu avô que até melancias havia. (Nota: não quero com isto dizer que estava tudo bem em Angola, muita coisa estava mal, muita coisa estava a melhorar...na minha rua é a mesma coisa...)
A Muari! Que poderia traduzir por noiva. Com o corpo coberto de uma mistura de óleo e hematita que lhe dava um tom avermelhado, eis uma noiva Lunda do Macondo. Começo por reparar nas suas jóias, em parte zimbros que aqui chegaram a mais de 1500km do mar onde cresceram. Os zimbros foram usados como moeda. Pareceu-me meio drogada, só muito mais tarde vim a saber que na cerimónia de casamento ela passou a noite costas com costas com o noivo, enquanto as mulheres da povoação cantavam à sua volta. Antes do casamento viveu isolada num ritungo, uma pequena cubata redonda com um pequeno cercado, onde uma mulher mais velha lhe deu instrução sexual e lhe dava todas as instruções necessárias. 

O ritungo, o ritungo era uma escola de noivas, ou talvez mais exactamente uma escola de educação sexual.
Ao atingirem a puberdade as raparigas eram encerradas aqui. Podiam circular no pequeno pátio exterior. Mas não podiam ver nem ser vistas por homem.
Na foto há uma abertura, mas geralmente estava fechada com uma porta. Para irem "ao mato" circulavam tapadas com um cobertor, agarradas a um pau qu
e uma rapariguinha conduzia.
A foto foi tirada de cima de um morro de salalé.
Aqui uma mulher mais velha instruía-a nas coisas do sexo e mais informações que uma mulher precisava saber antes de entrar no casamento. Saía daqui geralmente para casar, na maioria dos casos casamento combinado, Se não arranjasse noivo podia ficar aqui até um ano, depois saía e tratava ela de arranjar um.

Eis uma imagem com uma visão só para alguns.
Margens do Rio Luena em Chafinda, as quedas de água ficam logo a seguir e ao fundo vê-se a ponte. Chafinda era bonita, mas pouco recomendável para turismo. Na foto duas mulheres põem mandioca de molho para a amolecer e retirar o veneno que esta contem.







Armando Monteiro.
Alf.Mil.Transmissões BCaç 3831