quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

VISÃO "FOTOGRÁFICA" DO POVO LUENA.

Estamos no Carnaval, mas...estes não são palhaços nem estão a brincar aos carnavais, são Tchinganges no bairro de Benfica no Luso. A sua participação aqui prende-se com uma das maiores cerimónias entre os povos do leste de Angola: a Iniciação, nesta cerimónia jovens entravam na sociedade. Tinham passado por um período de instrução onde aprendiam técnicas de sobrevivência na mata ministradas por um "Mais Velho" e alguns segredos da tribo...depois eram submetidos à circuncisão, estavam aptos a entrar na vida social.
Ainda há por aí muita gente, que ao ver soldados "pretos" junto com soldados idos de Portugal ficam confusos, pois fiquem sabendo que essa mistura era natural, aos soldados idos de Portugal juntavam-se outros de recrutamento local. No caso de Companhias formadas em Angola isso era ainda mais evidente. Esse processo visava preparar um futuro exército angolano, já que pelo menos que eu saiba, a independência de Angola estava a ser planeada desde 1971. Eu sei do que falo já que fui algumas vezes a Cangumbe e as mensagens passavam por mim. Pretendo com isto contrariar alguma polémica sobre a nossa missão em África. Evidentemente que aceito que houve coisas más...praticadas por ambas as partes. Mas adiante, prega-se um movimento de hostilidade entre os portugueses e angolanos, com ódio destes aos portugueses.
Olhem bem para a foto! Quantos portugueses estão na foto? Era a festa dos Tchingangues e no meio deles estava eu sozinho, apenas armado com a minha Nikon. Valentia? Não! Boa convivência que outros na Argélia ou Paris envenenavam...

Duas cidades, duas culturas? Eis um tema que se manterá actualizado por muito tempo. Impondo uma cultura estranha? É um tema difícil, fácil é dizer que se impunham novos hábitos sociais, alheios à cultura dos povos, maneiras de vestir, escola, uma língua de comunicação universal em que podem ser integrados tribos, etnias e línguas diferentes, criando um novo conceito de nação entre as diversas nações angolanas.
Pois! Foi assim que nasceu um novo conceito de nação angolana.
Ou se preserva o mito da sociedade primitiva, com várias línguas, hábitos e costumes tribais, com tudo o que tenham de bom, mas também com hábitos que não são aceites numa sociedade civilizada. O choque cultural existe sempre. O contrário é condenar as pessoas a estagnar, não lhes facultando o acesso a bens culturais e novos conceitos de civilização, fundamentais ao futuro e bem-estar dos povos.
Em nome da preservação da cultura própria, é condená-los à estagnação, fazendo desses povos reservas típicas muito interessantes. Ao vacinar as crianças está-se a interferir com a cultura dos povos…é-se preso por ter cão, é-se preso por não ter cão.
Há sempre nestas questões a tentativa de impor modelos sociais que chocam as pessoas, que se sentem marginalizadas por não quererem prescindir dos seus hábitos costumes e valores tradicionais. Duvido que haja solução perfeita para esta questão. O choque cultural existirá sempre.
No Luso eu era um privilegiado, tinha transporte próprio, uma mini-honda, o que me permitia andar pelos muceques a tirar umas fotografias. No meio dos muceques havia fontanários, simples torneiras, mas com água potável, onde a população se abastecia...não havendo água canalizada recorria-se à água encabaçada. Achei curioso a adaptação das pipas, transformadas agora em pipas-roda. Por um lado gostei da ideia, por outro fiquei triste por ver aquelas pipas vocacionadas e treinadas para envelhecer um bom tinto maduro, acabarem a sua vida cheias de água...triste destino. Quando se chega, toda a gente a olhar para mim, não só pela mini-honda, mas também pela máquina fotográfica. Ora, eu não queria tirar uma foto com toda a gente a olhar para mim. Retirei o visor prismático e enquadrei calmamente através do ecrã de focagem e quando eles já estavam fartos da minha presença, fiz clic e assim gravei um momento da vida nos muceques.

Um dia do ano de 1971 comprei um rolo de slides, era caro custava mais de 300$00, ou seja ia-se ao cinema por 7$50 ou 10$00. Fazer click era caro, com o digital vejo muita gente a fazer click, click, click, sem qualquer noção de enquadramento ou estética, depois mostra-se aos amigos: -Tás a ver? e desaparecem ...pois o rolo era para poupar, só slides que valessem a pena e assim fui até à praça do Luso...em 20 minutos gastei o rolo. Havia mangas à venda...

Coisas novas e diferentes como esta família que ali mesmo torrava ginguba.

Alguma experiência em fotografia cria certos hábitos úteis quando de está preparado. Um desses hábitos era ter a máquina preparada para um disparo instantâneo. Hoje com as máquinas com bons programas automáticos não é tão importante, mas um bom fotografo não usa o automático. A máquina estava preparada para apanhar qualquer cena entre os 2 e os 6 metros, recorrendo à programação da profundidade de campo. Mais longe ou mais perto era só dar um jeitinho, nem era preciso olhar para a objectiva.
Sempre gostei de praças onde as pessoas levam as suas coisas para vender, encontram os amigos e andam por ali. Foi na Praça do Luso que esta mulher passou por mim e ao passar reparei na bébé que levava as costas nesta maneira bem africana de a transportar.
A foto foi tirada depois do almoço, seriam umas duas da tarde, fazia calor e esta contradição entre o tropical e o capuz de lã enfiado na cabeça da criança chamou-me à atenção. Não dá para pensar ou regular a máquina, ou se está preparado para estas coisas ou não e eu estava.
Fiz clic e ainda hoje 48 anos depois,olho para a foto e acho graça.

O tema aqui era escolher qual a fotografia de que gosto mais. Naturalmente cada uma tem uma história, que não se pode desligar da fotografia. Tendo recebido talvez já no inicio de 1973 uma objectiva de 135 mm, esta foi de imediato eleita como a minha preferida e aquela que andava montada na máquina. A ideia é que se havia alguma coisa a fotografar rápido era a meia distancia, se assim não fosse dava tempo de mudar para a de 50 mm.
A fotografia foi tirada no Macondo, onde a convivência com a população era muito boa, andando eu normalmente sozinho e desarmado no meio da sanzala. Havia uma escola primária, as casas eram todas feitas de adobe, e o posto de enfermagem do quartel prestava assistência à população, perguntei-me algumas vezes o que mais se podia fazer, a resposta não era fácil.
Numa dessas visitas à sanzala captei o sorriso desta menina com o irmão as costas, gordinho e bem tratado e ainda hoje sorrio, esta criança foi uma das que andei por lá a proteger, eu e mais umas centenas de milhar de nós.

Já ouvi alguns angolanos a falar na "cultura das nossas mamãs". Claro que respeito a cultura de todos os povos e de toda a gente. Aqui falam disso referindo-se ao meio em que cresceram quando candengues, em oposição cresceram numa cultura diferente, com grandes influencias portuguesas, em que por vezes os seus valores tradicionais nem sempre foram respeitados. Ponho aqui apenas uma nota pelo uso da língua portuguesa, elemento aglutinador da nacionalidade angolana.
Voltarei um dia a este tema, por agora estou a mostrar fotografias e entre elas esta a que me refiro como a foto de todas as mentiras. Uma mulher no meio da sanzala pilando milho, sob uma bananeira, ao lado vai secando a farinha de mandioca, enquanto um dos candengues, que não quis ficar na foto vai trincando uma manga, a irmã vigia perto a panela onde o feijão vai cozendo junto com o óleo de palma, é esta a cultura genuinamente angolana?
Bom! isso não é importante sendo que é a cultura com quem se identificam. Mas a foto das mentiras porquê? -Porque da descrição acima só o óleo de palma é africano, oriundo da zona da Guiné, as bananeiras vieram da Tailândia, as mangas da India, o feijão do México, o milho dos incas mexicanos, assim como o tomate e os pimentos. Mesmo o pilão e a mandioca vieram dos índios Piauis do Brasil...mas és tu português sujeito a 1300 anos de colonização dos diversos povos que aí abortaram, que estás a discutir o que é a verdadeira cultura angolana? ...pois...

Não me digas que esta foto, com as pessoas todas de costas é uma das tuas preferidas? -Sim,é! É porque foi tirada num domingo num bairro dos arredores do Luso. Era dia de festa e actuavam os tchinganges na festa da mucanda, relacionada com a cerimónia da circuncisão dos rapazes. Sem estar a defender que estava tudo bem, que não estava, noto que as pessoas estão razoavelmente bem vestidas e que a minha presença era tão natural que nem me ligavam, estavam na deles, mas mais importante é que aqui nascia uma nova Angola. Povos que duas ou três gerações antes eram inimigos e se guerreavam, conviviam agora e numa boa percentagem usando a língua portuguesa como elemento de união.
Esta questão do aculteramento é e será sempre um tema em aberto. Deixar os povos com a sua cultura tradicional, sem interferir...bom para os filmes da National Geografic...sem esquecer que vacinar as crianças contra o sarampo, ou mandá-las para a escola, são igualmente uma agressão à cultura tradicional dos povos...


Cazombo 1972, estava com a câmara sem o visor prismático e a objectiva de 135 mm, focando directamente através do ecrã de focagem, assim quem olhava para a câmara via-se a si próprio como se se estivesse a ver ao espelho, eles divertiam-se e eu ria, fiz clik e registei o sorriso destes rapazes do Cazombo.

Em 1895, caminhava para leste o Capitão Trigo Teixeira, para ali montar 4 fortes, o CFB só chegou ao Luau em 1929, ou seja, a fixação de portugueses por aquelas paragens era relativamente recente em 1971, data da fotografia abaixo. Claro que já por ali andavam há muito, mas sem grande significado.
Foi o CFB que promoveu aquelas terras. O CFB criou serviços e empregos para muita gente, com larga in
tegração de angolanos, que se adaptaram a novas formas de vida. Onde antes havia tribos diversas, começava a haver angolanos. Onde antes as tribos se guerreavam, ou no mínimo eram rivais, começavam agora a conviver de forma diferente como angolanos. Esta questão pode ser discutida, até com muita polémica pelo meio, mas a verdade é que a língua e de certo modo a cultura portuguesa modificou modos de viver e foi elemento aglutinador daqueles povos. Tão simplesmente uma nova pequena burguesia frequentava a praça a comprar mangas, com tudo que tal gesto tem de bom e ou mau...mandar as crianças para a escola também é interferir na cultura tradicional dos povos...

É verdade, havia uma nova sociedade angolana a florescer, já mais urbana e menos tribal,mas era preciso ir à praça a um sábado para melhor a ver e poder fotografar. Praça do Luso, algures no ano de 1971.

E já que falámos em netos, mostrem-lhes também que foi graças ao seu avô, que existia em Angola uma nova sociedade, onde as pessoas faziam uma vida normal, tendo o seu emprego, tendo a sua escola, frequentando cafés e restaurantes sem qualquer discriminação.
Mas hoje mostro uma imagem de paz, as pessoas foram à praça a comprar umas coisinhas...mostra ao teu avô que até melancias havia. (Nota: não quero com isto dizer que estava tudo bem em Angola, muita coisa estava mal, muita coisa estava a melhorar...na minha rua é a mesma coisa...)
A Muari! Que poderia traduzir por noiva. Com o corpo coberto de uma mistura de óleo e hematita que lhe dava um tom avermelhado, eis uma noiva Lunda do Macondo. Começo por reparar nas suas jóias, em parte zimbros que aqui chegaram a mais de 1500km do mar onde cresceram. Os zimbros foram usados como moeda. Pareceu-me meio drogada, só muito mais tarde vim a saber que na cerimónia de casamento ela passou a noite costas com costas com o noivo, enquanto as mulheres da povoação cantavam à sua volta. Antes do casamento viveu isolada num ritungo, uma pequena cubata redonda com um pequeno cercado, onde uma mulher mais velha lhe deu instrução sexual e lhe dava todas as instruções necessárias. 

O ritungo, o ritungo era uma escola de noivas, ou talvez mais exactamente uma escola de educação sexual.
Ao atingirem a puberdade as raparigas eram encerradas aqui. Podiam circular no pequeno pátio exterior. Mas não podiam ver nem ser vistas por homem.
Na foto há uma abertura, mas geralmente estava fechada com uma porta. Para irem "ao mato" circulavam tapadas com um cobertor, agarradas a um pau qu
e uma rapariguinha conduzia.
A foto foi tirada de cima de um morro de salalé.
Aqui uma mulher mais velha instruía-a nas coisas do sexo e mais informações que uma mulher precisava saber antes de entrar no casamento. Saía daqui geralmente para casar, na maioria dos casos casamento combinado, Se não arranjasse noivo podia ficar aqui até um ano, depois saía e tratava ela de arranjar um.

Eis uma imagem com uma visão só para alguns.
Margens do Rio Luena em Chafinda, as quedas de água ficam logo a seguir e ao fundo vê-se a ponte. Chafinda era bonita, mas pouco recomendável para turismo. Na foto duas mulheres põem mandioca de molho para a amolecer e retirar o veneno que esta contem.







Armando Monteiro.
Alf.Mil.Transmissões BCaç 3831

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