sexta-feira, 25 de junho de 2021

A GUERRA - ÓDIO E VINGANÇA


A guerra deixa marcas e traumas para toda a vida.
Hoje ela continua a entrar-nos casa a dentro via TV, mostrando imagens de violência, destruição e morte, recordando-nos tempos passados na juventude tão longe do Mundo em que vivíamos e de onde tantos não mais regressaram.
Ao longo de cinquenta anos pouco ou nada falei e muito menos escrevi sobre testemunhos de alguma intolerância e crueldade, há sempre o receio de melindrar irmãos e camaradas de armas que lado a lado cumprimos o nosso dever perante a Pátria, num conflito que hoje a esta distância nem todos encaramos do mesmo ponto de vista, e fazemos igual balanço, isto com o direito e liberdade de opinião que legalmente nos assiste.
Como soldado ao serviço da Pátria assumo a minha cota parte nessa guerra tanto pessoal como coletivamente, mas há actos desumanos que não cometi nem me sinto responsável e que continuam a pesar-me na consciência.
Não pretendo aqui fazer alguma condenação em particular, pois sabemos que atrocidades foram cometidas pelos dois lados, mas sim repudiar a guerra em si que leva a actos desumanos e tresloucados que posteriormente em tempo de paz faz sentir remorsos a quem os cometeu já sem a possibilidade de ementa e reverter o mal.


No resgate e evacuação dos nossos irmãos do inferno das zonas de combate, feridos, estropiados, tudo fazíamos para os ajudar, muitas vezes sob a angústia e o sentimento de impotência para lhes aliviar o sofrimento, mas jamais senti desejo de vingança ao evacuarmos também prisioneiros feridos precisando de socorro, era uma missão fundamentalmente humanitária desprovida de rancor e ressentimento.
Há momentos e imagens de crueldade que teimam em permanecer na minha memória e não consigo apagar, um pesadelo se repete entre tantos com toda a sua carga arrepiante e de repulsa.
--‐-‐‐-‐------------
Algures em Muéda na placa do AM 51, concentração de grupo de tropas de combate após Heli assalto com limpeza do local e imediata recolha no final da operação.
Não fizeram prisioneiros !
Na sua posse os troféus de guerra, armas e alguns artefactos, instrumentos de caça, uma velha lata de petróleo transformada em viola, galinhas degoladas.
Mas eis que o impensável acontece;
uma mão tira algo do bolso do camuflado, na palma dessa mão duas pequenas orelhitas cor de chocolate tingidas de sangue devido ao corte da cabeça a que pertenciam e por certo de uma criança.
Isto sob o sorriso triunfante de quem exibia como seu troféu esta crueldade e barbárie perante o espanto e horror dos presentes.
Uma câmara de repórter regista a imagem, de imediato chega um superior dando uma reprimenda ao responsável deste acto bárbaro mandando-o apresentar-se de imediato no seu gabinete operacional.
Que sentimento de revolta e agonia perante este quadro atroz, não pode valer tudo na guerra, tem que haver uma réstia de humanismo e compaixão.
Na guerra é facilmente ultrapassada a fronteira entre a tolerância e a crueldade, o ódio povoa sempre os campos de batalha, um sentimento que por vezes leva a atrocidades de ambos os contendedores.
Que me perdoem os camaradas que possam pensar, que ao reavivar feridas pretendo condenar ou cruxificar alguém que arriscou a sua vida no cumprimento do dever como soldado ao serviço da Pátria.
Não! Mas há actos irrefletidos e inqualificáveis que não podem ser branqueados, sob pena de nos tornarmos uns monstros.
Nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida a um seu semelhante, mas na guerra e nas zonas de combate havia que matar para não morrer.
No entanto, com um pouco de humanismo no meio de tanta adversidade e rancor também podem acontecer actos de amor e compaixão, e eles existiram no campo de batalha e foram muitos.
A guerra é feia dura e cruel, apenas nos filmes se reveste com alguns contornos de romantismo.
Não há bons e maus combatentes, há apenas aqueles capazes de perante os limites intoleráveis procurarem ser humanos para cumprirem a sua missão.
---------------‐-------
Alguém que muito prezo escreveu :
"HÁ DÉCADAS QUE DEIXEI DE CULTIVAR O ÓDIO, PORQUE APRENDI COM UMA DURA LIÇÃO QUE A VIDA ME IMPÔS; O ÓDIO ACABA ESTUPIDIFICANDO"
Eu também aprendi !
Não sinto ódio por ninguém, e tenho relutância em pronunciar a palavra inimigo.
O QUE TODOS PRECISAMOS É AMOR !
Francisco Serrano -Mecânico de Helicópteros
Moçambique 71/72



quinta-feira, 17 de junho de 2021

VOO NOCTURNO

Cazombo - foto de Gonçalo Carvalho


Pois é o voo noturno era proibido, mas às vezes acontecia.
Um dia, no Cazombo, estava eu de alerta no nosso gabinete da linha, todos na cavaqueira, quando ao final da tarde toca aquela campainha que dava o sinal de aviso para DO ou Héli.
Era estranho àquela hora, mas ordens são ordens, rápidamente o DO fica pronto, chega o piloto neste caso o Patrício, diz ele: vamos embora que se faz tarde!
Olhei para ele e digo: a esta hora já nos f.....!
Descolagem em direção a um qualquer aquartelamento do exército, era relativamente perto.
Chegados ao destino, o evacuado era um soldado ferido grave rapidamente embarcado. Como sabem o dia é curto, o dia a findar as preocupações no regresso a aumentar, ainda disse ao Patrício: é pá não vamos ter tempo!
Mas devido á gravidade do ferido lá descolamos.
Como era de prever a meio do regresso fez-se noite, uma noite escura como breu, íamos calados, lá em baixo na mata viam-se de onde em onde fogueiras, porque "eles" estavam lá.
Continuámos a voar práticamente calados, até que ao longe se começa a ver o clarão das luzes do Luso, respiramos de alívio, alinhamos com o rádio farol, contactamos com a torre do Luso e a aterragem é efectuada sem problemas. 
Na placa esperava-nos todo o pessoal da linha, o chefe Isidro "Meirim" e mais atrás o comandante Sachetti, ele e o  Patrício seguiram para as Operações, eu fiquei a a ajudar os maqueiros e a amarrar o DO.
Moral da estória arriscamos, para salvar um camarada ferido com gravidade, mas voar de noite naquela zona era de cortá-las.
Foi mais uma missão arriscada de entre muitas, felizmente correu bem, talvez o camarada se tenha safado, nós fizemos o que pudemos ainda que infringindo as regras.


Ano 1973, MMA Tomaz

sexta-feira, 11 de junho de 2021

ENFERMEIRO EM S. TOMÉ.



Quando me apresentei ao Comandante Silveira, logo depois de ter aterrado em São Tomé, no Aeródromo de Trânsito nº2 em Agosto de 1972, tentei fazer as apresentações tal como tinha aprendido na escola da Ota, na disciplina de Instrução Militar Teórica (a que nós chamávamos “arre macho sentado” – a instrução militar prática ou ordem unida era “arre macho em pé”- alguém se lembra?).
- Apresenta-se o primeiro cabo MM….
- Ó Carlos Gato, deixe lá as formalidades e diga-me o que é que fez na base do Montijo.
- Trabalhei na electricidade e instrumentos do P2V5 durante um ano e depois cerca de sete meses nos motores e hélices do mesmo avião.
- E antes da tropa o que é que fez?
- Era estudante e andei nos escuteiros.
- E o que aprendeu nos escuteiros que possa ser útil?
- Fiz um curso de primeiros socorros, aprendi orientação…
Muito bem. Seja bem-vindo ao aeródromo. Como não temos aviões vai ficar na secretaria como os outros MMA. O seu chefe vai ser o Sargento Oliveira, etc, etc.
Algum tempo depois chamou-me ao gabinete e fiquei alarmado. O que é que eu fiz?
- Carlos Gato, O nosso enfermeiro vai deixar-nos. Precisam dele em Luanda. Fale com ele pois ele vai passar-lhe a chave do armário dos medicamentos. Você é o novo enfermeiro.
- Quê? Mas eu não percebo nada disso.
- Percebe sim, você tem um curso de primeiros socorros dos escuteiros.
Não sei se ele acreditava muito nos escuteiros ou se foi uma forma de me incentivar ou mesmo dar o armário a guardar a alguém.
Levei a coisa a sério e tentei fazer o que pudesse. Dava comprimidos (aspirinas) aos cozinheiros (um caboverdiano e um santomense) frequentemente, pois queixavam-se de dores de cabeça. Pequenos curativos aos cortes que faziam com as facas.
Só me lembro de uma ajuda a sério que dei a um camarada. O 1º. cabo Silva, especialista mecânico de rádio.
Um dia chegou ao pé de mim e perguntou-me:
- Será que podes ajudar-me? Tive um acidente e tenho as costas feridas. Fui ao médico do exército e este mandou por tintura e andar com as costas ao ar.
Não era um camarada com quem tivesse grandes relações. Infelizmente na juventude, temos pouca maturidade e criamos grupos de amigos relegando outros grupos. Em adultos é que percebemos os erros cometidos.
Mas voltemos à estória que vinha a contar.
Efectivamente os enfermeiros do exército “pintavam” as costas do camarada com tintura de mertiolato, um desinfectante bactericida muito usado nas zonas tropicais. Veio a seguir ao mercuro-cromo e era muito parecido com tintura de iodo.
Ele tinha escoriações enormes no tronco (escoriação é um misto de ferida e queimadura causada pela fricção), resultantes de uma queda de motociclo na estrada. Acho que ele tinha uma Kavasaki ou uma coisa parecida.
A camisa andava sempre tingida daquela mistela que lhe aplicavam e ele sofria dores horríveis quando da aplicação. Resolvi ajudá-lo e falei com o capitão Silveira.
- Sr. Comandante, posso ajudar o nosso camarada que está a sofrer muito mas, não tenho material para isso.
- O que é que pretende fazer e quanto custa?
Lá expliquei – era um balúrdio, caríssimo. O melhor que havia no mercado daquele tempo e já tinha aplicado na metrópole a conselho da minha namorada que sabia destas coisa.
- Está bem, se tem a certeza que é bom, mande comprar e ponha o camarada em condições.
Vieram caixas e caixas de Topi-furazona. Eram uns pensos vaselinados com produto antibacteriano que se aplicavam directamente sobre queimaduras de 2º. e terceiro grau, dando uma sensação de frescura (ao contrario da tintura que dava ardor) e um poder curativo muito mais rápido.
Penso que o tratamento durou duas semanas, mudávamos os pensos de dois em dois dias. Era toda a região dorsal. Imaginem a quantidade de pensos com cerca de 15x15cm.
Ficou impecável. Eu próprio me admirei. Sem cicatrizes. Trabalho de enfermeiro feito à pressa.
Ficámos amigos.
O bichinho ficou e, em 1981, tirei um curso de instrutor de primeiros socorros na Cruz Vermelha Portuguesa e andei pela região de Setúbal, a ensinar a arte aos bombeiros e população. O INEM só existia em Lisboa.
Fiz formação em todas as empresas por onde passei. Socorri vários camaradas acidentados, uns mais graves que os outros. Sempre que havia desgraça no trabalho, lá me vinham chamar.
Graças ao incentivo do Grande Capitão Silveira, um senhor que respeitava os seus colaboradores ajudando-os quando precisavam e repreendendo-os quando mereciam.
Esta estória é uma pequena homenagem e agradecimento a ele, esteja ele onde estiver.
Obrigado Sr. Comandante!

Por: Carlos Gato






sexta-feira, 4 de junho de 2021

A PRISÃO DO AB4

Porta de Armas e Casa da Guarda em fundo


Zé Mário e Antunes


Dos equipamentos do AB4, a Casa da Guarda era talvez uma das menos conhecidas pela maioria do pessoal, apesar de ficar logo à entrada da Base.
Uma das suas dependências era a prisão.
Porque felizmente, poucos a conheceram, trago algumas opiniões expressas ultimamente por alguns camaradas PAs, numa recente publicação no nosso grupo do Facebook.

José Neto - PA 1965/67:
Já que trouxeram à baila a prisão do AB4, que se situava no edifício da Casa da Guarda, aqui vai uma foto que tirei na antecâmara da prisão, a guardar "três presos" que, na verdade, não o eram. Era uma prisão com dois compartimentos que nem grades tinha. Os detidos estavam ali a cumprir as penas de prisão e dali não podiam sair até que terminassem as penas. 

Joaquim Caratao - PA 1968/70:
Em 1970 se não me falha a memória, um soldado de que não me recordo o nome, apenas sei que era natural de Fátima, conseguiu destruir uma daquelas camas de ferro Mod. FAP que equipavam as celas e com os destroços destruiu a porta da dita cela onde se encontrava detido. Não terá sido trabalho fácil pois quer a cama quer a porta tinha uma robustez considerável. Só foi possível levar a cabo esta loucura com o completo desequilíbrio psíquico em que se encontrava. 

José Rosa - PA 1968/70:
Boa memória Caratao ! Foi esse mesmo conhecido como o Fátima quem destruiu a porta da cela, também te lembras bem que o dito Fátima punha tudo em estado de sítio era desordeiro .

Joaquim Caratao
Joaquim Caratao:
Zé. E já agora impõe-se levar a história de alguns presos até ao fim! O Pára que te referes que eu não vou naturalmente citar o nome, "Chamar-lhe-ei apenas M" depois de bem bebido levou a cabo com outro companheiro uma investida nocturna ao bar. Como consequência dessa traquinice levou seis anos de prisão maior com expulsão das Forças Armadas ... Desta vez calhou-me a escoltá-lo para Luanda com destino a uma prisão que ninguém sabia qual seria. Apresentado no CMD da 2ª Reg. Aérea comecei a percorrer tudo o que era presidio civil e militar de Luanda sem que conseguisse que alguém o recebesse, assim andei três dias até pedir na Secção de justiça da Região Aérea para devolver o preso ao AB4. Foi então decidido que levaria no dia seguinte o detido para um Campo de Trabalho no deserto de Moçâmedes, próximo de Roçadas e se designava por Campo de trabalho do Péu Péu.
E Lá fui num PV2, como CMD do avião o Cap. Coias que era um inimigo figadal do dito Soldado por problemas que tiveram entre eles no Cazombo. O Capitão não sabia quem era o preso e quando o viu não conteve um comentário menos oportuno ao que o Soldado respondeu com vernáculo. Confesso que ainda hoje fico incomodado ao recordar o local onde foi deixado o M...
Entreguei-o ao Director do Campo que distava 15 Kms de Roçadas. Anos depois encontrei o M..., fiquei satisfeito quando ele me segredou que aquela prisão havia sido o melhor que lhe aconteceu na vida pelos ensinamentos e pelas prespectivas que lhe criou no futuro. Não cumpriu a pena completa com a emergência do 25 de Abril. Coisas da vida. 

José Rosa
José Rosa:
A prisão do AB4 era na casa da guarda em frente à porta de armas , haviam duas celas mesmo em frente aonde o pessoal de guarda dormia. Lembro-me ainda de alguns presos que por lá passaram em particular desse PA que era conhecido por Fátima, e de um que tinha sido Paraquedista, e foi parar à prisão por ter assaltado o bar de Sargentos ele e um alentejano que não recordo o nome nem numero, tenho uma recordação desse paraquedista que nunca vou esquecer. Fui eu cabo PA e um soldado de nome Cordeiro que era transmontano nomeados para o escoltar ao tribunal a Luanda para ser ouvido pelo Juiz. Quando estava dentro do tribunal fez-me andar atrás dele, pois eu tinha medo que ele fugisse e depois quem ia para a prisão era eu.
Recordo-me muito bem dele, ele era PA e não se dava nada bem com os bicos de pato, às vezes ia à camarata deles para fazer bagunça.

Joaquim Caratao:
Zé! O dito companheiro era de difícil trato. Sofreu um tal ataque de fúria que redundou naquela destruição toda. Como o Mundo é pequeno uns anos depois encontrei-o em Fátima, conheceu-me, conversamos um pouco, disse-me que tinha sido transferido para o Negage depois de cumprir o castigo após aquele destempero que teve. Mas... ainda continuava muito nervoso. 
Também passei muitas noites naquele local. Será bom recordar que os Cabos da PA, pelo menos entre Outubro de 1968 e Outubro de 1970 alinhavam dia sim dia não, chegou-me a acontecer sair de um serviço e entrar noutro no mesmo dia, entretanto aconteciam os imprevistos e lá estava o pessoal a alinhar quer em escoltas quer noutras actividades muito vulgares naquele tempo. Também os Soldados não tinham muito melhor sorte para além de guarnecer as torres durante a noite onde no tempo do cacimbo a temperatura era glacial, ainda lhes sobejava quase sempre mais um ou outro biscate que estava sempre á espera. Não era fácil ser PA naquele campo de férias. Ainda assim julgo que a maioria destes camaradas guarda suaves recordações daquele tempo, daquelas idades, e de muitos dos camaradas que conseguiam minimizar os sacrifícios que eram pedidos ao pessoal. 
Artur Santana

Artur Santana - PA 1968/71:
Pois é Caratao eram os soldados dia sim dia não nas Torres, Paióis, Rondas á Noite na cidade, e Porta de armas era uma vida infernal e para vocês Cabos também o pior era as torres que se passava lá um frio de rachar. Foi duro já passou e agora resta a saudade da rapaziada que andam por aí a quem desejo uma grande felicidade e um grande abraço