quinta-feira, 31 de outubro de 2019

QUANDO A RAZÃO PREVALECEU.

Vistas da torre, em 1969, a messe dos Especialistas, dos Oficiais e a dos Sargentos

Um dia, em 1970, o tenente Brito e Cunha, que estava de Oficial de Dia, foi ao refeitório do SG e da PA, aquando do pequeno almoço.
Algo se passou durante a noite, de "jogatanas" no Clube de Oficiais, que não lhe deve ter corrido bem, o homem vinha possesso.
Um camarada soldado da PA, o Vitor Soares, chegou atrasado e o tenente disse-lhe que não tomaria o pequeno almoço, ao que ele respondeu: vou tomar e depois faça o que quiser, mas o pequeno almoço vou tomar !
Azar o meu, estava com o Cabo de Dia e o tenente disse-lhe para prender o Vitor. Este recusou-se a cumprir tal ordem, eu também,  e disse-lhe: prenda-o o senhor que é Oficial de Dia!
De imediato apontou-me a arma à cabeça ameaçando-me que me matava se não acatasse a ordem, ao que lhe respondi: o senhor mata-me, mas não sai vivo daqui ! Ele perante a minha reacção e dos restantes camaradas presentes, mete a arma no coldre e foi embora.

Ao centro a Messe do SG e PA, à direita as restantes messes

Passados uns dias, fui chamado para comparecer na Secção de Justiça para ser ouvido. Qual a minha surpresa, quem era o oficial que me ia ouvir ? Era o tenente Brito e Cunha. Fiquei aflito pois estava a ver a questão mal parada...o próprio queixoso a fazer a audição, só podia correr mal para mim.
Para meu espanto acabámos num diálogo de homens, pedimos desculpas mútuas e no final o tenente Brito diz-me: soldado Santana, durante a viagem no Pátria, em Dezembro de 1968 falámos muito, você é um bom rapaz e eu sei isso. Falamos um pouco mais e disse-lhe: senhor tenente, o senhor é que no fundo falhou ao apontar-me a arma à cabeça por não prender o meu camarada, que tinha estado de serviço durante a noite, na torre de vigilância e precisava de comer, não tinha lógica que o não fizesse.
Saí da Secção de Justiça com um aperto de mão, não sofri nenhuma sanção e até hoje não sei o que se passou a seguir.
O tenente Brito e Cunha, era um bom homem mas na altura excedeu-se na sua autoridade.
O certo é que apesar de mais este caso fiquei com a caderneta limpa, mas acabei por ficar com "alergia" ao nome Brito e Cunha, pois já tinha sido penalizado pelo do Negage com o mesmo nome.
Aquele refeitório do SG e PA do AB4, era uma verdadeira vergonha, de madeira, sem condições mínimas de serviço e higiene, chovia lá dentro, afastado da cozinha, longe das camaratas, à noite quando por lá se passava era só ratazanas...pareciam coelhos !
Interior da messe do SG e PA
A única coisa que me honra foi ter servido o meus país e a minha querida Força Aérea, é a última estória verídica, do Ultramar, estou vivo e de saúde, um abraço para todos os camaradas.

Por:


 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

CORTES DE CABELO E TALHES DE BARBA !



PROPÓSITO:
1. - Convindo precisar o que significa o determinado pelo CEMFA em seu despacho de 26MAI70, publicado na OS nº.19 de 08JUN70, do EMFA, e o estabelecido na NEP 3/72 do comandante da 2ª. RA, estabelecem-se normas de execução relativas a cortes de cabelo e talhes de barba, aplicáveis a todo o pessoal militar colocado e em serviço nesta unidade.
2. - Aos oficiais e sargentos é determinada uma conduta que, também neste pormenor, possa constituir verdadeiro exemplo aos seus subordinados a que devem, por outro lado, exigir o exacto cumprimento do que se fixa nas presentes normas.
CORTE DE CABELO
3. - São considerados regulamentares e correspondentes ao determinado, as seguintes condições de corte de cabelo:
a. - O cabelo deverá ter um máximo de comprimento à frente, diminuindo gradualmente para trás e para os lados de forma a não ultrapassar meio centímetro nos extremos.
b. - O cabelo deverá ser devidamente limpo e convenientemente penteado para trás ou para um dos lados, de maneira que não fique caído para a testa.
c. - As patilhas prolongam-se no máximo até cerca de metade do pavilhão auricular e não devem ser deixadas com formatos extravagantes.
d. - O corte à escovinha é reservado a praças em regime de prisão ou a praças a quem seja determinado tal corte, exclusivamente por motivo higiénico.
TALHE DE BARBA
4. - Como regra, os oficiais, sargentos e praças deverão apresentar-se de barba feita diáriamente, a não ser quando de tal sejam dispensados pela Secção de Saúde e tal dispensa conste em OS.
5. - Não são permitidas, barbas e peras, por não serem, de qualquer modo, tradicionais na Força Aérea.
6. - Poderão usar bigode quando para tal estejam superiormente autorizados os militares do AB4 desde que não seja excêntrico ou, pelo seu aspecto, seja contrário ao decoro militar. Não se poderá prolongar abaixo da linha média da boca e deve ser sempre cuidadosamente aparado.
ALTERAÇÕES AO TALHE DE BARBA
7. - Nenhum militar poderá modificar o seu aspecto, deixando crescer bigode ou cortando-o, se já o usar, sem autorização superior. Sempre que, em consequência desta autorização, o bilhete de identidade (ou o cartão de identificação) tenha de ser alterado, deverá, logo que possível, proceder-se à sua substituição.
8. - A autorização para alterar o talhe de barba é concedida em OS mediante petição presente ao comando através dos convenientes canais hierárquicos.
EXECUÇÃO
9. - O determinado nas presentes normas entra imediatamente em vigor fixando-se a data limite de 15OUT72, para que todo o pessoal desta Unidade se apresente de harmonia com o disposto quanto a cortes de cabelo e talhes de barba.
10. - Os barbeiros da Unidade, a partir desta data, passarão a cortar cabelos em escrupulosa obediência às presentes normas. 


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A MINHA ÚLTIMA MISSÃO EM T6 HAVARD POR TERRAS AFRICANAS

Henrique de Carvalho em 1974 - foto de Alfredo Anacleto Santos


O mês de Junho de 1975 foi a partir da noite de 12 para 13, um mês muito complicado por Henrique de Carvalho, tendo-se aumentado o reforço nos postos e as rondas ao perímetro da Unidade. 
Foi o fim das idas à cidade as quais só por extrema necessidade por lá os efectivos do AB4 se deslocavam, pois estávamos todos ansiosos de regressar. Tais confrontos entre o MPLA, FNLA e UNITA, suas Forças Armadas, nessa noite de 12 para 13 de Junho, não obstante até aí terem elementos nas Forças Integradas com elementos das nossas Forças Armadas, conforme Acordo de Alvor, os movimentos de libertação, decidiram “digladiar-se” pela conquista da cidade de Henrique de Carvalho, aliás como o vinham fazendo por outras cidades, nomeadamente em escaramuças em Luanda desde Março e em especial em Malange onde também houve tiroteios. Além da noite de 12 para 13 de Junho referida, em 15 ou 16, já não posso precisar, volta a haver nova disputa pelo território, tendo o Governador da Província permanecido na cidade, não obstante os violentos tiroteios entre o MPLA e a FNLA durante cerca de 18 horas. 
Elementos das forças em confronto - foto do BC 8322

Assim no dia 22 de Junho de 1975, a CCS do Batalhão de Cavalaria 8322/74 do Exército, veio para o AB4, deixando o seu aquartelamento na cidade de Henrique de Carvalho, ficando por lá um pelotão da dita “Forças de Segurança Integrada”, composta por elementos dos diferentes movimentos e das nossas Forças Armadas, ou melhor o que nessa data restava, já que no último confronto a ELNA, praticamente foi dizimada e os elementos restantes se abrigaram no AB4, tendo sido mais tarde resgatados numa Missão “secreta” de Nord vindo da BA9, em que por acaso vim a participar e já relatada pelo Cap. Pil Fernando Moutinho, aqui no nosso Blog. 
Com todo este cenário a generalizar-se por toda a Província de Angola, conforme o “PLANO OPERAÇÕES Luz Verde”, com data de 01ABR75, preconizava pela situação do processo de descolonização, já então previsto para a independência em 11NOV75, decorrente do Acordo de Alvor de 15JAN75, foram entre outras tomadas medidas, digo eu antecipadas – pois tal plano admitia como horizonte a data de 29 de Fevereiro de 1976, para a retirada e evacuação dos contingentes das Forças Armadas Portuguesa espalhados pela província. Assim o Plano de Operações “Luz Verde”, por imposição da Directiva Geral “RAIO AZUL” da 2ª RA, definiu a Missão e Plano de Execução a levar a efeito em todo o território, nomeadamente em manter...“as bases e aeródromos-base, extinguindo todos os AM e AR seus dependentes, prevendo para os AB uma desactivação progressiva”...(ponto 2 do n.º 3 Execução, do referido Plano de Operações DG Raio Azul). 
Com toda esta conjuntura a nosso desfavor e porque como diz o Povo “estávamos entre a espada e a parede”, sem poder efectivo de acção, em 30 de Junho de 1975 e dias seguintes em várias missões a FAP começou-se a desactivar o AB4 em Henrique de Carvalho, tendo-se deslocado aeronaves para a BA9 em Luanda. Até então foram mandados regressar ao AB4 os efectivos humanos dos diferentes destacamentos, quer de AM, quer de AR e consequentemente os aviões que por lá estavam afectos.
Parelha de T6 no AB4 - foto de Orlando Simões

Assim na manhã de 30 de Junho de 1975, segui numa parelha de T6, pilotados (se a memória não me atraiçoa, pelos pilotos Ten. Pil. Oliveira e Fur. Pil. Almeida), bem como os MMAs José António Pinto e eu. 
Como em Malange pela rota mais curta já não havia garantias de reabastecimento, decidiu-se rumar a Luanda via Nova Lisboa onde reabastecíamos aumentando a distância de cerca de 850km para 1.150km, divididas em duas etapas de aproximadamente 400 milhas (AB4-NL) e 310 milhas (NL-BA9). 
Descolámos de manhãzinha do AB4 com bom tempo, mas já sabíamos pela meteorologia que no Planalto Central podíamos ter céu com nuvens, pelo que após uma volta de voo sobre o Aeródromo, despedimo-nos do Leste e rumámos para Sudoeste até vislumbrarmos a linha do Caminho de Ferro de Benguela para Teixeira de Sousa. Assim o fizemos tomando a altitude conveniente apreciando digo eu, a paisagem angolana pela última vez (tal assim não foi, porque colocado na BA9, Esq 92, por lá fiquei mais três meses e voltei de novo ao AB4 e a Teixeira de Sousa entre outras localidades de norte a sul de Angola).
Parelha de T6  - foto de Gonçalo de Carvalho

Decorridas praticamente uma hora e meia, lá avistámos a linha do caminho de ferro e depois sobrevoamos Silva Porto (actual Kuito), onde camaradas com outros aviões tiveram episódios semelhantes ao que nos deparámos em Nova Lisboa – com mais de aproximadamente uma hora de voo já com as tais nuvens previstas no horizonte, pelo meio delas avistámos Nova Lisboa (actual Huambo) e o seu aeroporto, pedindo autorização à torre de controlo para aterrar cuja ordem foi concedida, começando a descida com a desrruptura da formação e em seguida um T6 e depois o outro T6, aterrámos na pista de leste para oeste em aproximação directa. Rolámos na pista até à placa junto à Torre de Controlo. 
Tendo pedido abastecimento estranhámos a ausência do carro abastecedor, e tendo sido rodeados por um grupo de militares da UNITA e da FNLA, da dita Força Integrada, os mesmos questionaram a nossa presença e esclarecemos que tal como previsto no Plano de Voo e comunicado ao Controlo Aéreo de Nova Lisboa, era nossa intenção reabastecer os aviões para depois prosseguirmos para Luanda – não tendo ali chegado a entendimento o Tenente que comandava a Missão dirigiu-se com dois do militares referidos à Torre de Controlo para esclarecer a situação o que depois segundo ele, não tendo sido fácil, lá anuíram em deixar-nos abastecer para seguirmos viagem para a BA9 (o que se passou entretanto por lá na Torre de Controlo com os interlocutores não o sabemos, apenas cerca de meia hora aparece o Tenente já acompanhado por um Alferes do nosso Exército e depois o carro para reabastecimento).
Aeroporto de Nova Lisboa em 1973 - foto de Afonso Palma

Reabastecidos e pelo olhar meio desconfiado da patrulha, em especial dos elementos dos movimentos, ligamos os motores sem demora, rolámos para a pista e descolámos rumo a Luanda, voltando a ouvir o roncar do Pratt&Whitney em som “redondinho” com os seus 600hp, deixando para trás esta linda cidade no planalto central, rumando agora para Noroeste, vislumbrando na paisagem á esquerda o Morro do Moco (ponto mais alto de Angola com cerca de 2620 m) e tendo como primeiro objectivo alcançar a costa do Atlântico, próximo de Porto Amboim, o que felizmente aconteceu a pouco mais de uma hora de voo desde Nova Lisboa. Por acaso demos mais a sul, mas o primeiro objectivo estava alcançado, não obstante a nebulosidade ter aumentado à medida que nos aproximávamos da costa e estarmos já um tanto ou quanto cansados pois admitíamos almoçar em Nova Lisboa o que não fizemos, tendo-nos recorrido da kit da ração de combate que levávamos cada um. A viagem agora prosseguiu com a costa à vista do lado esquerdo, pois sabíamos que rumando entre o norte e noroeste pelo interior, alcançaríamos a Baia de Luanda e por conseguinte o Aeroporto e BA9 que era o nosso destino. Depois de sobrevoarmos um Parque Natural, do qual não me recordo o seu nome, vislumbrámos o rio Cuanza, indicador que Luanda estava próximo, pelo que sobrevoámos a região de Belas e logo ali à frente lá estava a Baía de Luanda com todo o seu esplendor, solicitando instruções para aterrar o que só aconteceu cerca de 10 a 15 minutos, tendo-se dado duas voltas largas pela Baía e cidade pela esquerda e de seguida descendo em direcção á pista 25 com aterragem de Nordeste para Sudoeste, atendendo a que o movimento aéreo era de certo modo intenso devido aos aviões que por lá estavam a operar na célebre “Ponte Aérea” com o retorno de nacionais para a Metrópole. 
Luanda, Julho de 1975
Aterrámos com alguma folga de combustível, rolando para a parte da placa da Linha da Frente Militar lado oeste... ... ...deste modo concluiu-se mais uma Missão que a meio bem podia ter sido mais complicada – tanto nas vésperas como nos dias seguintes outros camaradas trouxeram para Luanda mais aviões, sendo unânimes nas descrições de idênticos percalços para reabastecimento, nomeadamente de T-6, DO-27 e All III, quer em Silva Porto quer em Nova Lisboa. 
1685 No Museu Nacional da História Militar
Concluída mais esta etapa da minha estadia por Angola, fui colocado na BA9, Esquadra 92 nos Nord Atlas, tendo entretanto voado mais uma vez em T6 no dia 06AGO75 no 1685 num voo local, bem como no C-47 Nº. 6164 a 2 e 20 de Julho de 1975. O restante tempo voei em Nord em Julho, Agosto e Setembro nos: 6401; 6404; 6405; 6406; 6413 e 6415 até ao meu regresso à Metrópole em 27 de Setembro de 1975 no Boeing 707, Nº. 8801. 
Documentos já desclassificados como SECRETO, para os mais curiosos sobre a desactivação da FAP por Angola em 1975: 

No Capítulo o que Previa o Acordo da Cimeira de Alvor 
O que previa o acordo?




Por:




sexta-feira, 11 de outubro de 2019

NO OLHO DO CÚ DO PLANETA

Mueda - foto de Alfredo Silva Santos

Um cão vadio, esquelético, vagueava na placa encostando o focinho ao chão na esperança de encontrar algum resto de nada. 
Àquela hora da manhã, o silêncio era quase absoluto. Todavia, ouviam-se vozes vindas do lado do refeitório. Eram os nossos companheiros da cozinha que aprontavam o pequeno-almoço. Daí a nada, o sol começava a despontar e com ele apareciam à porta dos pseudo quartos/camaratas, espreitando o dia os primeiros madrugadores. Os mais sornas, continuavam na posição horizontal indiferentes aos impropérios dos circundantes. 
Na placa, um T6 esfumaçava preparando-se para proteger o helicóptero que se dirigia algures ao mato ou picada para retirar mais uma vitima daquela guerra. Uma neblina envolvia o quadrado de arame farpado plantado na crista do planalto dos Macondes. Através daquela névoa molhante, vislumbravam-se as silhuetas dos aparelhos descansando merecidamente do esforço despendido na véspera. Uns metralhas colocavam bombas nos aviões, enquanto outros preparavam o caldo para a confecção do "ovo" que seria ofertado pelos Fiats... Os mecânicos dos "zingarelhos", entregavam-se a pequenas tarefas nos seus queridos meninos e, à falta de peças, sacrificava-se aquele que na circunstância servia de "vaca". Os dos "Teco-Tecos", operavam de igual modo, com o mesmo zelo e carinho. Ao lado ouviam-se os de rádio/comunicações fazendo o check-in na tentativa de ouvir um 5 por 5, tudo ok. 
No intervalo de uma borradela de mãos, espreitava-se a porta do bar. Se, se encontrava aberta, numa escapadela, ia-se até lá para tirar a secura da garganta. O sol continuava em plena ascensão obrigando-nos a tirar a camisa e pôr os couratos a tostar. 
Havia uma certa acalmia dando a sensação que a guerra andava por outras paragens. 
Pura ilusão! Não raras vezes o camarada de serviço às comunicações, revelava o seu nervosismo quando as chamadas de socorro eram mais que muitas. Incitava-nos para que o "112 aéreo" fosse feito sem perda de tempo. Alguém estaria a sofrer, vítima das malditas minas ou de uma emboscada traiçoeira. Quase sempre vinha um ser humano que há pouco cheio de vida e agora transformado num monte de carne disforme. 
À noite os amantes da "lerpa" satisfaziam as suas preferências. A maioria, mergulhava nas profundezas do líquido que exalava um cheiro doce e gosto tentador. Quando menos se esperava, por cima de nós passava um som agudo. Era a hora maconde e os obuses do PAD faziam tiro para a terra de ninguém. 
Nas camaratas, escrevia-se os bate estradas para a família, ou para as-mais-que-tudo, com as promessas de um amor eterno e manifestações de carícias ardentes. Alguns, faziam levantar a roupa da cama em movimentos mais ou menos cadenciados, sonhando com imaginário feminino e outras fantasias. Que remédio...! O sono não tardaria a chegar.
José Raimundo
Os que estavam de ronda, matavam o tempo à espera que a hora das rendições chegasse. Durante a noite a ronda metia respeito. Os menos afoitos tentavam convencer um outro camarada para o acompanhar. Nesse período, tinha-se por companhia o roncar penoso dos geradores da central. Os neons dos postes estavam envoltos por uma auréola circular e esvoaçando à sua volta centenas de insectos. As aves nocturnas, causavam arrepio com o seu piar prenúncio de agoiro. Aqui e além ouvia-se o rugido de uma fera e a adrenalina subia até ao último traço da escala. Para além do arame farpado, ficava por saber o que se estava a passar naquele momento. A descompressão só acontecia quando o corpo era vencido pela fadiga. 
Termino com algumas palavras que alguém escreveu um dia: "lá longe onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor e à noite, com os olhos postos no céu, rogamos ao nosso Deus, que nos dê a salvação!" 
Seria bom que os responsáveis deste país também tivessem coragem e valor para não deixarem ao abandono aqueles que se sacrificaram pela Pátria e que hoje têm uma mão cheia de nada. 
Estes apontamentos vão direitinhos aos camaradas que me antecederam, aos que tive por companhia durante aqueles dois anos e aos camaradas do exército que tanto sofreram.

José Raimundo-Índio MMA
DO LIVRO 

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O CASTIGO DOS PAs DO NEGAGE.

AB3-Negage e AB4-Henrique de Carvalho

O relato que hoje vos trazemos confirma o que se constava na metrópole, antes de ser mobilizado, sobre a reputação do AB4. A Base dos desterrados, dos castigados, dos "cacimbados".
Em fins de 1969, no AB3-Negage, há uma "rebelião" de elementos da PA (polícia aérea), após o sargento SG Gomes ter agredido com uma enxada um dos seus elementos.
Este acto de todo descabido, provocou uma "manifestação" de descontentamento e a exigência de que o CPA fosse comandado por um PA e não como até ali por SGs (serviço geral).
Segundo nos relata Artur Santana, um dos desterrados:
Artur Santana no AB3
-"Fomos considerados rebeldes por defender o agredido.
 Éramos os rebeldes porque fizemos uma formatura em frente á Esquadra da PA, a pedir a demissão do capitão Brito e Cunha e do sargento Gomes. Eu era o porta voz, queríamos um boina azul a comandar-nos, que era o tenente Palma. Merecemos o apoio de alguns oficiais.
No dia seguinte, ao pequeno almoço, fomos informados pelo sargento de dia para entregarmos as armas e fecharmos os armários pois iríamos inaugurar um novo AM.
Acreditamos e fomos para o Nord que entretanto tinha chegado. Ao entrarmos estavam quatro páras armados, percebemos logo que algo de anormal se estava a passar, e estava, fomos disso informados quando estávamos quase a chegar a Henrique de Carvalho.
Quando fomos transferidos para o AB4 só trouxemos a roupa que tínhamos vestida, ou seja o camuflado, estando largo tempo á espera que nos remetessem os nossos bens pessoais. Vieram de facto muito mais tarde, porque tiveram de fazer o inventário de todos os soldados e quando nos foram entregues tivemos de conferir todos os pertences e assinar em como estava conforme.
Não fomos castigados em termos disciplinares, só lamento que a 2ª. RA tenha transferido também o comandante Oliveira Belo, uma excelente pessoa, que também acabou por sofrer as consequências deste caso.
A nossa causa era justa, pois ninguém tem o direito de agredir um soldado com uma enxada no peito originando-lhe ferimentos graves.
Com a mudança fiquei a perder pois era impedido ás águas da Base, jogava no Sporting do Negage tendo feito o campeonato provincial, era um privilegiado, mas em defesa de um companheiro fiz o que tinha de fazer e ainda bem !
Assim conheci o AB4, Henrique de Carvalho, a Lunda, a Rádio Saurimo, o cinema, uma amiga do liceu, o amigo e saudoso Carlos Fialho que faleceu em Teixeira de Sousa.
Considero-me um homem de carácter e de causas justas."

Joaquim Caratao, companheiro PA, também quis deixar o que relembra desse dia:
Joaquim Caratao
 "-Artur Santana, recordo muito bem a manhã em que o Nord chegou ao AB4, por volta das nove horas, com o pessoal PA vindo do AB3. Após o vosso desembarque, de imediato embarcou o mesmo número de militares do AB4 com destino ao AB3. A diferença é que vocês não conheciam o destino, enquanto que os do AB4 eram na grande maioria voluntários para o AB3.
A versão contada no AB4, era que teria havido uma escaramuça entre a PA e a PSP do Negage, situação que provocou uma grande incompatibilidade entre o comandante da CPA e o pessoal."

Artur Santana, quanto a esta versão, esclarece:
"-Caratão, sendo um dos principais protagonistas, afirmo, é uma história inventada para encobrir a realidade do que se passou, uma vergonha, um dito superior agredir um praça com uma enxada pondo-o em risco de vida? Por muitas razões que tivesse e não tinha, existia sempre o RDM.
Essa foi a verdadeira razão !"



Por:
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Texto editado por:A.Neves