quinta-feira, 28 de setembro de 2023

EVACUAÇÂO EM METANGULA


Um amigo pediu-me para escrever uma pequena história de uma evacuação em combate, para uma apresentação a um grupo de veteranos. Resolvi partilhar esta pequena história com os meus amigos, sobre uma evacuação real na picada entre Vila Cabral e Metangula. Os nomes dos tripulantes e dos médicos aqui descritos são virtuais.
A evacuação aqui descrita aconteceu presumivelmente em 26AGO1972, na picada que liga a cidade de Vila Cabral a Metangula nas margens do Lago Niassa. Em Metangula estavam sedeados um destacamento da Marinha e um batalhão do Exército.
Pelas 07 horas da manhã acordo meio atordoado pela voz do “Sinistro”. “Sinistro” era o nome carinhoso que nós pilotos tratávamos os cabos das comunicações que nos traziam as mensagens com os pedidos das evacuações urgentes. Acordei estremunhado, mal vi o “Sinistro” não tive dúvidas, era uma evacuação e não me enganei. Ainda meio acordado, li a mensagem, uma evacuação urgente, TEVS (Transporte de Evacuação Sanitária), na picada entre Vila Cabral e Metangula, três feridos graves e dois feridos ligeiros, nas coordenadas 12º 58´S / 35º 09´E. Achei estranha esta evacuação, era bastante raro a colocação de minas nesta picada, pois era considerada uma zona relativamente segura. Enquanto visto o fato de voo e calço as botas, pedi ao “Sinistro” que acordasse o alferes Silva dos T-6 e os cabos Caniça e Júdice dos helicópteros e preparassem as máquinas com plenos de combustível e duas macas em cada um dos helicópteros. O alferes Travanca, um jovem piloto de helicóptero, chegado há cerca de dois meses a Moçambique, era o seu primeiro destacamento no Niassa, iria ser o meu “asa”.
Ao fim de cerca de 25 minutos o T-6 G, pilotado pelo furriel Caramelo, que nos fazia a escolta, descolou da pista de Vila Cabral, os dois helicópteros, pilotados por mim e pelo Travanca, descolaram imediatamente a seguir. O T-6 com maior velocidade que os helicópteros, andava num vai e vem permanente à nossa volta, numa zona praticamente livre de ameaça antiaérea, voávamos a uma altitude média de 1000 pés. Ao fim de cerca de 15 minutos estávamos à vertical da coluna de viaturas, era bem visível a destruição de uma das berliet, com a frente completamente destruída, incluindo a cabine. O local escolhido para a aterragem estava a cerca de 25 metros da picada e tinha espaço suficiente para a aterragem dos dois helicópteros. Ao fim de alguns minutos descolámos em direção do hospital militar de Vila Cabral com os feridos.
No meu helicóptero vinham os dois feridos mais graves e um sentado, que presumi pelo seu aspeto ser um ferido ligeiro. O ferido na maca de baixo estava com um aspeto terrível com as tripas de fora e envolto numa mistura de sangue e terra, mas, o que vinha na maca de cima, parecia muito pior, o seu braço esquerdo estava quase decepado, as duas pernas estavam num estado lastimoso, pareciam presas por fios. Comentei com o meu mecânico, o Caniça: “Este gajo não se safa, há muito tempo que não vejo um ferido em tão más condições”.
Por volta das 9 da manhã aterrámos no AM e fomos tomar o pequeno-almoço no bar. Por volta do meio-dia, decidi ir ao hospital ver como estavam os feridos da evacuação, convidei o Travanca para ir comigo. Nunca o tinha feito antes, mas uma enorme ansiedade invadia o meu espírito. No hospital militar, junto à sala de operações, encontrei um dos médicos meu amigo, descalçando as luvas cirúrgicas, bastante ensanguentadas, enquanto comia uma sandes e bebia um coca-cola. Perguntei-lhe como estavam os soldados que trouxéramos de manhã bem cedo. A sua resposta foi inequívoca: “entra e vê pelos teus olhos”.
Entrei na sala através de duas portas transparente e flexíveis, o cheiro a produtos químicos era intenso, lembro-me de ver o cirurgião, com uma serra na mão, qual talhante, pronto para cortar a perna dum dos infelizes soldados. Comecei a ficar agoniado e a ver tudo a andar à roda, rapidamente sou amparado por dois enfermeiros para fora da sala. Já na rua, com o ar fresco e limpo, recuperei o equilíbrio. Antes de voltar ao AM convidei o Travanca para bebermos uma cerveja e estabilizar as emoções. Ele olhou para mim e questionou-me: “Irmão é sempre assim tão difícil”
Efetivamente, pensava que já estava vacinado contra recaídas deste tipo. No princípio não foi fácil, mas depois a gente habitua-se e blinda-se psicologicamente. Mas hoje tive o reaparecimento dos sintomas de uma doença que estava quase curada. Inevitavelmente, por mais que blindássemos as nossas emoções, nunca somos indiferentes à dor, ao sofrimento e à morte.
Ao fim da tarde, o Dr. Freixedas, o capitão médico-cirurgião e o Amaral, aparecem no AM para uma cerveja e dois dedos de conversa. Já não via o Amaral há algum tempo, depois de seis meses como médico na companhia de Nova Viseu, voltou de novo ao hospital. A nossa conversa acabou por derivar para a evacuação da manhã. Perguntei pelo soldado em piores condições, as notícias do meu amigo não são nada animadoras. Ficou sem as duas pernas, um braço e os testículos, enfim se sobreviver será um ser vegetativo. No fim o capitão médico volta-se para mim e dispara á queima-roupa: “porque não demoraste mais uns minutos”?
Fechei os olhos por alguns segundos a meditar na minha resposta e finalmente retorqui: “Meu capitão o senhor teve a vida dele nas suas mãos, porque o salvou”? A sua resposta foi exemplar. Nós, médicos e vocês pilotos, cumprimos a nossa missão, não nos cabe e nem podemos decidir pela morte.

Por: Gen. Alfredo Cruz


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