sexta-feira, 29 de julho de 2016

AS MEMÓRIAS DE UM LUENA - O POSTO DO MUIÉ


O POSTO ADMINISTRATIVO DO MUIÉ
Muié vista áerea, foto Bat."Ás de Espadas" 


Pertencia à Circunscrição dos Luchazes e situava-se na margem direita do Rio Muié, que lhe deu o nome. Tinha uma avenida larga, talvez com uns vinte metros e cerca de mil de comprimento, toda ela ladeada de eucaliptos adultos, com mais de trinta anos. Situado numa zona plana, com ligeira inclinação para o referido rio e do qual distava cerca de uns quinhentos metros, mais coisa menos coisa.

Mas eu peço-vos para se deterem por uns segundos, na foto acima e acompanhem a minha descrição, que irei fazer, com alguma emoção. Antes porém, devo referir que vou começa-la pelo posto, povoação, em si e, só depois e em separado, irei descrever a missão que começa ou acaba, consoante a entrada ou a saída, aqui mesmo na parte inferior desta mesma foto. A fotografia é aérea e foi tirada por um dos nossos amigos da FAP, do tempo do Mambo (Carlos Sequeira) e já tive a oportunidade de lhe agradecer. 

Então temos, a primeira edificação que se vê, é a enfermaria dos acamados e logo de seguida a residência do enfermeiro e enfermaria. Esta construção e a do posto que irei citar de seguida, foram construídas na minha ausência, andava eu na 3ª. classe, na Escola Primária 53, no Luso. Estes três edifícios foram construídos, em pouco mais de um ano lectivo. Naquele tempo, não se brincava em serviço. O pedreiro-mor, era um cabo verdiano a quem o meu pai construiu, nos arredores do nosso quintal, uma bela cubata.

Os nossos antigos, traçavam tudo a régua e esquadro. Reparem bem na foto.
A seguir à residência do enfermeiro, havia uma construção de adobe, coberta a folhas de zinco ondulado, que servia de sala de aulas aos indígenas e logo a seguir, a minha escola e residência do professor. Um prédio enorme, também de adobe mas coberto a capim. Tinha uma varanda à toda a volta, com uma proteção em madeira. Este foi o primitivo posto administrativo. Nas traseiras, existia um outro imóvel mais pequeno que, naquele tempo, servia de cadeia. Mais atrás, existiam umas cubatas dos sipaios. Tudo rodeado de eucaliptos adultos e jovens.
Muié vista parcial da Sanzala, foto Bat."Ás de Espadas" 

Sobre a cadeia, vou contar-vos uma história. Isto passou-se no início dos anos sessenta, quando o chamado terrorismo, surgiu no norte da província ultramarina. As autoridades administrativas e não só, puseram-se logo em campo, no sentido de controlarem tudo e todos, particularmente os nativos, com receio de que aquela "febre" se disseminasse pelo resto da província, o que veio mesmo a acontecer e com dureza, a partir dos anos 1966/67, nesta zona, concretamente.
Fizeram umas detenções e chegaram mesmo a torturar, como era hábito, alguns desgraçados, com a ajuda de uma secção do nosso exército que para ali havia sido destacada. Segundo diziam à boca pequena, alguns não aguentaram o referido tratamento e sucumbiram e, foram, pela calada da noite, levados na viatura da administração e abandonados no Rio Cussibi. Não sei se foi ou não verdade. Eu era apenas um kanuqui com uns dez ou doze anitos. Mas a história não fica por aqui e o melhor vem já de seguida.
Os presos dormiam acorrentados e, como não podiam sair para urinar, faziam-no numa esquina interior da referida cadeia, contra a parede. Não sei se estão a ver o filme, adobe com água ou mijo, o efeito era o mesmo, a parede tronou-se vulnerável. E, uma bela noite, ao som dos canitos, todos os reclusos deram o fora, depois de terem escavado a referida parede, desapareceram na escuridão da noite, por aquele mato fora. Ora bem, o sipaio responsável por aquela tarefa, era o principal e único suspeito.
O chefe do posto e os militares que conduziam aquela operação, para não darem nas vistas e não serem motivo de chacota, por parte dos nativos, resolveram ordenar ao cipaio que fosse a Cangamba buscar o correio, coisa nunca feita, isso era da responsabilidade do chefe, para aí ele ser então preso, longe das nossas vistas. 
O sipaio, prevendo aquele desfecho, acatou as ordens e partiu, só que em sentido contrário, fugiu para Zambia e foi-se juntar aos prisioneiros fujões.
Quando se deu o vinte e cinco de Abril, este amigo, foi lá a casa visitar-nos e entre outras passagens, este, foi tema de conversa. Fartei-me de rir com ele a contar esta peripécia. Afinal, os patrício tem esperto nos cabeça.
Mas voltando à escola, à sua frente existia um cerca, mesmo junto aos eucaliptos, com um portão, canteiros de flores e, do outro lado da avenida, um enorme descampado, ocupado, entrando, por aquela enorme sanzala e ao fundo desta, a caminho do rio, a pista de aviação.
Muié vista áerea, foto de Carlos Antolin 
O professor era de raça negra, foi o primeiro e único que tive, era uma pessoa bem educada, simpático, afável e ensinava bem. Como não existiam ali restaurantes, comia em nossa casa e, nunca mais me esquece, quando se foi embora - só lá esteve um ano -, como não havia recebido o seu vencimento, entregou ao meu pai uma máquina fotográfica, cujo valor o meu pai desconhecia mas, aceitou-a e, deu como saldadas as contas. Possuo algumas fotos tiradas com essa máquina. Cruzei-me uma única vez com ele no Luso, andava eu já no 1º. ano do CGC.
E quem não se recorda das moscas pela manhã, que se colavam nas nossas costas. Íamos todo o caminho para a escola, com uma bissapa a enxotá-las.
Continuo a explorar apenas o lado direito da já referida avenida, da fotografia, antes que a fonte se esgote e receba por aí a vizita daquele senhor "Alzaimer".
Instalações do Quartel, foto Bat."Ás de Espadas" 
A seguir às moscas, vem o novo posto administrativo, meu contemporâneo mas que, como já disse, nasceu na minha ausência.
Era um edifício moderno, à boa maneira colonial, ficava lá nas alturas, como se fosse o trono do régulo D.Aleixo. A secretaria ficava virada para a avenida, com um amplo descampado à sua frente, possivelmente, destinado a jardim, quiçá, uma mini praça do império e, o seu acesso fazia-se por uma escadaria, ladeada de ambos os lados por uma estrutura de ferro e, ao cimo, uma varanda, também esta, rodeada por idêntica estrutura e com um banco corrido, para descanso do sipaio e das visitas. O acesso à residência fazia-se também por uma escadaria, lateral, do lado esquerdo.
A seguir a este, vinha a primeira loja da firma Pinto Martins, gerida pelo amigo António Roque, a quem o nativo atribuiu o cognome de "kessi na mila", o que traduzindo quer dizer mais ou menos, aquele que não tem tripas, por ser alto e magrinho. Este amigo era ali de Vila Nova de Tazém. 
A loja era rodeada de uma varanda e do seu lado direito, existia um enorme jango, que era utilizado com sala de estar e de refeições, já que o edifício principal apenas possuía um pequeno armazém, um quarto e uma privada. Atrás desta loja, ou comércio, encontrava instalada uma descascadora de arroz, ainda no meu tempo. E aqui, vou, para memória futura, fazer mais um desvio, para vos dizer que, esta zona produzia muito arroz e cera, mas o forte era mesmo arroz de sequeiro. Ora a técnica utilizada pelo nativo, no seu descasque, era o pilão e, o arroz era todo partido, transformava-se em trinca, sem qualquer valor comercial. A nova medida, apanhou todos de surpresa e não foi do agrado nem dos produtores, nem dos comerciantes. Uns porque se julgavam prejudicados no preço e outros porque não estavam preparados para tal mudança. O meu velhote optou por esvaziar uma divisão contígua à loja e despejar para ali o arroz, depois de pesado e pago. Depois, outro problema surgiu que foi o transporte para a descascadora e, depois de descascado, para o armazém. Eram ainda perto de trezentos metros de percurso.
Entre o posto e este comércio, existia um arvoredo, bem capinado, e relvado na época das chuvas, por graça da natureza.
Depois, a seguir vinha o comércio do senhor Gonçalves, pai do meu amigo e colega Dionísio Gonçalves. Em termos de áreas, as lojas eram parecidas mas esta, era a única que não possuía varanda à volta. Tinha um quintal, todo cercado, com laranjeiras, tangerineiras e uma horta.
Era o único comerciante que possuía uma carripana Ford. Viajei nela, pelo menos umas três vezes, duas em picknick e uma a Cangamba, para fazermos exames e, mais um desvio para vos contar uma passagem engraçada, com o meu irmão Manel. A carrinha enterrou-se e, toda a gente saltou da sua carga para ajudar e, aproveitou-se o momento, para nos aliviarmos. Só a nossa professora não o fez, não largou a cabine. Então o puto, saiu-se com conta boca: -"todos mijam só a professora é que não". Foi uma risada. O certo é que a professora só se aliviou em Cangamba e, olhem lá, foram umas quatro ou cinco horas de viagem.
Nesta viagem, matou-se um nunce e, como não havia lugar para ele, na viatura, a peça ficou à guarda de uns nativos que, do nada ali pareceram. Ficou combinado no regresso, recuperarmos parte do bicho. Mas o mais engraçado, foi quando chegamos a Cangamba, já toda a gente sabia da caçada. Olhem que não existiam telemóveis!
DO 27 em trânsito, foto de Carlos Gomes da Silva

E vamos voltar à picada mãe.
Finalmente, neste correr, vinha a segunda loja da firma Pinto Martins, ocupada pela nossa família, a quem os patrícios alcunharam o meu saudoso velhote de Manel "saba niqué" isto é, pai de muitos filhos. Pudera, naquele tempo, já éramos sete, a mais velha com quinze anitos e a mais nova com cerca de meses. Esta foi a nossa segunda residência neste posto. A loja era também rodeada por uma varanda, tinha apenas três divisões, a loja em si, o armazém, e o quarto do empregado e atrás, a privada. Ao lado direito deste edifício, existia um enorme casarão, possivelmente, a loja inicial, de adobe e coberto a capim e tinha para além de um armazém, seis divisões. Era nele que residíamos. Tinha também à toda a volta uma varanda e à frente, um enorme avançado. A casinha, ficava atrás, em edifício próprio.
Voltando às minhas recordações, começo por vos dizer que, todos os edifícios, que eram propriedade do Estado, como sejam, as enfermarias, as escolas e o posto administrativo, citadas anteriormente, serviram de quartel a uma Companhia de Cavalaria, pertencente ao Batalhão de Cangamba "Às de Espadas", e que, o seu comandante, o senhor
Monumento ao Cap. Costa Martins,
 foto Bat."Ás de Espadas"
 
Capitão Costa Martins, ali faleceu, vitima de uma emboscada, perto do Rio Chicului. Foi até edificado um monumento em sua memória, junto àquela que fora a enfermaria e residência do enfermeiro. 
E agora, vou voltar ao tema da "casinha". É que, em todos os edifícios que habitei e que conheci, naquelas bandas, em nenhum deles esta divisão, onde os "fortes se transformam em fracos", tinha ligação interna à restante residência, o seu acesso, era sempre pelo lado de fora. Nunca entendi isto e, não sei se existirá por aí alguém que conheça as razões objectivas desta discriminação arquitectónica. Alguns tinham mesmo um edifício próprio, como era o caso da minha última residência, citada no meu trabalho anterior.
Esta nossa morada tinha umas sete divisões e no quintal, que era enorme, tínhamos mais
Casa e família de Antonio Gomes 
quatro pequenas casas, a cozinha, com formo e tudo, a dita privada, a capoeira e o alojamento para os nossos fregueses, muitas árvores de fruto, laranjeiras, tangerineiras, limoeiros, ananases, nespereiras, mangueiras, goiabeiras e mamoeiros. Para além destas existia ainda, mas afastados, o curral dos porcos, dos bois e das cabritinhas. Uma parte desse quintal era ocupado por uma horta, no tempo das chuvas e uma outra parte, com a cultura de milho. Muita massaroca comia.
Para nos mantermos, minimamente, informados, todos os comerciantes tinham um rádio, o nosso era da marca Philips, utilizava uma enorme bateria do mesmo tamanho do rádio e só funcionava nas horas dos noticiários, da Emissora Oficial, no horário das comunicações, via P19 do chefe do posto e à noite, para o meu pai, à socapa, escutar a BBC de Londres, transmitida através da Africa do Sul, o que era proibido.
Um belo dia, o chefe desconfiou destas escutas ilegais e, resolveu, confiscar todos os rádios ali existentes. Ficamos mesmos às escuras, deixamos de ouvir uns fadinhos e o Teixeirinha, à hora das lides domésticas, a cargo das minhas irmãs Isabel e Lurdes. Por vezes, as notícias eram mesmo alarmantes. Depois, pesou-lhe na consciência e devolveu-os.
Muié vista áerea, foto Bat."Ás de Espadas" 

Vou voltar ao início daquela avenida, para vos descrever, agora, o seu lado direito mas, antes porém, devo aqui fazer uma referência, que se impõe, sobre a figura do Chefe ou Administrador do Posto, que era, como todos sabemos, a autoridade máxima daquela zona e que acumulava a bem dizer, todas as funções atribuídas a um governante. Eram os usos e costumes da época, que se utilizavam e em certos casos, com alguma malvadez e prepotência, os próprios poderes. O chicote e a palmatória, eram os instrumentos usuais, mas em abono da verdade, muito poucas vezes os vi entrar em acção. E, não querendo cometer nenhuma injustiça, vou apenas dizer que, estavam sempre ausentes, a culpa não seria deles, mas eu comprovei isso, naqueles postos por onde passei e, foram pelo menos uns dez anitos. Eram colocados mas, como havia muita falta deles, eram retidos nas sedes dos concelhos e, uma vez por ano, desciam ou subiam, conforme o terreno, para fazerem a recolha do IGM ou para confirmarem, perante o mundo, a presença no território, cuja administração pertencia a Portugal. Eu tive um exemplo desse na minha família. No Muié, houve apenas um chefe que, no meu tempo, chegou a aquecer o lugar, o tempo suficiente, para nos tirar uma foto de família, onde está incluída a sua e de todos os comerciantes. Mas não chegou a passar lá um Natal e, justiça lhe seja feita, apareceu uns meses depois, com presentes para todos nós. Eu ainda me recordo do descapotável, em plástico que dele recebi e, o único defeito que lhe apontei, foi ser verde e, era muito frágil para aquelas picadas. Ora bem, o homem era simpático, acessível, uma boa autoridade. Aceito como certo, o facto deles também, a exemplo dos comerciantes, terem corrido riscos de vida, no exercícios das suas funções. Vocês nunca se esqueçam que, o isolamento mata mesmo. Nós ficávamos todos felizes, eufóricos mesmo, quando ao longe escutávamos o roncar de um camião ou de uma outra qualquer carripana, que nos vinha visitar, o dia mudava totalmente, nem os patrícios fugiam á regra. A monotonia era quebrada e a noite fazia-se dia. Exagero meu, mas só quem viveu estas experiências, sabe avaliar. 
Muié vista áerea, foto Bat."Ás de Espadas" 

Mas, continuo a dizer que, os nossos antigos, traçavam tudo a régua e esquadro. Duvido que aqueles projectos de povoações, tivessem sido feitos por engenheiros, porque eles não existiam ou, existiam poucos e, não se aventuravam naqueles confins. O que me leva a concluir que os referidos traçados tenham sido concebidos pelas primeiras autoridades que, como todos sabemos, eram oficiais do nosso exército, porque a nossa penetração, naquele território, assim o obrigava.

Agora sim, vou descrever-vos a lado direito da dita avenida e, volto a chamar a vossa especial atenção para a foto que figura no topo.

Ali naquele local onde está localizada aquela enorme sanzala, existia um descampado com o tamanho de um campo de futebol. Assisti à construção daquela pista de aterragem mas, não assisti a nenhuma aterragem. Não tenho a certeza mas, isso aconteceu pela primeira vez, com a evacuação dos missionários e, pouco tempo depois, com a minha mãe. Todo o resto era mato rasteiro, bissapas e mais bissapas.
A seguir a esta sanzala, vinha o comércio/loja do meu falecido tio Luis Ferreira da Silva. Devia ser o maior edifício, em termos de área coberta, e era o único coberto a telha. Era mesmo enorme, tinha oito divisões, sete portas e seis janelas. Tinha uma varanda a toda a volta e era vedado do lado direito, com um pequeno muro com frestas. Também nesta, a entrada para a "casinha", fazia-se pelo lado da varanda, não tinha comunicação directa com o resto da casa. No quintal, que era todo cercado, existiam mais cinco edificações, casas de pau a pique, utilizadas como armazém, dispensa, cozinha, alojamento para os nossos fregueses, capoeira e curral das "pembes". Ao fundo do quintal que era enorme, ficavam os currais dos "gombes" e dos" gulos". Neste quintal existiam muitas mangueiras, mamoeiros, goiabeiras, laranjeiras, limoeiros, tangerineiras, ananases e uma amoreira junto ao tanque dos patos. Também tínhamos coelhos e uma coelheira. E uma cadela, a Diana, cuja história já vos contei.
Instalações do Quartel,
foto Bat."Ás de Espadas"
 
Esta foi a nossa primeira residência neste posto administrativo, depois de termos saído do Sessa e deu-se, numa altura em que o meu pai se incompatibilizou com o nosso tio Ferreira das Barbas e na mesma altura, em que o meu tio Luis, se mudou para o Moxico Velho. À sua volta e, no lado residencial, tínhamos plantadas algumas flores. Esta loja, após a nossa saída, foi ainda habitada pelo falecido senhor Luciano e, depois de ele sair para o Mussuma, foi ocupada como quartel, por um pelotão do nosso exército que pertencia, se a memória não me falha, a uma companhia (naquele tempo ainda não era sede de Batalhão), que pertencia a Gago Coutinho. O mesmo acontecia em Cangamba que, inicialmente, teve lá instalada uma companhia. Só mais tarde é que virou sede de um Batalhão.
A segunda  e a terceira habitação, que distavam umas das outras, cerca de cem metros, eram de pau a pique e cobertas a capim e tudo indicava que tinham sido as lojas primitivas, da firma Pinto Martins e do senhor Gonçalves, cujas lojas definitivas, construídas a adobes, já eu as citei quando descrevi o lado esquerdo desta mesma avenida, aliás,  elas estavam localizadas, sensivelmente, em frente umas das outras. Ambas tinham quintais cercados com árvores de frutos, principalmente, mangueiras, laranjeiras e limoeiros que faziam muito bem às cauenhas. De resto, também este lado era rodeado de quimbos e de bissapas.
Instalações do Quartel, foto Bat."Ás de Espadas" 

O povoado era mesmo muito airoso e perfumado pelo cheiro dos eucaliptos e, no tempo da floração, aquelas bissapas deitavam uma flor amarela e ouvia-se por todo o lado, os zumbidos das abelhas. Em determinados anos, estas com o frio e a geada, ficavam totalmente queimadas e, quando isso acontecia, o espectáculo era desolador, um desastre para as abelhas e para a economia local que vivia muito do seu mel e, consequentemente, da sua cera.
A missão, situava-se à entrada do posto administrativo, para quem vinha dos lados de Cangombe/Cangamba. Com cerca de dois mil metros de comprimento  e uns quinhentos de largura, era toda vedada, com uma cerca da altura de um homem, muito arborizada, com relva por todo o lado, limpinha, cheia de pomares com toranjas, fruta que eu nunca tinha provado e não gostei.
Possuía umas quinze edificações, em adobe e a maioria delas cobertas a capim, todas pintadas de branco, com varandas largas e muradas, a saber, seis, eram residências dos missionários e da professora, muito acolhedoras, todas elas com lareiras;  três eram salas de aulas, duas delas em anfiteatro, coisa nunca vista; um internato feminino; uma enfermaria, uma igreja e um internato masculino, em forma de U que se situavam fora da vedação, por razões óbvias. 
Afastado de tudo e de todos, estava uma leprosaria. As restantes eram casas de apoio.
Tinham água canalizada e telefone interno. Residiam ali sete missionários, de nacionalidades americana, canadiana e sul-africana, o sr. Brainer era o responsável pela missão, casado, a Dona Buila era a enfermeira chefe, ajudada pela enfermeira Dona Margarida; a Dona Cecília era a responsável pelo internato feminino e o Sr. Muir era, o cavaleiro andante lá da missão.
Os leprosos só estavam autorizados a circular pelo posto, aos sábados, e percorriam todas as quatro lojas a pedir esmolas. Toda a gente, principalmente os nativos, fugiam deles mas, eu e a minha família nunca o fizemos e sempre os ajudamos, com fuba, sal, alguma tuqueia e às vezes até sabão.
RESUMO E CONCLUSÃO
Alguns residentes no Muié, 
foto de Antonio Gomes 
Cheguei a contabilizar, num determinado ano, ali a existência de trinta "chindeles", na sua maioria portugueses, e a família mais numerosa era sem dúvida alguma a minha, composta por nove elementos.
Existiam naquele posto quatro viaturas, o Land Rover do chefe do posto, a carripana do senhor Gonçalves, o jeep Willis do senhor Muir e a Dodge do senhor Brainer. Todas elas de caixa aberta.
Pelo menos duas quingas, a nossa e a do senhor Prata que era um vizinho nosso, negro, que desempenhava um cargo importante na missão, ligado à igreja.
Duas enfermarias, a da missão e a do Estado; três enfermeiros, um do Estado e duas da missão; cinco salas de aulas,  duas do Estado e três da missão.
Em termos de nativos, existiam muitos quimbos na redondeza e, estimo uma população a rondar o meio milhar de famílias.
Não sei precisar o ano, mas tivemos a visita do Governador Geral de Angola, o general Silvino Silvério Marques, acho que foi o único que ousou enfrentar aquelas picadas. Naquele tempo, ainda não existia a pista. A festa começou logo pela manhã com batucadas para reunir o pessoal, a povoação foi toda engalanada, com faixa de pano cru branco pintado com mensagens de boas vindas, presas aos eucaliptos, em frente ao posto foi feito um corredor, com duas longas filas de alunos, com as suas batas branquinhas e com bandeirinhas de papel, de cor verde e vermelha, todos os comerciantes e missionários, sobas e sobetas, muitos nativos e cantou-se o hino nacional e o ANGOLA É NOSSA.
O governante ouvia algumas queixas e pedidos, comeu alguma coisa e, ala que se faz tarde.


O amigo Luena






sexta-feira, 22 de julho de 2016

EXCESSO DE CONFIANÇA

ESTÓRIAS DE MISSÃO DE UM OFICIAL DA FORÇA AÉREA: ANGOLA – 1992

Cartoon do autor
A atividade da ONU na placa do aeródromo de Luena tinha momentos de intenso movimento de pessoas e material. A nossa presença era absolutamente estranha para os populares que deambulavam pelo local, buscando apanhar um voo para Luanda. Muitos desses elementos eram desmobilizados e alguns tinham armas em seu poder. 
Certo dia Irritados e em desespero de causa, alguns desmobilizados começaram a manifestar-se violentamente por não conseguirem um voo para fora de Luena. Não tardou e ocorreram os primeiros disparos de armas automáticas. 
Comigo na placa, estava um grupo de jornalistas holandeses, que tinham vindo a Luena em trabalho de reportagem sobre a região. Os jornalistas aguardavam por um C-130, ao serviço da ONU, para regressarem a Luanda. Ao ouvirem os tiros, os jornalistas holandeses entraram em pânico e atiraram-se ao chão para não serem alvejados. Havia gritos em Holandês (Flamengo), em Inglês e até estava alguém a chorar. Eu continuei a trabalhar, de um lado para o outro; organizando as bagagens de embarque; falando pela rádio com o pessoal da torre para saber a estima do nosso avião; procurando pelo nosso pessoal de apoio em terra para me ajudar nas tarefas; etc. 
Os tiros eram coisa corriqueira por ali, e eu tinha muito assunto para resolver antes do C-130 chegar. Era como se os disparos fizessem parte do cenário de um filme onde, por acaso, eu também participava. Tudo aquilo eram cenários e figurantes do meu filme. Foi nessa altura que ouvi o som de algo a bater no chão ao pé de mim, com muita força. Só depois ouvi o som do disparo. Aquele tiro tinha sido dado na minha direção e, como a bala voava mais rápido que o som, só ouvi o disparo da arma depois do impacto a meus pés. Logo a seguir, ouvi um assobio do lado direito da cabeça e, de novo, o som do disparo veio a seguir. Alguém estava a disparar na minha direção, e não eram balas perdidas. Atirei-me ao chão procurando esconder-me por detrás de alguns volumes que ali estavam para embarcar. Os caixotes não iriam impedir as balas de me atingir mas, pelo menos, ocultavam a minha silhueta ao atirador. Segundos depois começou um arraial de tiros isolados, rajadas de armas automáticas e muita gritaria. Os Ninjas tinham regressado ao aeródromo. A diferença em relação à sua primeira intervenção era que, desta vez, não estavam a usar bastões de madeira mas sim kalashnikovs. 
Quando tudo acabou, estavam várias pessoas estendidas no chão da placa, onde o avião da TAAG tinha estado estacionado. O pequeno grupo que foi buscar a antiaérea foi considerado instigador daquela ação, tendo sido algemados no local. Os presos e os feridos foram levados pela polícia antimotim e o ambiente acalmou de novo.
Ouviu-se o ronco surdo de um outro C-130 a aterrar, seguido do som intenso do procedimento de travagem com os motores em reverse. Era o nosso avião que chegava. Quando os holandeses subiram a bordo, tinham os olhos vermelhos de terem estado a chorar. Eu tinha o semblante aparvalhado de ter escapado, por muito pouco, a levar um tiro na cabeça. Tudo por ter cometido um erro comum neste tipo de operações – baixar a guarda devido à rotina.
Registei a minha lição número dois, em ambiente de conflito: - “O Excesso de Confiança mata!”


(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)



Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

LUZES DE PISTA

Cartoon do autor
Certo dia de operação na missão das Nações Unidas em Luena, fui informado que o nosso reabastecedor de combustível para aeronave passaria a voar à noite. Quando tentei coordenar o voo noturno com o diretor do aeródromo de Luena, o homem abanou a cabeça, olhou-me nos olhos e disse em voz baixa:
- “Comandante, não sei como lhe vou dizer isto, …, mas..., …, roubaram-nos as luzes de pista a noite passada. Só deixaram ficar 14 candeeiros, que estão em curto-circuito. Não podemos operar à noite!”
Era um dado novo, com impacto direto na distribuição do material eleitoral. Tentou-se negociar a vinda no meio aéreo durante as horas de luz sola. Contudo, o constrangimento do reabastecimento noturno era inultrapassável. Luanda insistia que, a partir daquela data, só iríamos receber combustível à noite, porque o aumento das necessidades de Jet A-1 contrastava com a escassez de meios aéreos de distribuição.
Numa região onde a guerra tinha destruído todas as ajudas rádio à navegação aérea e o sistema GPS estava a dar os primeiros passos, os voos noturnos de reabastecimento de combustível eram uma aventura, digna dos pioneiros da aviação. As tripulações dos C-130 da TransAfrik que faziam esses voos eram constituídas por veteranos de outras guerras, com uma grande variedade de países de origem. Todos eles eram profundos conhecedores do território Angolano, porque voavam naquelas paragens durante a guerra civil. Bombardeei o diretor do aeródromo – o senhor Pedro – com uma série de perguntas, na busca de uma solução para aquela dificuldade.
– “Não podemos receber esta aeronave à moda antiga? Fazendo fogueiras ao logo da pista?” -Perguntei.” – E combustível alternativo? Haverá Jet A-1 no Aeródromo que nos possam ceder?” – Insisti.
- “Vou perguntar ao Governo de Luena o que se pode fazer em relação a tudo isto.” - Disse o diretor do aeródromo.
O Governo de Luena entendeu não autorizar “alternativas medievais” e o voo reabastecedor foi cancelado. Ficámos curtos de combustível para todas as tarefas que estavam planeadas, e decidi diminuir os voos eleitorais, para manter a credibilidade do Plano de Evacuação que tinha elaborado. Com as restrições nos voos eleitorais, o Governo local acabou por dar acesso, a título de empréstimo, ao combustível que a Força Aérea Angolana tinha armazenado em Luena. Aquele Jet A1 estava guardado em bidões de 180 litros, colocando um novo desafio – a compatibilidade de sistemas. Após inspecionarmos os contentores de combustível, verificou-se que a única bomba de extração compatível com o bocal dos bidões era de um modelo ocidental, cuja mangueira de abastecimento não era compatível com a entrada dos depósitos dos MI-17 russos.A solução encontrada foi abastecer os helicópteros por gravidade. Ou seja, para encher os depósitos externos de cada helicóptero, tínhamos de verter 1 400 litros de combustível com o recurso a um funil. Como não confiávamos na qualidade do combustível daqueles bidões, especialmente depois da queda de dois MI-17 no Uíge, colocava-se um pano do funil para tentar filtrar o Jet A-1, o que demorava ainda mais o processo. Os miúdos que andavam na placa à cata de desperdiço de Jet A-1, estavam radiantes com o novo procedimento. Quando retirávamos combustível dos bidões para o funil, e deste para o helicóptero, entornava-se algum combustível. Nessa altura, lá estavam eles com as latas debaixo das mangueiras a aparar todas as sobras. Por vezes era irritante, mas nós tolerávamos as crianças porque era uma forma de os ajudar, e eles retribuíam fazendo pequenos recados que nos davam muito jeito.
Pista de Luena

Na tarde dia, seguinte o diretor do aeródromo contactou-me, com o semblante muito comprometido.
- “Comandante, preciso da sua ajuda. O governo vai receber uma aeronave VIP esta noite e vou ter de abrir a pista a tráfego noturno. O Comandante tinha posto a possibilidade de se fazer umas fogueiras e o Governo local instruiu-me para seguir o seu conselho. Nós temos ali uma quantidade de invólucros de projéteis de artilharia de 122 mm. Podia-se colocar um cartucho de 50 em 50 metros e meter combustível com uma torcida de pano. Mas agora, nós não temos o combustível, porque lhes demos o Jet A-1 todo…, será que nos podia ajudar?”
Evitei rir-me na cara do homem, porque não tinha culpa nenhuma no assunto.
-“Vamos a isso!” Retorqui sem ressentimentos. – “Deixe-me só dar uma satisfação ao meu chefe”.
O Chefe do PNUD em Luena desatou a rir quando lhe contei o ocorrido e respondeu-me:
- “Vamos reportar isso para Luanda. Provavelmente eles vão aproveitar para mandar o nosso combustível também.”
Efetivamente, passado pouco tempo viria de Luanda a confirmação que, se tivéssemos a pista iluminada nessa noite, deveria chegar a Luena um C-130 com 40 000 litros de combustível Jet A-1. Pedi para levarem os dois carros do PNUD para o aeródromo nessa noite; solicitei que me dessem as latas de leite em pó vazias que estavam no armazém; coordenei com o diretor do aeródromo a cedência de pessoal com enxadas; e fomos para as pistas antes do final da tarde.
- “Meus senhores, o Jet A-1 não arde particularmente bem se estiver concentrado em estado líquido. Mas se o utilizarmos como combustível para uma mexa de pano ficamos com uma belíssima tocha.” – Disse eu. –"O que iremos fazer será enterrar um cartucho de 122 mm em dada 50 passos largos, em ambos os lados da pista. No fim da pista, vamos pôr os dois carros do PNUD com os faróis e os quatro piscas ligados, voltados contra o sentido da aterragem, para os pilotos se aperceberem do final da faixa. No início da pista, vamos colocar as latas grandes de leite vazias, com um pedregulho lá dentro para não voarem. Depois vamos com o atrelado de combustível da ONU meter um bocado de Jet A-1 nas latas e nos cartuchos. A seguir vamos procurar pedaços de fardas e roupas abandonadas, que estão espalhados por aí em quantidade e que são bons para servirem de mexa. Colocamos um trapo dentro de cada recipiente e, quando a torre nos disser que as aeronaves estão em aproximação, acende-se isto tudo! Alguém tem dúvidas?” - Perguntei. – “Não há dúvidas? Vamos ao trabalho!”
O primeiro avião a aterrar foi o governamental. Um Dakota modernizado, com motores turboprop.
Na placa, à espera dos passageiros, estava uma comitiva civil e militar de peso. Eu fui para a torre para me certificar que nos avisavam da chegada do nosso C-130. Não houve muita demora entre as duas aeronaves. O C-130 chamou a torre, em Inglês, pedindo orientações para a pista. O controlador, que já me conhecia, passou-me o microfone porque não dominava a língua nem sabia das instalações que tínhamos feito. Ajudei o piloto a referenciar a pista, dando-lhe rumos para o aeródromo, baseado nas luzes de navegação do avião que podia ver à distância através de um par de binóculos. A aeronave aterrou, descarregou o precioso líquido para dentro dos nossos depósitos (bladders) e foi embora. Admito não ter gostado de trabalhar à noite, numa placa sem iluminação, fazendo de sinaleiro a um C-130 carregado de combustível, que rolava demasiado próximo de hangares, tendas, depósitos de bombas, campos de minas, etc.
Enfim, …, tudo aquilo que os manuais dizem, que não se deve fazer.


(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)



Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

AS MEMÓRIAS DE UM LUENA - CANGAMBA









CANGAMBA, SEDE DA ENTÃO CIRCUNSCRIÇÃO DOS LUXAZES.

A minha primeira passagem por esta vila, conhecida em tempos por Vila Aljustrel, deu-se em meados do ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, por aí, a caminho do posto administrativo do Sessa onde o meu pai era comerciante ao serviço do nosso tio/avô, Francisco das Barbas ou o velhote das Barbas de Cangamba. Mais tarde voltarei a falar desta personalidade que muito me marcou.Três anitos depois, em 1957 ou 58, voltei para ali frequentarmos a minha primeira classe. A sua descrição é algo complicada pois, esta era muito dispersa.
Havia edificações, mais conhecidas por lojas, que distavam umas das outras, cinco ou mais kms. Contudo, vou fazer um esforço e, surpreender-vos, passados que estão, mais de cinquenta anos.
Vai levar algum tempo mas, o homem pensa e, logo, a sua obra nasce. É mais ou menos isto.



Irei começar pelo Rio Cubangui que dividia aquela Vila. Não sei se ainda hoje é assim. Era um rio bastante fundo, o seu leito era quase todo coberto por vegetação que ondulava ao sabor da sua forte corrente. Aqui e ali, umas manchas brancas no meio daquela verdura. As suas margens inundavam-se com as chuvas e nelas cresciam imensos nenúfares. A sua margem esquerda era muito escarpada, coberta de mato rasteiro e matunduas, um fruto que se tornava benfiquista, quando maduro, muito ácido mas também muito saboroso.
No cimo desta escarpa, existiam duas lojas.
Para quem viesse do Luso-Cassamba ou do Sessa, encontrava a loja do sr. Almeida Camapunho e, para quem viesse ou fosse para o Muié, a loja do meu tio Ferreira das Barbas. Estas duas lojas, distavam uma da outra, cerca de quinhentos metros e a picada/avenida que as ligava, estava ladeada de eucaliptos adultos e de alguns bambus. Ambas estavam rodeadas de quimbos, lavras e mato rasteiro.
Aqui cabe referir que, em todos os postos administrativos que conheci, estas magnificas árvores marcavam presença e, eram de bastante utilidade já que, serviam de para-raios e de abrigo aos temporais muito presentes por aquela zona. E também de abrigo à passarada que a eles afluíam num chilrear ensurdecedor. Com um bater de palmas, levantavam voo e escureciam ainda mais o entardecer. O tamanho destas, ditava a idade do povoado. 
Sensivelmente, a meio desta avenida/picada, começava a descer uma outra, às curvas, de terra vermelha, em direcção ao dito rio, cuja ligação se fazia através de uma ponte em madeira de mussivi.
A sua margem direita, era mais plana, com pouco mato rasteiro, mais capim e mais arenosa. Uma pequena subida, mais eucaliptos e a loja do nosso querido e saudoso Mué Gunga, de seu nome, Luciano dos Santos Amaral.
Também esta era rodeada de eucaliptos.
Foi nesta casa/loja que eu e as minhas duas irmãs mais velhas, estivemos hospedados, durante parte da nossa instrução primária. E, também foi nela que eu conheci os meus melhores amigos. Também deste assunto, voltarei a falar mais tarde. Isto está tudo esquematizado, tenham lá um pouco de paciência.
Foi também nesta casa que nasceram os meus irmãos Zé e o já falecido Fernando. Era enorme tinha umas nove divisões, com varandas à frente e nas laterias. Atrás desta existiam mais umas duas enormes, cobertas a capim, uma delas servia de internatos aos rapazes e, foi nesta que uma bela noite fomos visitados pelo feiticeiro Mué Tchicunza, que nos deixou a todos baralhados, foi a confusão total, com os lampiões a apagarem-se, enfim, só visto.
Para além destas existiam pelo menos mais duas casotas pequenas.
No quintal havia mangueiras, muitas laranjeiras e tangerineiras, nespereira, goiabeiras, mamoeiros e uma pereira muito alta. Havia um tanque, habitado temporariamente por uma cria de jacaré, que depois foi devolvido ao rio por imposição do administrador, havia um quima e um corvo que sabia o nome de todo o pessoal e, imitava, lindamente a dona da casa, a saudosa D. Leopoldina. Muito gritava o raio do corvo pelo Pedro, engraçou com o seu nome e, lá vinha ele a correr, todo esbaforido, "diga D.Lepoldina... oh rapaz eu não te chamei". Todo o quintal era vedado por umas sebes trepadeira e espinhosa. 
Aqui, a picada bifurcava, uma passava ao lado e por detrás do quintal e ia dar a uma outra que tinha como destinos ao hospital e a firma do Pinto Martins e seguia para o Alto Cuito. A outra, seguia em frente, uma ligeira descida, um pontão sobre o riacho conhecido por Carilongue e, uma subidona larga, com uma curva e, finalmente, uma enorme recta, encimada pelo palácio do administrador. Esta avenida era toda ladeada de eucaliptos adultos e, um pouco depois da curva, do nosso lado esquerdo, aparecia a igreja, sem pároco na altura que servia de sala de aulas aos "indígenas". Custa-me muito dizer isto mas, a verdade é que, havia alguma discriminação racial já que na nossa escola, não havia um único negro. Mas tal situação humilhante, deixou de existir acho que um ano depois, quando eu e muitos de nós, já tínhamos partido para outras paragens.



A residência do administrador era enorme, bem à maneira colonial, era toda murada, com a altura de um homem, como dizia o patrício, e, em tempos idos, tinha sido um forte do nosso exército, aquando da nossa Campanha de penetração no grande sertão africano. Por certo, ali residiu o capitão-mor dos Luchazes, António Augusto Dias Antunes, com os seus cinco graduados e 48 soldados indígenas. É isto mesmo que nos diz o autor René Pélissier, no seu livro - História das Campanhas de Angola I, resistência e revoltas, 1845-1941. 
Dentro daqueles muros, com uma superfície, calculada a olhómetro, de dois hectares, (se errar, vocês não irão conferir, a não ser o Zé Caninga e o seu irmão João, que estão desde já impedidos), existia ao lado do tal palácio, a nossa escola e por detrás desta, um enorme casarão que serviu de residência à família Calheiros e na parte lateral, um conjunto de casas rasteiras e uma parada, julgo eu. Para esses lados, estávamos impedidos de passar.
Voltando à igreja, para quem subia a larga avenida e, sensivelmente, a meio desta, havia um cruzamento de estradas.
A que seguia para o lado esquerdo, ia parar ao Cangombe e, a do lado direito, o destino final era o Alto Cuito. Mas, logo a seguir à igreja, uns metros mais a cima e à esquina desse cruzamento, existia a loja do sr Manuel Lopes, funcionário da firma Pinto Martins e na outra esquina, sempre do mesmo lado esquerdo, um correr de três ou quatro habitações pertencentes à administração. A avenida acabava mesmo em frente ao palácio. Do lado direito, em frente à igreja e à loja do Manuel Lopes, existia só mato. Numa das esquinas do lado direito, ficava a administração e mesmo à entrada do já referido palácio, a cadeia. Na estrada do Cangombe, só existia do seu lado direito mais um casarão que serviu de residência à família Calheiros. Na estrada para o Alto Cuito, do seu lado esquerdo, existia um enorme hospital, duas ou três residências, pertencente à administração, uma delas era a do enfermeiro e logo a seguir, já mesmo no final da povoação, a loja da firma Pinto Martins. Os quimbos que existiam, situavam-se à beira das lojas do meu tio Ferreira, do sr. Almeida Camapunho, do sr. Luciano, e da firma Pinto Martins e ainda atrás do palácio e do hospital. Por todo o lado via-se mato rasteiro, bissapas, capim, matunduas, lavras de milho, jinguba e batata-doce. Com a intensificação da guerrilha, houve um abandono total da população branca e, quase todos aqueles edifícios, foram ocupados pelo nosso exército já que ali fora instalada a sede de um batalhão.

O único que nunca abandonou aquela vila, foi o meu tio/avô Ferreira das Barbas que, só em 1974??, foi forçado a fazê-lo por motivos de saúde, vindo a falecer no Luso. E hoje, como estará aquela Cangamba?
A minha primeira professora, chamava-se Arminda. Era mesmo muito brava. A sua palmatória, não tinha descanso. Ministrava, na mesma sala, aulas da primeira à quarta classe e, chegamos a ser, vinte e dois alunos, agrupados por famílias, saber:- da família dos SANTOS AMARAL, a Gina, a Lurdes e a Ivone; da SOUSA AMARAL, primos destes, a Vitória, a Zé e o Armindo, vindos do Luvuei; da ALMEIDA CAMAPUNHO, a Marlene, o João Cristiano, o Duarte (Neco) e o Zé Carlos( Caninga), residentes naquela vila; da PERESTRELO, o Rui, o Pedro e o falecido Tonito (Bartolomeu), vindos do Cangombe; da GOMES, eu e as minhas irmãs, Isabel e Lurdes, vindos do Sessa; da CALHEIROS, o António, a São e a Eduarda (Dita) e da família LOPES, o Nanel, mais conhecido pelo forno, residentes naquela vila. A minha família, a dos Perestrelos, a dos Sousa Amaral e do Lopes, vivíamos todos em casa da família Santos Amaral, cujo casal, já falecido, o sr. Luciano e a D.Lepoldina, tinha mais três filhos, o Julião já a estudar no Luso e dois kandengues, cassulas, o Nelson e a Mitó.
Como é bom de imaginar, as canseiras que este casal, simpático, e muito querido por nós todos, tiveram para nos aturar. Era mesmo um ambiente familiar que ainda hoje, recordo com muitas saudades, foi nele que, arranjei os melhores amigos da minha vida. Filhos de comerciantes, camionista e funcionário público.
A uns minutos da nossa saída, a professora, tinha o hábito de reunir toda a turma, à volta da sua secretária, para uma revisão da tabuada e, desgraçado daquele que a não soubesse. Entrava logo em funcionamento a terrível palmatória. E lá vínhamos nós com as mãozitas a ferver e com o monco na ponta do nariz. Mas que hábito mais danado.
A escola não possuía casa de banho, de maneiras que, tínhamos que nos aliviar no mato mais próximo que distava ainda uns bons cem metros. Para nossa desgraça, muitas das vezes, já com os calções nas mãos, tínhamos que transpor uma fenda no muro, aí com um metro de altura. E, depois, abrir bem os olhitos, para não tropeçarmos, nos nossos próprios presentes, feitos no dia anterior, espalhados por tudo quanto era sítio. Alguns já feitos em bolinhas e a serem transportados por uns enormes escaravelhos pretos, que os empurravam com as patas traseiras. Era um perigo circular naquela zona. A criança daquele tempo, sofria muito. 
Nesse percurso do alívio, existiam umas mangueiras que, de tão carregadas, estavam derreadas, com as manguinhas ali mesmo ao alcance das nossas boquitas. A tentação era tanta que, zás, uma dentadinha para avaliar o seu estado de maturação e, se estivesse no ponto, era logo ali comida, caso contrário, lá ficava ela dependura com a dentadinha. Um belo dia a professora, resolveu dar por lá uma voltinha e deparou-se com aquele triste espectáculo. Ficou furiosa e procurou saber quem tinham sido os artistas que tinham pintado aquele quadro. Como ninguém se acusou, foi uma geral, apanhamos todos. Isto sim, foi um acto solidário.
Mas à saída, começou a trovejar e o nosso amigo Neco, rogou uma praga inocente às mangueiras e à professora, do género:- era benfeito que ali caísse um raio e deitasse as mangueiras ao chão. Pois, qual não foi o nosso espanto, no dia seguinte, ali estava ela toda rachadinha, no chão. Foi um gozo, estávamos vingados.
Entretanto esta nossa professora, casou-se com o chefe do posto de Cangombe e para lá foi dar aulas ao Pedro. Fomos todos convidados para o seu casamento, foi uma bonita festa, foi ali que pela primeira vez, tive contacto com a coca cola e com a canada dry. Foi uma barrigada.
Finalmente, justiça lhe seja feita, ficamos a saber de cor e salteada a tabuada. Quanto à restante matéria, não ficamos mal servidos e, todo o resto foi esquecido.

Neste conjunto de "lembranças" do Amigo Luena António Gomes, quarenta anos após, muitos de nós podem relembrar um conjunto vasto de factos, vivências e da cultura Luena.
Ficamos gratos António Gomes, por este vosso contributo.




sexta-feira, 1 de julho de 2016

DESMOBILIZADOS

ESTÓRIAS DE MISSÃO DE UM OFICIAL DA FORÇA AÉREA: ANGOLA – 1992

Cartoon do autor
Conforme o estipulado nos Acordos de Bicesse, durante o processo eleitoral Angolano de 1992, as duas principais forças em confronto militar (UNITA e MPLA), tiveram de reduzir os seus efetivos e desmobilizar combatentes. Ambos os partidos desmobilizavam os seus combatentes dando-lhes a opção de levarem consigo as armas ligeiras que lhes tinham sido distribuídas. Toda a gente tinha uma AK-47 Kalashnikov e vários carregadores cheios de balas.
A questão dos desmobilizados era, talvez, o maior problema na situação de pós-conflito que Angola vivia. Procurei informar-me sobre a forma como estava a decorrer o processo de desmobilização. Segundo me contavam as fontes internacionais, havia uma notória diferença comportamental entre os dois partidos em conflito.
- “Os desmobilizados da UNITA dão o nome no centro de desmobilização, formavam a três e regressavam à Jamba. Os desmobilizados das FAPLA (forças do Governo MPLA) tentavam vender as suas armas no mercado e vão para o aeroporto à espera de transporte para Luanda.”
Uma pistola militar custava, no mercado local, 8 000 Kwanzas e uma Kalashnikov 12 000 Kwanzas. Um modesto valor que, no caso da AK-47, seria equivalente ao preço de um volume de tabaco com 20 maços de cigarros portugueses. Se a coronha da arma tivesse um trabalho de gravação esculpido, o preço seria um pouco mais caro.
Em Luena, a parte visível do problema dos desmobilizados, estava no aeródromo. Chegaram a vaguear por ali quase 400 ex-militares das FAPLA, alguns acompanhados da respetiva família. Todos aguardavam um avião que os levasse para Luanda. Por definição, em qualquer conflito, as matérias relativas a desmobilizados são um assunto governamental. As entidades internacionais podem ajudar, mas não devem substituir o governo nacional nestas funções. Em resultado disso, as aeronaves ao serviço da ONU, entre elas o avião C-130 Português que nos trouxe para Angola, não tinham autorização para embarcar esta gente, a não ser que recebessem a tarefa específica para o fazer. O que acontecia pontualmente, após um pedido expresso do Governo Angolano à UNAVEM.
C;130 FAP . foto EMFA
Um certo dia o C-130 português apareceu em Luena com a missão de levar 90 desmobilizados para Luanda. Dirigi-me à aeronave, a fim de saudar os meus compatriotas, colocando-me à disposição para os ajudar no que fosse necessário. Quando entrei na cabine de pilotagem - cockpit - a tripulação comentava que algo teria batido na asa esquerda durante a aterragem, mas não se via nada significativo daquele ângulo.
- “Provavelmente foi um birdstrik [colisão com uma ave]” – disse o navegador espreitado pela janela – “quando são pequenos não se conseguem ver bem!”
Depois de muita confusão no exterior da aeronave, lá se conseguiu carregar os 90 passageiros.
Mais tarde soube que o impacto na asa esquerda do Hércules, não tinha sido uma ave, mas sim duas balas de kalashnikov.


(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)



Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.