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Certo dia de operação na missão das Nações
Unidas em Luena, fui informado que o nosso reabastecedor de combustível para
aeronave passaria a voar à noite. Quando tentei coordenar o voo noturno com o
diretor do aeródromo de Luena, o homem abanou a cabeça, olhou-me nos olhos e
disse em voz baixa:
- “Comandante, não sei como lhe vou dizer
isto, …, mas..., …, roubaram-nos as luzes de pista a noite passada. Só deixaram
ficar 14 candeeiros, que estão em curto-circuito. Não podemos operar à noite!”
Era um dado novo, com impacto direto na
distribuição do material eleitoral. Tentou-se negociar a vinda no meio aéreo
durante as horas de luz sola. Contudo, o constrangimento do reabastecimento
noturno era inultrapassável. Luanda insistia que, a partir daquela data, só
iríamos receber combustível à noite, porque o aumento das necessidades de Jet
A-1 contrastava com a escassez de meios aéreos de distribuição.
Numa região onde a guerra tinha destruído
todas as ajudas rádio à navegação aérea e o sistema GPS estava a dar os
primeiros passos, os voos noturnos de reabastecimento de combustível eram uma
aventura, digna dos pioneiros da aviação. As tripulações dos C-130 da
TransAfrik que faziam esses voos eram constituídas por veteranos de outras
guerras, com uma grande variedade de países de origem. Todos eles eram
profundos conhecedores do território Angolano, porque voavam naquelas paragens
durante a guerra civil. Bombardeei o diretor do aeródromo – o senhor Pedro – com
uma série de perguntas, na busca de uma solução para aquela dificuldade.
– “Não podemos receber esta aeronave à
moda antiga? Fazendo fogueiras ao logo da pista?” -Perguntei.” – E combustível
alternativo? Haverá Jet A-1 no Aeródromo que nos possam ceder?” – Insisti.
- “Vou perguntar ao Governo de Luena o que
se pode fazer em relação a tudo isto.” - Disse o diretor do aeródromo.
O Governo de Luena entendeu não autorizar
“alternativas medievais” e o voo reabastecedor foi cancelado. Ficámos curtos de
combustível para todas as tarefas que estavam planeadas, e decidi diminuir os
voos eleitorais, para manter a credibilidade do Plano de Evacuação que tinha
elaborado. Com as restrições nos voos eleitorais, o Governo local acabou por
dar acesso, a título de empréstimo, ao combustível que a Força Aérea Angolana
tinha armazenado em Luena. Aquele Jet A1 estava guardado em bidões de 180
litros, colocando um novo desafio – a compatibilidade de sistemas. Após
inspecionarmos os contentores de combustível, verificou-se que a única bomba de
extração compatível com o bocal dos bidões era de um modelo ocidental, cuja
mangueira de abastecimento não era compatível com a entrada dos depósitos dos
MI-17 russos.A solução encontrada foi abastecer os helicópteros por gravidade.
Ou seja, para encher os depósitos externos de cada helicóptero, tínhamos de
verter 1 400 litros de combustível com o recurso a um funil. Como não
confiávamos na qualidade do combustível daqueles bidões, especialmente depois
da queda de dois MI-17 no Uíge, colocava-se um pano do funil para tentar
filtrar o Jet A-1, o que demorava ainda mais o processo. Os miúdos que andavam
na placa à cata de desperdiço de Jet A-1, estavam radiantes com o novo
procedimento. Quando retirávamos combustível dos bidões para o funil, e deste
para o helicóptero, entornava-se algum combustível. Nessa altura, lá estavam
eles com as latas debaixo das mangueiras a aparar todas as sobras. Por vezes
era irritante, mas nós tolerávamos as crianças porque era uma forma de os
ajudar, e eles retribuíam fazendo pequenos recados que nos davam muito jeito.
Pista de Luena |
Na tarde dia, seguinte o diretor do
aeródromo contactou-me, com o semblante muito comprometido.
- “Comandante, preciso da sua ajuda. O
governo vai receber uma aeronave VIP esta noite e vou ter de abrir a pista a
tráfego noturno. O Comandante tinha posto a possibilidade de se fazer umas
fogueiras e o Governo local instruiu-me para seguir o seu conselho. Nós temos
ali uma quantidade de invólucros de projéteis de artilharia de 122 mm. Podia-se
colocar um cartucho de 50 em 50 metros e meter combustível com uma torcida de
pano. Mas agora, nós não temos o combustível, porque lhes demos o Jet A-1
todo…, será que nos podia ajudar?”
Evitei rir-me na cara do homem, porque não
tinha culpa nenhuma no assunto.
-“Vamos a isso!” Retorqui sem
ressentimentos. – “Deixe-me só dar uma satisfação ao meu chefe”.
O Chefe do PNUD em Luena desatou a rir
quando lhe contei o ocorrido e respondeu-me:
- “Vamos reportar isso para Luanda. Provavelmente eles vão aproveitar para mandar o nosso combustível também.”
- “Vamos reportar isso para Luanda. Provavelmente eles vão aproveitar para mandar o nosso combustível também.”
Efetivamente, passado pouco tempo viria de
Luanda a confirmação que, se tivéssemos a pista iluminada nessa noite, deveria
chegar a Luena um C-130 com 40 000 litros de combustível Jet A-1. Pedi para
levarem os dois carros do PNUD para o aeródromo nessa noite; solicitei que me
dessem as latas de leite em pó vazias que estavam no armazém; coordenei com o
diretor do aeródromo a cedência de pessoal com enxadas; e fomos para as pistas
antes do final da tarde.
- “Meus senhores, o Jet A-1 não arde particularmente
bem se estiver concentrado em estado líquido. Mas se o utilizarmos como
combustível para uma mexa de pano ficamos com uma belíssima tocha.” – Disse eu.
–"O que iremos fazer será enterrar um cartucho de 122 mm em dada 50 passos
largos, em ambos os lados da pista. No fim da pista, vamos pôr os dois carros
do PNUD com os faróis e os quatro piscas ligados, voltados contra o sentido da
aterragem, para os pilotos se aperceberem do final da faixa. No início da
pista, vamos colocar as latas grandes de leite vazias, com um pedregulho lá
dentro para não voarem. Depois vamos com o atrelado de combustível da ONU meter
um bocado de Jet A-1 nas latas e nos cartuchos. A seguir vamos procurar pedaços
de fardas e roupas abandonadas, que estão espalhados por aí em quantidade e que
são bons para servirem de mexa. Colocamos um trapo dentro de cada recipiente e,
quando a torre nos disser que as aeronaves estão em aproximação, acende-se isto
tudo! Alguém tem dúvidas?” - Perguntei. – “Não há dúvidas? Vamos ao trabalho!”
O primeiro avião a aterrar foi o
governamental. Um Dakota modernizado, com motores turboprop.
Na placa, à espera dos passageiros, estava uma comitiva civil e militar de peso. Eu fui para a torre para me certificar que nos avisavam da chegada do nosso C-130. Não houve muita demora entre as duas aeronaves. O C-130 chamou a torre, em Inglês, pedindo orientações para a pista. O controlador, que já me conhecia, passou-me o microfone porque não dominava a língua nem sabia das instalações que tínhamos feito. Ajudei o piloto a referenciar a pista, dando-lhe rumos para o aeródromo, baseado nas luzes de navegação do avião que podia ver à distância através de um par de binóculos. A aeronave aterrou, descarregou o precioso líquido para dentro dos nossos depósitos (bladders) e foi embora. Admito não ter gostado de trabalhar à noite, numa placa sem iluminação, fazendo de sinaleiro a um C-130 carregado de combustível, que rolava demasiado próximo de hangares, tendas, depósitos de bombas, campos de minas, etc.
Na placa, à espera dos passageiros, estava uma comitiva civil e militar de peso. Eu fui para a torre para me certificar que nos avisavam da chegada do nosso C-130. Não houve muita demora entre as duas aeronaves. O C-130 chamou a torre, em Inglês, pedindo orientações para a pista. O controlador, que já me conhecia, passou-me o microfone porque não dominava a língua nem sabia das instalações que tínhamos feito. Ajudei o piloto a referenciar a pista, dando-lhe rumos para o aeródromo, baseado nas luzes de navegação do avião que podia ver à distância através de um par de binóculos. A aeronave aterrou, descarregou o precioso líquido para dentro dos nossos depósitos (bladders) e foi embora. Admito não ter gostado de trabalhar à noite, numa placa sem iluminação, fazendo de sinaleiro a um C-130 carregado de combustível, que rolava demasiado próximo de hangares, tendas, depósitos de bombas, campos de minas, etc.
Enfim, …, tudo aquilo que os manuais
dizem, que não se deve fazer.
(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)
Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.
(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)
Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.
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