sexta-feira, 19 de abril de 2013

UM VOO ATRIBULADO

Luso!...”Paquito”na final de Cangamba!...
Recebido Paquito, confirme pernoita em Cangamba!..
Afirmativo!...
Continuei em aproximação à pista naquele fim de tarde, nos primeiros dias de Dezembro de 1972. Dava-me um prazer especial aterrar ao cair da noite! A calmaria e a serenidade da atmosfera a esta hora tornavam as aproximações em autenticas penas a cair no solo. Motor a trabalhar redondo, a brandura dos comandos  e o avião qual passarito dorminhoco, tocava no chão sonolento e suave.
Cangamba – foto de Orlando Coelho 
Foi por ordem do Ten. Cor. Almendra, paraquedista, que nos deslocámos a Cangamba, para ali nos ser entregue uma peça para os helis, a operar na zona do Alto Cuito , conjuntamente com os paraquedistas. Operação em larga escala de forças e meios, à qual eu dava todo e qualquer apoio com o DO 3358. O material tinha chegado a Cangamba através do Nord, pelo que, no dia seguinte ao nascer do dia, teríamos de descolar, pois os helis estavam impossibilitados de operar por falta do referido material. Jantámos e dormimos nas instalações dos sargentos. A malta do exército era por costume, nestas circunstâncias, simpática com a malta da FAP.  Havia sempre tempo e oportunidade para actualizarem as novidades da guerra já que nós nos movimentávamos por lugares diversos e sempre havia algo de novo para contar.
Foi numa conversa no bar de sargentos que veio à baila minha ligação a Bragança:- Temos cá um tipo de Bragança atirou um furriel! É o sacristão!
Isto levou a minha memória aos anos da minha adolescência, treze, catorze anos. Por ser sobrinho de padre também eu tinha andado pelas igrejas de Bragança na ajuda de celebração de missas. Assim sendo, um sacristão na idade de cumprir serviço militar só podia ser alguém do meu tempo nas andanças das igrejas brigantinas. Mostrei interesse em saber quem era: logo, alguém solícito, tratou de trazer até mim o sacristão de Cangamba!- Oh Lelo, dá cá um abraço gritei , logo que o vi! Um abraço dos verdadeiros selou o nosso encontro em terras do Leste. Estão a imaginar a alegria do Lelo em conviver “tu-cá-tu-lá”, com o amigo, piloto do avião. Sempre efusivo e palrador o meu amigo Lelo aproveitou a minha presença, em terras tão longínquas das nossas, para pôr a saudade em dia. Conversámos largos minutos e confesso que me agradou.
Eh pá, amanhã às cinco e meia da manhã tomam o pequeno almoço comigo e com o capelão! Mas.. Está combinado, nem mas, nem meio mas: pãozinho com manteiga e um cacau bem quente; espero por vós…
Sempre foi assim o Lelo. Ainda hoje, um comerciante com espaço na artéria  comercial mais movimentada de Bragança continua um amigalhaço sempre pronto a ajudar. Uma simpatia de homem.
Então até à próxima Lelo, esperam por nós no Alto Cuito! Este pequeno almoço caiu do céu. Sorte por cá e até um dia.
foto de Ribeiro da Silva

Rodas no ar , descolagem seguida de uma volta pela direita , subida até aos dois mil pés acima do solo entrada na rota prevista e aí vamos nós. O dia estava de Sol e só de longe em longe se viam umas nuvens comuns à época das chuvas.
Dez minutos de voo e começo a sentir um mau estar na zona abdominal. Mais uns segundos e sinto a primeira cólica intestinal. Logo aí senti que a coisa não ia ser passageira! Fiz uns gestos de dor com os lábios e olhei de soslaio para o Rosado. Mantinha-se calmo com olhar fixo no horizonte.
Isto está mau, disse-lhe através do rádio! Olhou para mim com algum espanto e respondeu: Mau? As nuvens estão muito longe e aquela mais escura já não devemos apanhar!
Não estou a falar do tempo, retorqui: esta merda é do cacau...
Cacau? Em Angola não há cacau, atira o Rosado olhando ao mesmo tempo para o solo na expectativa de ver alguma plantação que me estivesse a confundir!
Não há cacau?-Pois antes houvesse respondi, pensando que seria melhor estar a falar de cacau plantado que daquele que havia bebido com o amigo Lelo.
Nesta altura já eu executava uma volta  de 180 graus e regressava a Cangamba. O bom do Rosado aqui ficou confuso e já denotava um ar preocupado. Expliquei o que se estava a passar com os meus intestinos e como havia pouco tempo de voo voltávamos a Cangamba para eu  aliviar  numa casa de banho. Mas estás bem perguntou?- Sim não te preocupes, aguento até lá!
Neste pouco tempo de voo lembrei-me dos pequenos almoços que tomava antes de ir para o liceu. Por vezes, nos dias mais frios de Inverno a minha mãe dava-me chávenas  de cacau e quase sempre deu resultados lastimosos.
A pista de Cangamba estava à vista!... Quando me preparava para comunicar com a torre  do Luso, a coisa parece que  aliviou um pouco e, por não me sentir muito confortável a justificar o meu regresso a Cangamba, dei novamente uma volta de 180 graus e, agora parecendo estar melhor, ponho de novo o rumo certo e aí vamos nós para o Alto Cuito.
Estávamos agora a meio da viagem, a nuvem negra referida anteriormente parecia agora mais ameaçadora de trovoada, mas não haveria qualquer problema, um pequeno desvio na rota e passaríamos ao lado.
Uhhhhh!!! Gemi eu fazendo de seguida uma forte contracção com o ventre! Agora é que não aguento! Ah? Respondeu o Rosado com ar atarantado e olhos arregalados! Não aguento, desta vez veio com força e estou nos limites. Não aguento, não aguento!!!
Tinha de fazer qualquer coisa! Sabia por outras experiências em terra que quando apareciam estes sintomas só tinha uma solução! Aliviar…
Todos nós em momentos de aflição, temos pensamentos relâmpago e a mim, naquele momento, surgiu-me em fracções de segundo uma solução!
Já tinha ouvido os colegas do Rosado tratarem-no por “menino piloto”. Bom , pensei, se a malta trata este marmanjo por esta alcunha é possível que até tenha algum brevet civil!!! Sabes pilotar? Perguntei?
Eu vou lá atrás ao alçapão do avião evacuar!... Penso que o Rosado nesta altura já estava em pânico, mas não deu parte  de fraco!
Desaperto o cinto, enquanto com a mão esquerda controlo o avião, vou passando para trás por entre os bancos . Já de pé , por detrás do banco do piloto  e com as pernas  bem apertadas para evitar a saída de algum esguicho, disse: segura nisto e tenta ir nesta direcção, assim não te metes na nuvem! Ele pegou no “manche” com a mão esquerda sem sair do seu lugar. Notei então que não era uma posição muito própria para pilotar mesmo para um piloto experiente, mas o “ menino do avião”, ainda que apavorado, anuiu que sim com a cabeça.
Fato de voo em baixo, abro o alçapão e faço aquilo que já não podia conter mais tempo! Oh, meu Deus!!! Exclamei já com poucas forças e paciência para aguentar tamanha porcaria! Quando tento fechar o alçapão, já a fuselagem interior e o tecto  tinham sido fustigados com uma chuvada da dita cuja, tal era a ventania que passava pelo buraco.  Já estava por tudo, mas em consciência sabia que estava no ar e só tinha que resolver a situação aflitiva em que estava metido naquele momento.
Alçapão fechado, e com o fato de voo a arrastar, vou até ao lugar do piloto. Olho em frente e mais uma desgraça!  O Rosado com toda a sua boa vontade e esforço não conseguira desviar-se do “cumulo-nimbos”. Estávamos a poucos segundos de entrar nele. Não pensei mais, salto para o banco, cuecas e fato de voo em baixo, rasgo a pasta dos mapas de navegação, coloco-a debaixo e ali acabo de aliviar. Entretanto, segurei no manche e com uma volta mais ou menos apertada consegui desviar-me da trovoada.
O ambiente na cabine a partir de agora estava insuportável!  O Rosado tentava animar-me mas sentia-se impotente. Eu tentava animá-lo e transmitir-lhe confiança. Não te preocupes deixa-me pensar um pouco e respirar fundo ,pois é do que estou a precisar neste momento.
O voo continuava normalmente, eu sentado sobre uma espécie de massa gelatinosa que dava um desconforto inimaginável, mas agora sem cólicas e aparentemente sem mais diarreia. Depois de alguns minutos e já a poucas milhas do Alto Cuito , disse: menino!... Agora temos pessoal  nosso e do exército à espera na pista. Aguardam pela nossa chegada e temos de resolver a maneira de esconder esta bodeguice! O Rosado mostrava-se colaborante com sinais de cabeça, mas ainda estava desconfiado das  minhas capacidades físicas. Vais bem?-Perguntava com voz de alguma preocupação. Vou e vamos fazer o seguinte: o pessoal espera-nos na placa . Mesmo que o vento esteja contrário vou fazer uma aterragem curta e pàro o avião no extremo oposto; desligo o motor e temos de limpar esta” bugiganga” antes de eles se aproximarem.
Não vais fazer merda? Perguntou o Rosado já a temer que a aterragem curta desse em asneira. Não, não vou fazer merda , já não tenho mais para fazer, está toda dentro do avião! Aqui o Rosado mostrou um leve sorriso e pareceu mais animado com a ironia da minha resposta.

Pista do Alto Cuito – foto de Gonçalo de Carvalho

A pista do Alto Cuito surgiu poucos momentos depois. Lá estava o pessoal com duas viaturas do exército na pequena placa à nossa espera. Uma volta por cima e toca de preparar a aterragem no lado oposto conforme tinha planeado. Vamos a isto Rosado: fiz os cálculos que me pareceram mais adequados e aí entrámos nós na final. Flaps em baixo, motor com potência adequada, final baixa e 55 nós. Senti-me bem e confiante: a pista cada vez mais próxima. Cá está! Dois metros acima do solo e início da pista a dez, quinze metros: cortei o motor e “catrapuz”, rodas mesmo no início da faixa. Travões com a dose adequada à ocasião e 60 metros depois o avião parou. Desligar motor e saltar para fora em direcção ao capim. Já ali com a faca de mato que sempre usava, corto a roupa interior e começo a limpar-me. Lá ao fundo a malta que nos esperava abanava os braços: notava-se pelos gestos que estavam ansiosos por saber o que se estava a passar. Já meio composto dirigi-me para o avião. Ali, o Rosado numa colaboração de grande companheirismo, tinha recolhido alguma gasolina da torneira da purga situada por baixo das asas. Procurou nas traseiras do avião desperdícios que sempre havia nas aeronaves e começámos de imediato a fazer a limpeza no interior. Toca a despachar, que eles não tardam aí! E assim foi, passados dois minutos no máximo, começo a ver o pessoal a dirigir-se para nós ao longo da pista.
Não sei se foi o libertar do “stress” porque tínhamos passado ou a vergonha de aparecer perante eles numa triste figura, o certo é que quando chegaram junto de nós já tínhamos a coisa mais ou menos “arrumada”. Não me digas que vinhas à rasca da bexiga perguntou o Xixas (piloto de heli) com aquele tom sarcástico e malandro que ainda hoje mantém! Foi isso, disse eu a sorrir… Sigam para a placa que vou pôr isto a funcionar e já estaciono . Com esta conversa ganhei mais uns minutos para que , com a gasolina e os desperdícios  o  trabalho de limpeza fosse dado como findo, pois não se devia notar nada quando o mecânico dos helis recolhesse as peças que estavam dentro do avião.
Enquanto rolava mansamente em direcção à placa, agradeci ao “menino piloto” a grande ajuda que me deu em situação tão insólita: poucas palavras mas segurei-lhe a mão e apertei-a com toda a força. Notei que sentiu naquele gesto todo o agradecimento que não lhe consegui transmitir na altura por palavras. Ainda hoje, quando nos encontramos nos convívios habituais e  vem à baila esta história nunca deixo de lhe agradecer publicamente os gestos de camaradagem e companheirismo que me manifestou  naquele dia. Foi a partir desta missão que a nossa convivência em terras do Leste se tornou mais assídua, já que sempre que nos era possível tentávamos fazer destacamentos juntos. Mais uma vez, obrigado Rosado.
Chegados à placa e com o avião já parado o MMA dos helis abriu a porta, apanhou  as peças por que esperava , dirigiu-se ao Rosado e alertou: verifica bem o avião, cheira a gasolina que tresanda! Já vou tratar disso responde-lhe o Rosado, olhando-me com um sorriso matreiro!

Banho “purificador” no Tempué – foto de José Carvalho

Quando me sentei no jeep do exército, que me devia levar ao quartel, pedi ao condutor para me levar até ao rio. Ali, nas límpidas águas do Tempué, afluente do Cuanavale, havia uma pequena “represa” onde ao final do dia costumávamos tomar umas banhocas. O Xixas lembra-se bem deste local paradisíaco, pois já ali deixara dias antes , parte da pele das nádegas que um inoportuno escaldão assim o quis: Venha buscar-me daqui a meia hora se fizer favor: o condutor arrancou e, de imediato, ficando tal qual vim ao mundo, mergulhei nas águas do rio. Que alívio meu Deus, que alívio…
Até hoje nunca mais bebi cacau!!!
Nota:
Escrevi esta história porque penso ser muito rara, senão única nos milhares de    voos que se fizeram durante a guerra do ultramar. Tocou-me a mim!!!
Feliz por ainda andar por cá para poder narrá-la. Espero não vos ter maçado em demasia. Um forte abraço a todos os meus companheiros da FAP no Leste de Angola.