Recebido Paquito, confirme pernoita em Cangamba!..
Afirmativo!...
Continuei em aproximação à pista
naquele fim de tarde, nos primeiros dias de Dezembro de 1972. Dava-me um prazer
especial aterrar ao cair da noite! A calmaria e a serenidade da atmosfera a esta
hora tornavam as aproximações em autenticas penas a cair no solo. Motor a
trabalhar redondo, a brandura dos comandos
e o avião qual passarito dorminhoco, tocava no chão sonolento e suave.
Cangamba – foto de Orlando Coelho |
Foi por ordem do Ten. Cor. Almendra, paraquedista,
que nos deslocámos a Cangamba, para ali nos ser entregue uma peça para os
helis, a operar na zona do Alto Cuito , conjuntamente com os paraquedistas.
Operação em larga escala de forças e meios, à qual eu dava todo e qualquer
apoio com o DO 3358. O material tinha chegado a Cangamba através do Nord, pelo
que, no dia seguinte ao nascer do dia, teríamos de descolar, pois os helis
estavam impossibilitados de operar por falta do referido material. Jantámos e dormimos nas instalações dos
sargentos. A malta do exército era por costume, nestas circunstâncias,
simpática com a malta da FAP. Havia
sempre tempo e oportunidade para actualizarem as novidades da guerra já que nós
nos movimentávamos por lugares diversos e sempre havia algo de novo para
contar.
Foi numa conversa no bar de sargentos
que veio à baila minha ligação a Bragança:- Temos cá um tipo de Bragança atirou
um furriel! É o sacristão!
Isto levou a minha memória aos anos da
minha adolescência, treze, catorze anos. Por ser sobrinho de padre também eu
tinha andado pelas igrejas de Bragança na ajuda de celebração de missas. Assim
sendo, um sacristão na idade de cumprir serviço militar só podia ser alguém do
meu tempo nas andanças das igrejas brigantinas. Mostrei interesse em saber quem
era: logo, alguém solícito, tratou de trazer até mim o sacristão de Cangamba!-
Oh Lelo, dá cá um abraço gritei , logo que o vi! Um abraço dos verdadeiros
selou o nosso encontro em terras do Leste. Estão a imaginar a alegria do Lelo
em conviver “tu-cá-tu-lá”, com o amigo, piloto do avião. Sempre efusivo e
palrador o meu amigo Lelo aproveitou a minha presença, em terras tão longínquas
das nossas, para pôr a saudade em dia. Conversámos largos minutos e confesso
que me agradou.
Eh pá, amanhã às cinco e meia da manhã
tomam o pequeno almoço comigo e com o capelão! Mas.. Está combinado, nem mas,
nem meio mas: pãozinho com manteiga e um cacau bem quente; espero por vós…
Sempre foi assim o Lelo. Ainda hoje, um
comerciante com espaço na artéria comercial mais movimentada de Bragança
continua um amigalhaço sempre pronto a ajudar. Uma simpatia de homem.
Então até à próxima Lelo, esperam por
nós no Alto Cuito! Este pequeno almoço caiu do céu. Sorte por cá e até um dia.
foto de Ribeiro da Silva |
Rodas no ar , descolagem seguida de uma volta pela direita ,
subida até aos dois mil pés acima do solo entrada na rota prevista e aí vamos
nós. O dia estava de Sol e só de longe em longe se viam umas nuvens comuns à
época das chuvas.
Dez minutos de voo e começo a sentir um
mau estar na zona abdominal. Mais uns segundos e sinto a primeira cólica
intestinal. Logo aí senti que a coisa não ia ser passageira! Fiz uns gestos de
dor com os lábios e olhei de soslaio para o Rosado. Mantinha-se calmo com olhar
fixo no horizonte.
Isto está
mau, disse-lhe através do rádio! Olhou para mim com algum espanto e respondeu:
Mau? As nuvens estão muito longe e aquela mais escura já não devemos apanhar!
Não estou a
falar do tempo, retorqui: esta merda é do cacau...
Cacau? Em Angola não há cacau, atira o Rosado olhando ao
mesmo tempo para o solo na expectativa de ver alguma plantação que me estivesse
a confundir!
Não há cacau?-Pois antes houvesse respondi, pensando que
seria melhor estar a falar de cacau plantado que daquele que havia bebido com o
amigo Lelo.
Nesta altura já eu executava uma volta de 180 graus e regressava a Cangamba. O bom
do Rosado aqui ficou confuso e já denotava um ar preocupado. Expliquei o que se
estava a passar com os meus intestinos e como havia pouco tempo de voo voltávamos
a Cangamba para eu aliviar numa casa de banho. Mas estás bem perguntou?-
Sim não te preocupes, aguento até lá!
Neste pouco tempo de voo lembrei-me dos
pequenos almoços que tomava antes de ir para o liceu. Por vezes, nos dias mais
frios de Inverno a minha mãe dava-me chávenas
de cacau e quase sempre deu resultados lastimosos.
A pista de Cangamba estava à vista!... Quando me preparava
para comunicar com a torre do Luso, a
coisa parece que aliviou um pouco e, por
não me sentir muito confortável a justificar o meu regresso a Cangamba, dei
novamente uma volta de 180 graus e, agora parecendo estar melhor, ponho de novo
o rumo certo e aí vamos nós para o Alto Cuito.
Estávamos agora a meio da viagem, a
nuvem negra referida anteriormente parecia agora mais ameaçadora de trovoada,
mas não haveria qualquer problema, um pequeno desvio na rota e passaríamos ao
lado.
Uhhhhh!!! Gemi eu fazendo de seguida uma
forte contracção com o ventre! Agora é que não aguento! Ah? Respondeu o Rosado
com ar atarantado e olhos arregalados! Não aguento, desta vez veio com força e
estou nos limites. Não aguento, não aguento!!!
Tinha de fazer qualquer coisa! Sabia
por outras experiências em terra que quando apareciam estes sintomas só tinha
uma solução! Aliviar…
Todos nós em momentos de aflição, temos pensamentos relâmpago
e a mim, naquele momento, surgiu-me em fracções de segundo uma solução!
Já tinha ouvido os colegas do Rosado tratarem-no por “menino
piloto”. Bom , pensei, se a malta trata este marmanjo por esta alcunha é
possível que até tenha algum brevet civil!!! Sabes pilotar? Perguntei?
Eu vou lá
atrás ao alçapão do avião evacuar!... Penso que o Rosado nesta altura já estava
em pânico, mas não deu parte de fraco!
Desaperto o cinto, enquanto com a mão
esquerda controlo o avião, vou passando para trás por entre os bancos . Já de
pé , por detrás do banco do piloto e com
as pernas bem apertadas para evitar a
saída de algum esguicho, disse: segura nisto e tenta ir nesta direcção, assim
não te metes na nuvem! Ele pegou no “manche” com a mão esquerda sem sair do seu
lugar. Notei então que não era uma posição muito própria para pilotar mesmo
para um piloto experiente, mas o “ menino do avião”, ainda que apavorado, anuiu
que sim com a cabeça.
Fato de voo em baixo, abro o alçapão e
faço aquilo que já não podia conter mais tempo! Oh, meu Deus!!! Exclamei já com
poucas forças e paciência para aguentar tamanha porcaria! Quando tento fechar o
alçapão, já a fuselagem interior e o tecto tinham sido fustigados com uma chuvada da dita
cuja, tal era a ventania que passava pelo buraco. Já estava por tudo, mas em consciência sabia
que estava no ar e só tinha que resolver a situação aflitiva em que estava
metido naquele momento.
Alçapão fechado, e com o fato de voo a arrastar, vou até ao
lugar do piloto. Olho em frente e mais uma desgraça! O Rosado com toda a sua boa vontade e esforço
não conseguira desviar-se do “cumulo-nimbos”. Estávamos a poucos segundos de
entrar nele. Não pensei mais, salto para o banco, cuecas e fato de voo em
baixo, rasgo a pasta dos mapas de navegação, coloco-a debaixo e ali acabo de
aliviar. Entretanto, segurei no manche e com uma volta mais ou menos apertada
consegui desviar-me da trovoada.
O ambiente na cabine a partir de agora
estava insuportável! O Rosado tentava
animar-me mas sentia-se impotente. Eu tentava animá-lo e transmitir-lhe
confiança. Não te preocupes deixa-me pensar um pouco e respirar fundo ,pois é
do que estou a precisar neste momento.
O voo continuava normalmente, eu
sentado sobre uma espécie de massa gelatinosa que dava um desconforto
inimaginável, mas agora sem cólicas e aparentemente sem mais diarreia. Depois
de alguns minutos e já a poucas milhas do Alto Cuito , disse: menino!... Agora
temos pessoal nosso e do exército à
espera na pista. Aguardam pela nossa chegada e temos de resolver a maneira de
esconder esta bodeguice! O Rosado mostrava-se colaborante com sinais de cabeça,
mas ainda estava desconfiado das minhas
capacidades físicas. Vais bem?-Perguntava com voz de alguma preocupação. Vou e
vamos fazer o seguinte: o pessoal espera-nos na placa . Mesmo que o vento
esteja contrário vou fazer uma aterragem curta e pàro o avião no extremo
oposto; desligo o motor e temos de limpar esta” bugiganga” antes de eles se
aproximarem.
Não vais
fazer merda? Perguntou o Rosado já a temer que a aterragem curta desse em
asneira. Não, não vou fazer merda , já não tenho mais para fazer, está toda
dentro do avião! Aqui o Rosado mostrou um leve sorriso e pareceu mais animado
com a ironia da minha resposta.
Pista do Alto Cuito – foto de Gonçalo de Carvalho
|
A pista do Alto Cuito surgiu poucos momentos depois. Lá
estava o pessoal com duas viaturas do exército na pequena placa à nossa espera.
Uma volta por cima e toca de preparar a aterragem no lado oposto conforme tinha
planeado. Vamos a isto Rosado: fiz os cálculos que me pareceram mais adequados
e aí entrámos nós na final. Flaps em baixo, motor com potência adequada, final
baixa e 55 nós. Senti-me bem e confiante: a pista cada vez mais próxima. Cá
está! Dois metros acima do solo e início da pista a dez, quinze metros: cortei
o motor e “catrapuz”, rodas mesmo no início da faixa. Travões com a dose
adequada à ocasião e 60 metros depois o avião parou. Desligar motor e saltar
para fora em direcção ao capim. Já ali com a faca de mato que sempre usava,
corto a roupa interior e começo a limpar-me. Lá ao fundo a malta que nos esperava
abanava os braços: notava-se pelos gestos que estavam ansiosos por saber o que
se estava a passar. Já meio composto dirigi-me para o avião. Ali, o Rosado numa
colaboração de grande companheirismo, tinha recolhido alguma gasolina da
torneira da purga situada por baixo das asas. Procurou nas traseiras do avião
desperdícios que sempre havia nas aeronaves e começámos de imediato a fazer a
limpeza no interior. Toca a despachar, que eles não tardam aí! E assim foi,
passados dois minutos no máximo, começo a ver o pessoal a dirigir-se para nós
ao longo da pista.
Não sei se foi o libertar do “stress”
porque tínhamos passado ou a vergonha de aparecer perante eles numa triste
figura, o certo é que quando chegaram junto de nós já tínhamos a coisa mais ou
menos “arrumada”. Não me digas que vinhas à rasca da bexiga perguntou o Xixas
(piloto de heli) com aquele tom sarcástico e malandro que ainda hoje mantém!
Foi isso, disse eu a sorrir… Sigam para a placa que vou pôr isto a funcionar e
já estaciono . Com esta conversa ganhei mais uns minutos para que , com a
gasolina e os desperdícios o trabalho de limpeza fosse dado como findo,
pois não se devia notar nada quando o mecânico dos helis recolhesse as peças
que estavam dentro do avião.
Enquanto rolava mansamente em direcção
à placa, agradeci ao “menino piloto” a grande ajuda que me deu em situação tão
insólita: poucas palavras mas segurei-lhe a mão e apertei-a com toda a força. Notei
que sentiu naquele gesto todo o agradecimento que não lhe consegui transmitir
na altura por palavras. Ainda hoje, quando nos encontramos nos convívios
habituais e vem à baila esta história
nunca deixo de lhe agradecer publicamente os gestos de camaradagem e
companheirismo que me manifestou naquele
dia. Foi a partir desta missão que a nossa convivência em terras do Leste se
tornou mais assídua, já que sempre que nos era possível tentávamos fazer destacamentos
juntos. Mais uma vez, obrigado Rosado.
Chegados à placa e com o avião já parado
o MMA dos helis abriu a porta, apanhou as peças por que esperava , dirigiu-se ao
Rosado e alertou: verifica bem o avião, cheira a gasolina que tresanda! Já vou
tratar disso responde-lhe o Rosado, olhando-me com um sorriso matreiro!
Banho “purificador” no Tempué – foto de José Carvalho
|
Quando me sentei no jeep do exército, que me devia levar ao
quartel, pedi ao condutor para me levar até ao rio. Ali, nas límpidas águas do Tempué, afluente do Cuanavale, havia uma pequena “represa” onde ao final do dia costumávamos tomar umas
banhocas. O Xixas lembra-se bem deste local paradisíaco, pois já ali deixara
dias antes , parte da pele das nádegas que um inoportuno escaldão assim o quis:
Venha buscar-me daqui a meia hora se fizer favor: o condutor arrancou e, de
imediato, ficando tal qual vim ao mundo, mergulhei nas águas do rio. Que alívio
meu Deus, que alívio…
Até hoje nunca mais bebi cacau!!!
Nota:
Escrevi esta história porque penso ser muito rara, senão
única nos milhares de voos que se
fizeram durante a guerra do ultramar. Tocou-me a mim!!!
Feliz por ainda andar por cá para poder narrá-la. Espero não
vos ter maçado em demasia. Um forte abraço a todos os meus companheiros da FAP
no Leste de Angola.
Gostei imenso da narrativa, por ser decerto única, e por estar extremamente bem descrita.
ResponderEliminarSérgio Durães
OPC 1/68
...Sim!Penso que deve ser única,Corredeira.Eu tive uma mais tarde,já depois do 25 A,onde me aconteceu o seguinte;Estando eu a fazer um transporte de pessoal da UNITA,do Massive para o Luso,transportando o Jonas M. Savimbe e o N'zau Puna,seu Cte em chefe, acompanhado pelo Costa,MMA,com o qual tenho algumas missões e peripécia que ele pode contar se assim o quiser.Trazíamos também a guarda pessoal dos dignitários,estes vinham no banco de trás e um deles vinha mesmo agarrado à minha cadeira!A viagem era à volta de 50 minutos.Habitualmente já saíamos tarde do Massive porque eu,como "gringo"facilitava nos ATDs,eles pediam sempre para ficar mais um pouco,ou porque faltava fazer qualquer coisa ou porque era preciso falar com alguém que ainda não tinha chegado,enfim,à boa maneira Africana,que eu até compreendia e não me fazia rogado. Noite fechada, uma Lua cheia iluminava a chana como só em África.A descolagem às 19h30 foi feita na calmaria de uma noite tranquila e por nossa conta.O segurança que viajava atrás de mim ia agarrado à minha cadeira com as duas mãos,pensando eu que ele ia fascinado com as luzes avermelhadas das instrumentação do AL-III,que diga-se de passagem,parecia uma a"boite"do "pica notas"ou pica-pau,como queiram.Mas, afinal ele vinha era com um cagaço daqueles,era a 1ª vez que andava pendurado e ainda por cima de noite!!! indisposto,sem alternativa manda a carga ao mar para a frente e quem lhe serviu de babete foi a gola do meu fato de voo,serindo as minhas costa de saco de enjoo. Começo por sentir um liquido quente e as bolas de "funji"que havia comido a descerem pelas costa e de seguida aquele cheiro a azedo perfumado.Lá tive que me aguentar até ao Luso,dizendo ao Costa pelo rádio o que me estava a acontecer...ficando entre nós o sucedido,pois o coitado se fosse denunciado era capaz de pagar caro...para exemplo!
ResponderEliminarGrande abraço.
Precisam de conhecer a estória do sr Bispo transportado em DO27 sendo piloto o já falecido Gen. Carrilho (então Ten.) Também foi escrita, se não estou em erro, no "Boletim da AFAP". Intitulou o escrito "o voo da M...."! Ilariante pela "turbulência" provocada pela corrente de ar quando o mecânico, ajudando Sua Eminencia, abriu um pouco a porta!
EliminarVale um livro a contar as aventuras. Um abraço.
ResponderEliminarJúlio, sei dessa tua aventura do "cacau"... Nunca é demais relembrar... Viver é bom. Obrigado. SS - mma
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