sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

NORD AVIATION N-2501 e N-2502 NORATLAS


Tipo de aeronave
Avião bimotor terrestre, de trem de aterragem triciclo retráctil, monoplano de asa alta, bifuselado, revestimento metálico, cabina integrada na fuselagem, destinado a transporte militar a média distância.
Tripulação: 5 (2 pilotos, mecânico, navegador e operador de rádio).
Construtor
Nord Aviation/França. Sob licença: Weserflugzeugban & Siebelwerke, ATG/Alemanha.
Motopropulsor
N-2501: Motores (2): Bristol Hércules 758 ou 759 de 14 cilindros radiais, em dupla estrela, arrefecidos por ar, de 2.040 hp.
Hélices: Metálicos, de quatro pás, passo variável, posição de bandeira e reversível.
N-2502: Motores (2): iguais ao anterior.
Reactores auxiliares (2): Turbomeca Marboré de 400 Kg de impulsão.
Hélices: Metálicos, de quatro pás, passo variável e posição de bandeira.
Dimensões
Envergadura
(N-2501)         32,50 m
(N-2502)         33,60 m
Comprimento 21,96 m
Altura                6,00 m
Área alar       101,20 m2
Pesos
Peso vazio
(N-2501)         13.075 Kg
(N-2502)         13.657 Kg
Peso máximo
(N-2501)         22.020 Kg
(N-2502)         23.020 Kg
Performances
Velocidade máxima               405 Km/h
Velocidade de cruzeiro          322 Km/h
Tecto de serviço                    7.100 m
Distância máxima de voo      2.500 Km
Armamento
Nenhum.
Capacidade de transporte
32 passageiros; ou Carga até 3.800 Kg (N-2501); 5.800 Kg (N-2502).

RESUMO HISTÓRICO
O Nord N-2501 Noratlas, concebido pela Nord Aviation (mais tarde absorvida pela Aerospatiale), foi o avião de transporte militar para médias distâncias mais utilizado nos anos cinquenta a setenta pelas Força Aérea Francesa, Aviação Naval Francesa e Força Aérea Alemã. O primeiro protótipo, designado N-2500, realizou o voo inicial em 10 de Setembro de 1949. O protótipo do modelo N-2501, que realizou o primeiro voo no dia 27 de Novembro de 1950, despenhou-se no solo em 1952, vitimando os tripulantes. Apesar deste contratempo, o programa prosseguiu com normalidade. No dia 9 de Janeiro de 1953, a viúva do piloto que morreu no acidente do protótipo baptizou o N-2501 de Noratlas.
O Noratlas era um daqueles aviões de desenho muito dirigido para a finalidade: um “caixote” de bordos arredondados, com uma grande porta na parte traseira, a toda a largura do compartimento da carga, as asas colocadas na parte superior, dois motores radiais cujos fusos se prolongavam para trás e terminavam nos estabilizadores verticais, ligados entre si pelo estabilizador horizontal, formando um conjunto de cauda alto, desimpedindo o acesso à porta traseira. Os hélices de passo variável, com posição de bandeira, tinham também sistema de reverso, o que permitia a sua utilização em pistas curtas. Era um avião simples, prático e seguro.
Em 25 de Junho de 1953, a Nord Aviation entregou à Força Aérea Francesa (Armée de l’Air) o último exemplar de uma encomenda de 34, cumprindo o prazo acordado. Foram então encomendados mais 174 aviões, de um total previsto de 208. A maior parte destes aviões foi utilizada no transporte de carga militar e largada de pára-quedistas.
Quando, em 1962, terminou o envolvimento militar francês na Argélia, cerca de uma dezena de N-2501 foram transformados em plataformas de guerra electrónica, recebendo a designação de Nord Gabriel, que a Armée de l’Air manteve operacionais até 1989.
Em 1956, a Força Aérea Alemã (Luftwaffe) encomendou 186 exemplares, dos quais 25 foram construídos em França e os restantes na Alemanha Ocidental pela Weserflugzeugbau & Siebelwerke, ATG., com a designação Nord N-2501D Noratlas.
Muitos destes aviões foram postos à venda em 1964. A Força Aérea Israelita (IAF) adquiriu seis N-2501 franceses e 16 N-2501D alemães, que utilizou na «Guerra dos Seis Dias» (5 a 11 de Junho de 1967), essencialmente como transporte de carga e de militares e em largada de pára-quedistas. Contudo, foi divulgado que também os utilizaram em reconhecimento marítimo e bombardeamento. A IAF começou a desfazer-se dos Noratlas a partir de 1978, cedendo-os à Força Aérea Helénica, que já dispunha de uma frota de 50 N-2501D, recebidos da Alemanha Ocidental. Estes aviões estiveram envolvidos em operações miliares quando, em Julho de 1974, a Turquia invadiu Chipre.
O bom desempenho destes aviões militares despertou o interesse de algumas companhias de aviação comercial, necessitadas de um avião cargueiro capaz de transportar cargas volumosas e, ao mesmo tempo, conversível em transporte de passageiros ou misto. Contudo, para poder ser explorado comercialmente, necessitava de aumentar a disponibilidade de transporte em mais 2.000 kg. Tratava-se essencialmente de um problema técnico de potência dos motores, dado que o avião podia operar com o peso considerado rentável mas, no caso de uma falha de motor à descolagem, não conseguiria manter o voo. O modelo seguinte, designado N-2502 Noratlas, é a solução do problema. Dois pequenos reactores auxiliares, colocados nos extremos das asas, permitiam o transporte da carga desejada cumprindo as normas de segurança. Em contrapartida, foi-lhes retirado o sistema de reverso dos hélices. Cabe referir que os reactores auxiliares só eram utilizados nas descolagens, prevenindo a possibilidade da paragem de um dos motores principais, sendo desligados quando se alcançava a altitude considerada segura. Não se pode dizer que os motores principais eram “verdadeiramente convencionais”, dado que as válvulas de admissão e escape eram substituídas pelas camisas rotativas dos cilindros. O protótipo do N-2502 voou pela primeira vez no dia 1 de Junho de 1955.
Contam-se entre as companhias de transporte aéreo que utilizaram os N-2502, a Air Algérie (Argélia), a Cibao Cargo Airways (República Dominicana), Aerotaxis Ecuatorianos (Equador), a Elbflug (Alemanha), a Guila Air (Zaire) e as ACE/Tranvalair, Union des Transports Aériens e Union Aeromaritime du Transport (França). O sucesso dos aviões militares não teve continuação no desempenho civil, o que se torna evidente pelo reduzido número de operadores civis e de aeronaves N-2502 produzidas, que foi inferior a duas dezenas.
Os operadores militares dos Noratlas foram a Alemanha, Angola, Djibouti, França, Grécia, Israel, Moçambique, Niger, Nigéria, Portugal, Ruanda e Uganda.
Os N-2501 militares franceses estiveram presentes na «campanha do Suez», em 1956.

NORD AVIATION N-2501 E N-2502 NORATLAS EM PORTUGAL


Quantidade: 28.
Utilizador: Força Aérea Portuguesa.
Período de utilização: 1960 a 1976.
Em 1960, uma das lacunas na frota da Força Aérea Portuguesa (FAP) era a falta de aviões de transporte médio, tanto mais que os acontecimentos nos países vizinhos dos Territórios Portugueses em África faziam prever o que veio a acontecer a partir de 1961.
Em 1960, a companhia civil francesa Union Aeromaritime des Transports (UAT) colocou à venda seis aviões Nord Aviation N-2502A Noratlas, que se encontravam destacados na República dos Camarões. O Governo Português adquiriu esses aviões. No dia 8 de Agosto de 1960 aterraram na Base Aérea N.º 2 (BA 2), Ota, os primeiros dois aviões desta aquisição. Ainda nesse mês chegaram mais dois e em Novembro e Dezembro os restantes.
Foram-lhes atribuídas as matrículas da FAP, que correspondiam aos números de construção indicados entre parêntesis: 6401 (113), 6402 (108), 6403 (197), 6404 (180), 6405 (193) e 6406 (038). Com estas seis unidades, constituiu-se na BA 2, a Esquadra de Transporte Médio, destinada ao Ultramar. A BA 9, Luanda, recebeu o primeiro N-2502 Noratlas (6403) no dia 8 de Setembro de 1960. Em Março de 1961 já dispunha dos seis aviões, agrupados na Esquadra 92.
Satisfeito com o rendimento operacional e perante a necessidade de mais aviões deste tipo, o Governo Português, em princípios de 1961, encomendou à Nord Aviation a construção de seis N-2502 Noratlas. Como a linha de fabrico já se encontrava encerrada, a sua reabertura onerou a produção. O fabricante designou estes seis aviões por N-2502F Noratlas.
Para amenizar os custos ou por uma questão de uniformização, foram equipados nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), Alverca, com instrumentos e aviónicos excedentes dos North American T-6 Texan, resultando em aviões absolutamente novos com equipamentos electrónicos e instrumentos antiquados. O primeiro chegou a Portugal em Dezembro de 1961 e os restantes em Janeiro, Fevereiro, Abril, Maio e Julho do ano seguinte. A FAP numerou-os de 6407 a 6412, correspondendo aos números de construção de 001F a 006F, respectivamente. Os seis N-2502F Noratlas destinaram-se à BA 10, Beira, Moçambique, que os começou a receber a partir de Setembro de 1962. Equiparam a Esquadra 102, integrada no Grupo Operacional 1001.
Também em 1962, a Air Algérie vendeu a Portugal os seus únicos três N-2502B que receberam as matrículas da FAP 6413 (número de construção 148B), 6414 (149B) e 6415 (206B). Estes três aviões foram colocados na Esquadra 102 da BA 10, que assim passou a dispor de nove unidades.
Entretanto, as OGMA especializaram-se nas grandes revisões gerais aos Noratlas, trabalho que já há alguns anos realizava nos aviões da Luftwaffe, o que em muito contribuiu para a boa e rápida assistência aos aviões portugueses, dada a grande facilidade em ferramentas especiais e quantidade de peças sobresselentes. As grandes revisões de manutenção dos Noratlas que operavam no Ultramar foram sempre executadas nas OGMA, o que obrigava à sua deslocação desde Moçambique e Angola até Alverca e vice-versa. A hostilidade dos países africanos em relação a Portugal tornava impensável qualquer escala técnica nos seus territórios. Desta forma, a rota era obrigatoriamente feita através de escalas em território nacional.
Os aviões da Base da Beira faziam escalas em Luanda, cujo troço obrigava a um pequeno desvio para não sobrevoar a Zâmbia, depois na Ilha de S. Tomé, Ilha do Sal em Cabo Verde, Las Palmas nas Ilhas Canárias, único território estrangeiro incluído na rota, uma vez que Espanha não levantava problemas e, finalmente, Lisboa. No regresso a África, depois da Ilha do Sal seguia-se para Bissau, na Guiné, e daí para S. Tomé. Depois Luanda e, se fosse o caso, Beira. O troço entre S. Tomé e a Ilha do Sal ou da Guiné para S. Tomé era o de maior risco. Contornava-se a costa de África, transportando no interior do avião cinco depósitos suplementares de combustível, a partir dos quais se reabasteciam os depósitos normais, para ser possível cobrir as onze horas de voo necessárias para chegar ao destino. A escassez de ajudas-rádio na região obrigava a uma navegação um pouco “à Vasco da Gama”, ainda que os navegadores aplicassem a fundo os seus conhecimentos de navegação astronómica, pouco eficiente durante o dia. Eram viagens de alto risco, tendo em conta que se tratava de um bimotor de transporte médio. A rota era toda sobre o mar, sem quaisquer hipóteses de apoio. No caso de acontecer alguma avaria grave, só havia duas hipóteses: amarar, com consequências imprevisíveis ou aterrar num país hostil, onde os tripulantes seriam presos e, a partir daí, tudo poderia acontecer. Como se isto não fornecesse emoção suficiente, havia que conjugar o horário com a actividade da Frente Inter-Tropical (FIT), para a atravessar nas horas de menor actividade. Mesmo assim, encontrava-se sempre nuvens e turbulência severa, situação incontornável para um avião limitado a voar a altitudes que não ultrapassavam os três mil e quinhentos metros, não só pelas suas condições técnicas de voo, como pela ausência de sistema de oxigénio. Apesar de tudo isto, nas muitas viagens que fizeram durante uma dúzia de anos, os aviões chegaram sempre ao destino, algumas vezes em situações bem difíceis, que mereciam melhor divulgação e que enriqueceriam a História da FAP.
Entre 1965 e 1970, a FAP recebeu 14 N-2501D Noratlas da Luftwaffe. Uma das aeronaves recebidas não foi incluída na frota, tendo sido “canibalizada”, fornecendo peças às restantes. A atribuição dos números de matrícula destes aviões não se processou como é habitual. O número 6416 foi atribuído, em Setembro de 1965, ao avião com o número de construção (n/c) D048 que, em Novembro de 1966, retornou à Alemanha, sendo nessa data substituído por outro com o n/c D045, que recebeu a matrícula 6416. O avião número 6417 tinha o n/c D059. O número 6418 foi atribuído, em Novembro de 1965, a um avião cujo n/c é desconhecido e que em Novembro de 1969 foi devolvido à Alemanha por troca com outro, com o n/c D054, para o qual foi transferido o número de matrícula 6418. O 6419 tinha o n/c D044. Com o número 6420 também se verificaram alterações. Atribuído em Novembro de 1965 a um avião com n/c desconhecido, em Novembro de 1969 foi atribuído a outro, com o n/c D032. Os números de matrículas seguintes, de 6421 a 6428, foram atribuídos de forma definitiva, com a seguinte correspondência com os números de construção: 6421 (n/c D047), 6422 (D050), 6423 (D051), 6424 (D053), 6425 (D056), 6426 (D098), 6427 (D104) e 6428 (D116).
Quase todos estes N-2501D foram enviados para o Ultramar, para a BA 9 e a BA 10. A BA 12, Bissalanca, operou dois N-2501D, integrados na Esquadra 123. Alguns foram entregues à Esquadra 32 da BA 3, Tancos, tendo em vista a substituição dos vetustos Junkers Ju-52/3m. Passaram a executar as missões de lançamento de pára-quedistas e de formação de tripulações.
Depois da independência dos Territórios Ultramarinos Portugueses, os novos Estados receberam alguns aviões Noratlas. A República Popular de Angola recebeu os 6401, 6407, 6413, 6415 (D2-EPF), 6416, 6424 (D2-EPT) e 6425 (D2-EPY), enquanto que a República Popular de Moçambique recebeu os 6409 (C9-ARC), 6412 (C9-ARD), 6421 (C9-ARE), 6423 (C9-ARH), 6426 (C9-ARJ), 6427 (C9-ARK) e 6428 (C9-ARI). Como as grandes revisões de manutenção eram executadas nas OGMA a expensas dos novos proprietários das aeronaves, a falta do respectivo pagamento fez com que alguns aviões retornassem à FAP. O 6409 foi abandonado em Moçambique.
Os que continuaram na FAP foram colocados na Esquadra 32 da BA 3. Segundo informação fidedigna, em 1975 a Esquadra 32 operava os Nord Aviation N-2501D Noratlas com os números 6416, 6421, 6423, 6424, 6425. Admite-se a existência de mais um ou dois aviões em inspecção geral.
Alguns Noratlas ficaram destruídos em acidentes: o 6410 sofreu um acidente no dia 4 de Julho de 1973, no Toto, Angola; o 6411 ficou destruído no dia 2 de Maio de 1973 em Mueda, Moçambique, causando a morte a todos os tripulantes; o 6414 nunca foi recuperado de uma aterragem de emergência que efectuou em 13 de Junho de 1967 na praia do Xaxai, Moçambique; e o 6422 ficou destruído num brutal acidente ocorrido perto da Base de Tancos no dia 26 de Setembro de 1975, vitimando os 11 ocupantes. O 6419 sofreu danos devido a uma acção de sabotagem em 1975, quando se encontrava estacionado no Aeroporto do Funchal, Ilha da Madeira, tendo sido abandonado.
Os N-2501 e N-2502 Noratlas foram dos aviões que prestaram melhores serviços à FAP, particularmente durante a Guerra do Ultramar, onde desempenharam missões de logística e de apoio táctico, sem as quais seria muito difícil manter as operações militares.
Os N-2502 estavam pintados em alumínio, com o dorso a branco, com um pequeno filete de separação, em azul escuro, que se estendia ao longo da fuselagem, à altura da base inferior das janelas da cabina de pilotagem. Ostentavam a Cruz de Cristo, sobre círculo branco, no extradorso da asa esquerda, no intradorso da asa direita e nos lados exteriores dos fusos. A Bandeira Nacional, sem escudo, estava colocada nas faces exteriores dos estabilizadores verticais, num pequeno rectângulo. O número de matrícula estava pintado nas asas, a preto, alternando com a insígnia, bem como nos estabilizadores verticais, sobre as cores nacionais. Em 1973, alguns destes aviões foram totalmente pintados em verde-azeitona anti-radiação, devido ao aparecimento dos mísseis terra-ar de origem soviética operados pelos guerrilheiros na Guiné e em Moçambique.
Os N-2501D recebidos a partir de 1965, mantiveram a camuflagem alemã em dois tons de verde e cinzento, com pinturas em dayglo no nariz, na ponta das asas, nas coberturas dos motores e nos lemes de direcção. Foi-lhes aplicada a insígnia e as marcas regulamentares. Aos que operaram em Moçambique, foram-lhes retiradas as pinturas em dayglo, após o aparecimento dos mísseis. Os Noratlas das Esquadras 92 (Luanda) e 123 (Bissalanca), ostentavam o distintivo da esquadra nos lados da fuselagem, sob a janela da cabina de pilotagem. Os da Esquadra 102 também apresentavam o distintivo da esquadra sob a janela, prática que foi abandonada. Por sua vez, os da Esquadra 32, ostentavam, no mesmo local, o galgo amarelo, símbolo tradicional da Base de Tancos.
Os Noratlas foram retirados do serviço em 1976. O último voo foi realizado no dia 14 de Outubro de 1976. Os pilotos e outros tripulantes, referem-se aos Noratlas como dos melhores e mais seguros aviões que voaram.
O Museu do Ar é detentor dos Noratlas números 6403, 6412, 6417 e 6420.
O 6403 foi recuperado e, desde 9 de Outubro de 2006, encontra-se em exposição estática nas instalações do Museu do Ar na Base Aérea N.º 1, Sintra.


Ao 6417 foi-lhe cortada a cabine de pilotagem, tendo em vista a montagem de um diaporama.
Os 6412 e 6420 necessitam de grande reparação para ficarem aptos para exposição estática.

Nota: Este artigo foi transcrito do livro «Aeronaves Militares Portuguesas – Cem Anos de Aviação», do TCorPil Adelino Cardoso
Edição da Força Aérea – Lisboa 2009.




sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O COMPANHEIRO QUE ME EMPRESTOU SARTRE

Mal sabíamos que um dia nos calharia a vez! Na vida civil, enquanto adolescentes, ouvíamos nos Natais as mensagens de boas-festas dos militares na Guerra Colonial. Pouco sabíamos. Mas um dia a RTP apareceu no Leste de Angola e quis que falássemos para a Metrópole ( em Angola chamava-se " o Puto" ). Temos hoje que reconhecer que aquilo era uma janela pela qual fugíamos para a família.
E nesse quase final de ano de 1968, alguns falaram: "Para os meus queridos pais, e querida noiva, e queridos etc, etc, desejo..." E assim de microfone de mão em mão.
O companheiro de armas, ou melhor, de Especialidade (mecânico de avião como eu), que está ao meu lado a aguardar a sua vez, era um dos meus melhores amigos no AB4, em Henrique de Carvalho. Era o Rodrigues ( o António Pereira). Já nos conhecíamos desde a Base Aérea nº 7, em S.Jacinto, Aveiro, convivemos muito durante o ano de 1967 e primeiros meses do 68.

Costumávamos trocar livros, havia inclinações comuns para as Letras e para a poesia, líamos e pensávamos qualquer coisa que seria de Esquerda.
Emprestou-me, em Aveiro, uma obra poética que me lançaria na poesia de registo social do Brasil, “A Morte e Vida Severina” do João Cabral Melo Neto.
A minha poesia, até ali muito lírica, começou a ser adequadamente seca e dolorida.
Chegado primeiro a Henrique de Carvalho, o Rodrigues, lá estava ele na placa de estacionamento a esperar quem viesse no "Nord" de Luanda, e cheguei eu.  Era uma sexta-feira. Nesse mesmo dia mostrou-me as dimensões do AB4, percorreríamos a Vila depois e algumas sanzalas, entronizou-me em África, no cheiro de África.
E emprestou-me uma quase auto-biografia do Jean-Paul Sartre, que tinha a curiosidade de "estar fora do mercado". “Sartre por Ele Mesmo”, da antiga editora Portugália.
E li-a com um pé no hangar ( quando não tinha um avião para desmanchar!) e outro na camarata, e no Club dos Especialistas entre uma cerveja e outra. Fiz-me até fotografar com ele na mão. 
Coisas de pobre.
© JTP
13 de Novembro de 2012







sábado, 8 de dezembro de 2012

EU ESTIVE LÁ (na Força Aérea, e na guerra)

Apesar de então existir a chamada Guerra Colonial (de guerrilha) nas “Províncias Ultramarinas” em África, desde Janeiro de 1967 que me ofereci como voluntário a: Exército, Marinha, Para-quedistas e Força Aérea. 
De todas as entidades obtive resposta, mas as três primeiras, cada uma com seus argumentos, afirmaram e informaram da impossibilidade para me receberem. 
Já a Força Aérea, que tinha, e creio que tem, o seu corpo de especialistas constituído por voluntários, informou-me da não aceitação no imediato, por existirem indivíduos disponíveis, em número suficiente, para um período de seis anos, quando a minha disponibilidade era por apenas quatro. 
Por essas razões, convidava-me a alterar a candidatura, o que não fiz. Deste modo, o meu ingresso na Força Aérea foi sendo adiado a cada incorporação acontecida em 1967 e 1968, mas do facto a Força Aérea sempre me informava e renovava o pedido para que eu alterasse a proposta de candidatura. 
Com estes sucessivos adiamentos chegou-se a Janeiro de 1969, quando a Força Aérea chamou, e aprovou na necessária inspecção militar, os 600 candidatos disponíveis, por um período de 6 anos. Mas como precisavam de mais 40, foram aproveitar dos que se tinham oferecido por 4 anos. E eu fui um deles. 
Com o tempo gasto neste “rebuscar” de jovens, chegou o mês de Fevereiro, e os primeiros 600 já puxavam pelo físico, quando deixei o serviço na Repartição de Finanças de S.Pedro do Sul e ingressei, como recruta, na incorporação com destino a um curso de formação de especialistas. 
Finda a recruta, e após a distribuição dos candidatos a alunos nos cursos disponíveis, consoante as preferências indicadas e, ou as classificações obtidas, lá fui com os 27 companheiros (em Maio de 1969), e no meu primeiro voo, em avião Skymaster, até à Base Aérea nº 4, em Lajes, Ilha Terceira, Açores, onde então existia, na freguesia de Terra Chã, o único Hospital da Força Aérea Portuguesa. Nesse Hospital Militar, funcionava o curso de formação de Enfermeiros, que incluía as partes teórica e prática, sendo que esta permitia aprendizagem em: Enfermaria, Posto Socorros, Bloco Operatório, RX, Laboratório e Secretaria.
Terminado o curso e colocado na Base Aérea nº. 5, em Monte Real, regressei ao Continente, noutro avião Skymaster, mas desta vez pertença da Força Aérea dos Estados Unidos. Que deu boleia.
Em Monte Real, onde comecei a trabalhar como Enfermeiro nos finais de Fevereiro de 1970, permaneci até Outubro desse mesmo ano, quando saí para a colocação no AB4(Aeródromo Base nº 4), em Henrique de Carvalho, Angola. 
A viagem para Luanda, com destino de passagem na Base Aérea nº. 9, em Boeing 707 da TAP, fretado pela Força Aérea foi óptima, durou 8H20m e terminou pelas 2 da madrugada. Porque viajei junto a uma janela do lado esquerdo do avião e já que naquela época os aviões portugueses estavam proibidos de sobrevoar terra africana, tive a oportunidade de ver as Ilhas Canárias, a cidade de Dakar (Senegal) e apreciar o espectáculo que já era Luanda à noite e vista do ar.

A comissão de serviço foi “realmente” começada mais tarde, após a chegada a Henrique de Carvalho, em avião Nordatlas (barriga de ginguba, bimotor a hélices).

Porque o destacamento no AM42 (Aeródromo de Manobra) em Camaxilo integrava 5 especialistas, sendo um deles o Enfermeiro,  os outros eram: MELEC, MMA, OPC e OMET, o meu destino, naquela altura como “maçarico” (o mais novo), foi seguir quase de imediato para esse destacamento, substituindo o Enfermeiro que lá se encontrava. Este destacamento situado a Noroeste de Henrique de Carvalho, dista cerca de 220 Kms e as ligações aéreas eram feitas principalmente pelos DO27, em 1H25.

Outros aviões da Força Aérea que por lá passavam, e em que também voei, eram: PV2, DC3; BC e até o Nordatlas .

Convirá deixar referido que neste Camaxilo (AM42), e para além dos 5 especialistas, existiam os elementos da Polícia Aérea que prestavam o apoio: 1 oficial, 1 Sargento, 2 1ºs Cabos e 15 soldados. Sendo que não me desagradava o isolamento vivido e sentido neste destacamento, acabei por passar lá mais tempo do que aquele que me estava atribuído. 
Beneficiaram outros Enfermeiros, por continuarem na Base, em Henrique de Carvalho. Quando acontecia regressar à Base, cumpria as funções na Enfermaria e “alinhava” nas deslocações para o AR Luso (Aeródromo de Recurso) e deste, virado a Sul, até N'Riquinha, lá ao fundo. 
Sendo o conjunto da Instituição Militar, de forma natural e legal, reciprocamente solidária, os aviões da Força Aérea levavam para muitos locais onde se encontravam militares do exército e existiam pistas (ou picadas, iguais a caminhos) que permitissem aterragens, correio e produtos alimentares frescos, como peixe e carne. Também por esta razão, aterrei algumas vezes em: Cangamba, Cuito Canavale, Mavinga, Lumbala, ….. . Reciprocamente, quando os abastecimentos ao exército eram feitos por aviões civis, quase sempre CESSNA, mono ou bimotores, eu apanhava as boleias sempre que possível. 
Terminada a comissão, regressei ao Continente, creio que em 15 de Outubro de 1972, com colocação na Base Aérea nº 7, em Montijo. 
O voo aconteceu em Boeing 707 da Força Aérea, demorou 7H40m e fez, ao chegar a Lisboa, a melhor aterragem a que assisti. 
Nesta Base (Montijo), onde estive colocado quase 2 meses, não cheguei a fazer qualquer serviço, nem passei no Portão de Entrada, que desconheço. Nas 3 ou 4 vezes que lá fui, fiz o acesso de barco, a partir do Cais da Marinha, em Lisboa. Assim, só percorri o caminho entre o local onde o barco encostava e a Enfermaria. Nesta deixava uma guia e, no momento, recebia outra, para voltar a casa. E enquanto estas viagens decorriam já eu aguardava a possível resposta a uma carta que havia escrito ao Chefe do Serviço de Saúde da Força Aérea a pedir colocação na Base Aérea nº 4, nos Açores, para o tempo que me faltava cumprir do contrato de 4 anos com a Força Aérea. 
E a resposta chegou por “mensagem” e a mandar-me embarcar no próximo avião (DC6), quando o Natal estava tão perto.

Foi desta maneira, com embarque no AT1 (Aeródromo de Transito  nº.1), conhecido por “Figo Maduro”, que voltei ao Hospital Militar em Terra Chã, onde fiquei, sem trabalhar, até deixar de ser militar, mas garanto que não sei a data. Quando me apeteceu, deixei de frequentar o Hospital e ninguém me disse mais nada.
Se foi assim a minha ida à guerra, que pareceu fechar-se para eu passar, a verdade é que ficam sempre sinais e ensinamentos marcantes para cada um dos que por lá passam. Marcas negativas e positivas, mas sempre enriquecendo o carácter e humanizando comportamentos.
Por toda a minha vida estarei agradecido à Força Aérea pela oportunidade que me concedeu. Ali, e até quando se vai para a cadeia, as pessoas são tratadas como gente. 
Quando estive preso, era eu que fechava a sela, pelo lado de dentro.

Notas finais:
1 – Próximo do fim do curso de enfermagem, e porque sempre chovia, fiquei na cama durante 10 dias consecutivos, mas de perfeita saúde. Os colegas levavam-me comida, livros e jornais …..;
2 – Foi no decorrer do curso, que em 20 de Julho de 1969, quando encostado à ombreira da porta do café “macaco” a dezenas de metros da entrada do Hospital, ouvi pela Emissora Nacional, pois nos Açores a TV ainda não existia, o jornalista anunciar: “O HOMEM PISOU A LUA”;
3 – Neste Hospital, que frequentei com orgulho, existiam e trabalhavam as Enfermeiras Para-quedistas, que bons serviços prestaram e muito conhecidas se tornaram. Gostei de as ter conhecido e ter tido como colegas;
4 –Certo dia na Base Aérea de Monte Real e na qualidade de Enfermeiro/dia autorizei um maqueiro, num Domingo, a mostrar as instalações dos Serviços de Saúde à namorada. Naturalmente, confiei e ao fim do dia não fui passar revista. Por acaso, na manhã seguinte, e porque o Sr. Comandante iria aos Serviços de Saúde, o chefe da Enfermagem foi conferir a apresentação e viu um quarto revirado. Fez o que devia, indo pedir-me explicações, mas, eu, nunca disse quem estragou. Assumi até ao fim, e até hoje;
5 – No AB4, em Henrique de Carvalho, passei algumas madrugadas a suturar (coser) couros cabeludos (cabeças). A polícia civil, algumas vezes e para bater, segurava o cassetete pelo lado oposto e, com isto, as pontas de metal junto ao punho, fazia imensos cortes nas cabeças dos agredidos. 
Como no Hospital civil era frequente não existir pessoal para tratar estes casos, os feridos iam à Base pedir apoio dos Enfermeiros. Com a minha autorização, e mesmo após a meia noite, eles entravam e eu ficava até de manhã a trata-los. Nunca me arrependi de o ter feito, apesar de não ser função minha;
6 – Nesses anos idos de 1971 e 1972 o vírus da cólera andava por Angola e forçou a vacinação de muitas dezenas de milhares de pessoas. Pela minha parte, e por minha completa responsabilidade, acompanhei diversas vezes o Administrador de Posto de Camaxilo até às Sanzalas e vacinei diversos milhares de pessoas;
7 – Quando no destacamento de Camaxilo (AM42), e porque só existia um indivíduo em cada especialidade, dava sempre um ar de abandono quando um de nós ia à localidade de Camaxilo. 
Para evitar pontos fracos, teve cada um de nós que aprender um bocadinho da especialidade de cada um dos outros. Na minha ausência não faltava apoio de enfermagem e quando o Operador de Comunicações ou o Meteorologista iam ao rio tomar banho, era eu, sem hesitar que descrevia o “estado do tempo”, incluindo quantidade e tipo de nuvens, bem como transmitia tais dados, por voz, já que nesses momento a grafia estava sempre inoperante;
8 – A meio da comissão, e sem que eu a pedisse, alguém se lembrou de me atribuir e entregar uma arma (FBP). Mas como eu não gostava, nem gosto, de armas, pendurei-a num prego sob a torre de vigia, que rematava superiormente com o depósito da água. E por lá se ficou a apodrecer, mesmo após eu me vir embora, pois desde o início me recusei a aceitá-la;
9 – A minha mobilização para Angola foi previamente aceite por mim. Tanto a Base Aérea de destino, como a data da viagem e o avião escolhido. Grato aos “irmãos enfermeiros”;
10 – Apesar da imensidão de Angola, o certo é que só fiz uma viagem (digna de nome) de carro. E foi entre Luso e Henrique de Carvalho. Estive em bastantes lugares, mas sempre próximo das pistas onde os aviões aterravam.
Para todos: Sejam felizes, este ano e nos próximos
Leira Longa, Novembro de 2012



sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O DIA A DIA NO AB4

No AB4 (Aeródromo Base nº 4) – Henrique de Carvalho – Angola, sentíamo-nos uns desterrados, sem culpa formada e sem julgamento, mas com “sentença” proferida e transitada em julgado, que nos obrigava a permanecer naquele ermo, cercado de arame farpado por todos os lados, dois anos pelo menos.
Distribuição do correio
Valia-nos, porém, a camaradagem, o espírito jovem e irreverente dos nossos dezanove, vinte, vinte e poucos anos, amadurecidos antes de tempo, que tudo suportavam, não reivindicando outros direitos que não aqueles que o dever militar nos podia proporcionar. 
Ali, cada um, sabia qual ou quais as funções que lhe estavam destinadas e só tinha uma opção ou dever: cumprir escrupulosamente as directivas emanadas superiormente para que os dois anos de comissão de serviço se processassem sem problemas e, para que no final da dita comissão, ao percorrermos todos os “recantos” da “Base” (era assim que carinhosamente designávamos o AB4), onde existisse uma autoridade ou chefe de messe, cantina, clube ou bar, pudéssemos recolher todas as assinaturas demonstrantes de em cada sítio destes nada haver em dívida; ou seja, nada que pudesse impedir o nosso regresso à metrópole. 
Era um martírio quase insuportável, mas feito na “desportiva” e com a condescendência de muitos chefes de serviço, tudo se resolvia e, no fim de contas, dava tudo certo. 
Eu que o diga, pois, na secção de armamento de que era responsável, após a conferência habitual e necessária de tudo o que ali estava registado e me tinha sido entregue, chegámos à conclusão de haver material sobrante, nomeadamente: cunhetes de balas, cintos de cabedal e até, vejam só… um capacete de combate! 
Passeio à piscina de HC
Nas primeiras noites ali passadas, não era fácil dormirmos descansadamente naquela “Base”, é que, no sossego da noite, quando tudo parava, a única excepção era o gerador eléctrico que nos atormentava continuamente com o seu roncar cadenciado, medonho e ensurdecedor, sem nunca parar. Mas pronto, passados uns dias, a malta habituava-se e deixava de “ligar” a esse som irritante e provocatório, passando a repousar com a tranquilidade possível.
Também estranhávamos as trovoadas que apareciam quase sem avisar e, à noite então… nem o mais afoito, perante o espectáculo aterrador de enormes faíscas que rasgavam o céu, saltando de umas nuvens para outras, ao mesmo tempo que os trovões ecoavam com os seus sons ensurdecedores, podia deixar de sentir temor e respeito para com a natureza. E não havia nada a fazer, era esperar que a tempestade passasse depressa. E assim acontecia, aquelas trovoadas duravam apenas alguns minutos, que encharcavam tudo, mas dado o tipo de terreno arenoso daquela zona, a água desaparecia rapidamente, muito embora, por vezes ou épocas do ano, estas intempéries se repetissem ao longo dos dias e das noites.
Com companheiros na esplanada
A par disso, umas passeatas pela cidade, umas cervejas (cucas ou nocais) no “Café Cubata”, no “Quioco” ou no café do “Cinema Chicapa”, onde podíamos apreciar os bons filmes da época; ou até, para os mais abonados, um “bife com todos” no “Quioco”, que custava à volta de sete escudos e cinquenta centavos (7$50), a fim de variarmos a alimentação trivial que nos era fornecida na “Base”, que não ia muito além do arroz com carapaus fritos, já secos; da massa com feijão, ou das batatas cozidas com atum; um ou outro mergulho na piscina da cidade, aos fins-de-semana; umas espreitadelas ao musseque, para verificarmos “in loco” como era o dia-a-dia daquela gente; e pouco mais, a rotina, forçosamente, instalava-se enquanto aguardávamos, semana a semana, que chegasse o correio com notícias dos nossos familiares e amigos, que tínhamos deixado tão longe. 


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

VISITA AO RUNTU

Vista aérea de Runtu
O Runtu (ou Rundu) é uma cidadezinha da Namíbia, na fronteira com Angola. Situada na margem sul do Rio Cubango (internacionalmente conhecido por Okavango). A Namíbia foi primeiro administrada e depois ocupada pela União Sul-Africana (actual República da África do Sul). Tornou-se independente em 1990.
Como é sabido, os sul-africanos foram, de forma mais ou menos encapotada, nossos aliados na guerra em Angola. Eram conhecidos pelos "primos". Da ajuda militar que nos proporcionavam fazia parte o apoio aéreo. Principalmente com helicópteros AL III. Estes helicópteros eram usados para o transporte das nossas tropas durante as operações militares. Esta ajuda era sempre enquadrada por um heli-canhão nosso.
No fim de cada operação os “primos” regressavam à África do Sul (Namíbia) sendo escoltados pelo heli-canhão até ao ponto de saída de Angola, o Runtu.
Heli dos "primos"
Esta introdução explica as nossas visitas ocasionais à Namíbia.
Era a oportunidade para o piloto e o mecânico irem até ao outro lado da fronteira e ganhar ajudas-de-custo "internacionais". Um complemento ao pequeno ordenado que recebíamos. Principalmente porque no pouco tempo que lá se passava (um dia ou dois) estávamos alojados no campo militar do Runtu e não gastávamos nada. Para se gastar alguma coisa tinha de se ir ao Runtu (povoação). Aí podiam fazer-se algumas compras como, por exemplo, os cachimbos, os "sacos" de estopa que serviam para transportar água (mantendo-a fresca), lembranças no comércio local, etc.
Vindos do rio Cubango/Okavango
Foi num desses "raids comerciais" à povoação que...
Caminhando numa das ruas vi uma loja de "souvenirs". Uma olhada rápida para o interior prometia fazer um bom rombo no orçamento. Havia um pouco de tudo: tecidos, pinturas, máscaras, peles curtidas, trabalhos em madeira, etc. A escolha era vasta. A loja, não muito grande e um pouco sombria, tinha duas ou três filas de expositores em prateleiras que subiam um pouco acima do nível da cabeça (como num supermercado). Os diversos artigos estavam bem arrumados nas prateleiras e o chão, de cimento velho, tinha sido varrido recentemente porque os fachos de luz solar que entravam obliquamente pelas janelas mostravam, contra o fundo escuro do interior, as partículas de pó que flutuavam no ar. Ainda sinto o cheiro típico destas lojas; aquela mistura de madeira esculpida e peles secas. Era o mesmo cheiro em todas essas lojas. Mesmo nas de Angola.
Já lá dentro, demorei-me um pouco a apreciar os diversos objectos.
Ao fim de algum tempo comecei a sentir aquela sensação que se sente quando se é o alvo das atenções. Uma espécie de pressão sobre os ombros que não nos deixa concentrar no que estamos a fazer. Pelo canto do olho vi que, efectivamente, dois indivíduos tinham parado ao fundo do corredor e olhavam-me directa e ostensivamente. Pensei logo que seriam os guardas do estabelecimento a ver se eu não punha alguma lembrança nas algibeiras do fato de voo mas rapidamente me apercebi de que havia mais gente que me olhava. Toda a gente me olhava. Mesmo pelos intervalos das peças de artesanato à minha frente, havia olhos que me fitavam. É certo que eu era um estrangeiro mas... tanta curiosidade?
Loja de artesanato
Pousei na prateleira a caixa de madeira trabalhada que tinha na mão e olhei à minha volta. Afinal todos aqueles olhares não eram de curiosidade, eram olhares graves e carrancudos, quase (?) de ódio. E foi nesse momento que eu percebi a situação: todos os clientes eram pretos! Eu estava numa loja para pretos num país onde, oficialmente, pretos e brancos não se misturavam. Eu estava na loja errada e era, claramente, indesejado naquele local! Este foi o meu primeiro encontro com o “apartheid”.
Voltei a pegar na caixa de madeira que me tinha agradado e dirigi-me ao balcão, perto da porta, onde estava a caixa registadora. Sem muita conversa, paguei e dirigi-me para a porta com a caixa debaixo do braço. Na saída voltei-me para o interior da loja, levantei a mão em sinal de paz e, olhando para a minha estranha plateia, abri um sorriso amigável e franco e disse: “Sorry.” Ninguém me respondeu, nem alterou o olhar fixo e agressivo. Outras gentes...
Felizmente que o comerciante devia ter por lema: “Apartheid, apartheid, negócios à parte!” Ainda hoje tenho a caixa de madeira que lá comprei.
Em Angola esta situação, que me apanhou de surpresa, não faria sentido. Eu sempre andei por onde quis e sempre tratei todos da mesma maneira, pretos, brancos ou mestiços. Também nunca me senti hostilizado por parte da população local. Nós, Portugueses, deixámos pelo Mundo uma “marca” que nenhum outro povo soube deixar. A nossa maneira de ser, franca, amigável e sem preconceitos, sempre foi um inimitável cartão de visita. Sei do que falo porque ao longo da vida vivi e trabalhei em muitos países que foram antigas colónias de diferentes povos.
 Penso que uma boa parte da juventude actual não sabe o que foi o "Apartheid". Ainda bem!

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CONVERSAS NA CIDADE Nº.3


Nota Introdutória
     Os “especiais” e o novo companheiro encontravam-se no “Lux Bar” a curtirem a folga da Base…
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Marrador - O Vito, o Joca e o Quim tinham satisfeito as primeiras necessidades…as que entram, não as que saem. Comidos e bebidos deparam-se em acertar com a porta do “Lux Bar”. Ainda houve um dos “especiais” que traçou com o taco do bilhar o azimute do jardim frontal…, mas as mentes andavam turvadas – causa do líquido amarelado. Bem, as moelas e os “pi-pis” tiveram que ser regados a primor pelo efeito do carrego do gindungo!...
- Vamos seguir os nossos “artistas” e ouvir a “canção da Amélia”…
VITO - Amélia…Am…Amélia…
JOCA - Estás a cantar, ou a ladrar?
VITO Zungo!...
QUIMMoio” aos dois. Tenho encontro marcado noutras paragens!...
VITO / JOCAMoio Ué”. Porta-te bem e aprende a agarrar o “taco”.
JOCA - Essa foi forte !...
VITO - Então, levou “cossa” no bilhar – mereceu duas derrotas!
JOCA - Amélia dos olhos doces… tá…tá…tá…
VITO -  … tá…tá…-tá… gaivota, amante, poeta…
VITO / JOCA -  … Rosa de café, Amélia gaiata, do bairro da lata, do Cais do Sodré… tá…tá…tá…
VITO - Passamos uma tangente à casa da Amélia?
JOCA - Yes, meu. Essa linda “Tusula”!... Depois, deitamos uma espreitadela pelo ambiente do “Estrela D´Alva”. 


Marrador - Bem, estes “especias” iam a seguir as pisadas sob a influência do instinto. Saíram do “Lux Bar” e, à sua frente deparou-se-lhes o jardim e as Bombas de gasolina. Inclinaram à esquerda, cruzaram a Avenida que seguia para a Capela, e estacam junto à casa da Amélia.
VITO É…é…é…aqui!...
JOCA Hehhh!
VITO Alguma abelha te ferrou no “munhenho”?
JOCA Topa a cena daquele mirone na pista de carros.
VITO Treme, treme com as pernas junto à “muchacha”…
JOCA É o Oliver, sargento das ágatas….
VITO O próprio… e parece que esteve de quarentena lá em casa!....
JOCA É como os cegos. Vêm com o tacto…
VITO – E apalpam com os membros inferiores?!...
JOCA Com o membrito? Malandreco!...
VITO O olhar dele está barrento. A mente está presa ao instinto!
JOCA Qual das três te deu volta à cabeça? A Eka, a Nocal ou, Cuca?
VITO – A…N…D…O…R!... Antes que venha a “calunga”. Temos “maningue” que fazer.
JOCA Passamos ao largo do “Estrela D´Alva”. Miramos a paisagem e não iremos entrar.
VITO Tens receio dos bifes de “ferro”? Bem, tem umas instalações hexagonais e recatadas!... Longínquas do reboliço!...
JOCA Pois, - há outras paragens prioritárias, por agora…
VITO – Hummm…Humm! Olha que este caminho só nos leva ao cemitério, ou à Barragem do Capelão?!... Para isso, teremos que passar pela sanzala…e dançar um “merengue” na “cubata” gigante.
JOCA  Curvamos. Há jogo no Estádio e os nossos “sorjas” vão “jogatinar”.
VITO Mas primeiro estacionamos em frente da Capela para mirarmos as “modelos”.
JOCA Queres ver a Amélia e as amigas… Ainda te prendes pela cidade do Carvalho – do Henrique de Carvalho.
VITO Tenho saudades do “Puto”, mas a que lá deixei…deixei!...
JOCA Lamúrias. Traz a “Mauser” e vamos caçar. Araras e leoas não faltam nestes lugares.
Marrador - Pé, ante pé, os nossos amigos seguiam pela Avenida da Capela. Do estacionamento das Carreiras provenientes do Luso e do Dundo, prosseguiram até ao largo dos Correios. Passaram pelos cruzamentos que davam para a Colectividade de Saurimo onde o Capelão ensaiava o seu grupo teatral, pela casa comercial de artesanato do sogro do assassinado Carvalho, pela escola de condução onde muitos companheiros tiraram a carta, Liceu e Avenida das mangueiras que finalizava numa velha Missão de religiosas, no caminho para a piscina. Estacaram no muro da Capela.
VITOAqui. Aqui junto a estes camaradas de armas.
JOCA Olha, olha o Meteo-Gonçalves que há muito tempo não lhe punha os olhos em cima.
GONÇALVES Ehhh…pessoal. Tudo nos “gungungos”?
VITO / JOCA Bruxooo.
VITO E que tal lá pelas bandas do Cazombo? Muitas “mulecas”? E a joia da coroa?
JOCA Passou-me essa!... Joia da coroa?
VITO Sim, a mascote elefante que ele e outros adoptaram no Destacamento.
JOCA Elefante? Mascote? Dorme convosco?
VITO Dorme, dorme…Meia caserna ficou no exterior…ao cacimbo! 


GONÇALVES Não é bem assim, mas quase. Para lhe darmos banho tivemos que fundir três banheiras. Para comer, assaltámos as bananeiras dos arredores. Segue-nos a cada canto e todos os dias cresce aos palmos. Ainda a vamos treinar para fazer filmes com o Tarzan!...
VITO A…a… é do sexo feminino?
GONÇALVES É a nossa menina e tem uma história macabra!
JOCA Este maralhal está aqui com a “peida” arreada no muro a fazer o quê?
GONÇALVES A calejar o “munhenho” ou, a ver a missa. Não topas as ratoeiras à entrada da Capela?
VITO Uihhh…Uihhh… Eu a pensar que estavam à espera de ver passar o Governador!...
JOCA Ou, a Amélia e as suas manas. Este jardim dos CTT, é o encanto mais visitado…
GONÇALVES Meninos, vamos à bola. Os “sorjas” vão iniciar a jogatina no pelado dos mangueirais.
VITO No campo das abelhas?
JOCA Nesse campo em que foram todos picados?
GONÇALVES Não há outro! E as abelhas foram mortas a tiro.
VITO A tiro? Então está ligada àquela história do mel recolhido com caju à mistura?
JOCA Caju…de chumbo.
GONÇALVES Vamos gritar pelos FAP. Hoje, a PSP vai perder. Temos lá os nossos vizinhos Ocart´s. Tudo sob controlo…controladores…terrestres.
VITO No campo ao lado, também haverá um jogo de futebol de salão com os “especiais”.
JOCA Isso é no cimentado. Vamos dum lado para o outro. 



VITO E…acabaremos no Clube do Cinema, no velho Chikapa.
GONÇALVESMas…cinema…hoje, não.
JOCA Porquê?
GONÇALVES O projectista passou por nós…a cambalear…
VITO Então teremos o filme a começar do fim para o início?
JOCA Como sempre…Curiosamente a sala de cinema foi construída com o soalho em plano inclinado…invertido.
VITO Sim, o soalho sobe para a tela!... Por isso, as cadeiras andam sempre a dançar para tomarem posição.
GONÇALVES Não estiveram cá na última sessão?!… O pessoal do exército partiu o “cadeirame” todo só porque o “camera man” começou o filme pelo meio. O “Asa Negra” obrigou-os a cravarem uns pregos nas cadeiras partidas e a retomarem o filme de trás para a frente. Foi um castigador!...
VITO Nem tanto. O filme de trás para a frente…já era costume!
Marrador: Nesta “lenga-lenga” caminhava-se pela Avenida dos CTT. Esta, trepava, trepava até à rotunda…lá longe.
     Abandonaram a estátua do sertanejo. O recipiente das nossas cartas, a encruzilhada no jardim, os bancos namoradeiros, o Palácio do Governador, a Capela, o Clube, O Cinema, os campos de “futebóis”, as abelhas e as mangueiras.
  Voltaram costas a tudo isso…por momentos!
     Foram simplesmente matar a sede ao “Bar dos passarinhos”, e comer uma passarinha nas proximidades do “Quioco” ou, da “Cubata”. Vamos esperar para o próximo relato para indagarmos o destino da rota incerta… A cidade seguia o seu movimento de rotação?!... Bem, vou juntar-me aos gajos para lhes escutar a conversa! Calhando, … o movimento é outro!... 
Língua Quioca   
Zungo – Cala-te
Moio – Cumprimento
Tusula – Rapariga
Calunga – Chuva
Munhenho - Cu

Anotações:
Amélia – Jovem cidadã de H. de Carvalho que veio a casar com companheiro da Força Aérea
Oliver- Nome fictício, sargento R.D.  da FAP, casado e radicado na cidade.
Mascote – Pequeno elefante adoptado no Cazombo. História a recolher do Gonçalves – Meteo
Campo das abelhas – Abelhas soltas pelo campo das mangueiras no momento de jogada.
Asa Negra – Comandante do exército com histórias peculiares

Fotografias:
Recolha do “nosso” Blogue
  

Até Breve
O Amigo