sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O DIA A DIA NO AB4

No AB4 (Aeródromo Base nº 4) – Henrique de Carvalho – Angola, sentíamo-nos uns desterrados, sem culpa formada e sem julgamento, mas com “sentença” proferida e transitada em julgado, que nos obrigava a permanecer naquele ermo, cercado de arame farpado por todos os lados, dois anos pelo menos.
Distribuição do correio
Valia-nos, porém, a camaradagem, o espírito jovem e irreverente dos nossos dezanove, vinte, vinte e poucos anos, amadurecidos antes de tempo, que tudo suportavam, não reivindicando outros direitos que não aqueles que o dever militar nos podia proporcionar. 
Ali, cada um, sabia qual ou quais as funções que lhe estavam destinadas e só tinha uma opção ou dever: cumprir escrupulosamente as directivas emanadas superiormente para que os dois anos de comissão de serviço se processassem sem problemas e, para que no final da dita comissão, ao percorrermos todos os “recantos” da “Base” (era assim que carinhosamente designávamos o AB4), onde existisse uma autoridade ou chefe de messe, cantina, clube ou bar, pudéssemos recolher todas as assinaturas demonstrantes de em cada sítio destes nada haver em dívida; ou seja, nada que pudesse impedir o nosso regresso à metrópole. 
Era um martírio quase insuportável, mas feito na “desportiva” e com a condescendência de muitos chefes de serviço, tudo se resolvia e, no fim de contas, dava tudo certo. 
Eu que o diga, pois, na secção de armamento de que era responsável, após a conferência habitual e necessária de tudo o que ali estava registado e me tinha sido entregue, chegámos à conclusão de haver material sobrante, nomeadamente: cunhetes de balas, cintos de cabedal e até, vejam só… um capacete de combate! 
Passeio à piscina de HC
Nas primeiras noites ali passadas, não era fácil dormirmos descansadamente naquela “Base”, é que, no sossego da noite, quando tudo parava, a única excepção era o gerador eléctrico que nos atormentava continuamente com o seu roncar cadenciado, medonho e ensurdecedor, sem nunca parar. Mas pronto, passados uns dias, a malta habituava-se e deixava de “ligar” a esse som irritante e provocatório, passando a repousar com a tranquilidade possível.
Também estranhávamos as trovoadas que apareciam quase sem avisar e, à noite então… nem o mais afoito, perante o espectáculo aterrador de enormes faíscas que rasgavam o céu, saltando de umas nuvens para outras, ao mesmo tempo que os trovões ecoavam com os seus sons ensurdecedores, podia deixar de sentir temor e respeito para com a natureza. E não havia nada a fazer, era esperar que a tempestade passasse depressa. E assim acontecia, aquelas trovoadas duravam apenas alguns minutos, que encharcavam tudo, mas dado o tipo de terreno arenoso daquela zona, a água desaparecia rapidamente, muito embora, por vezes ou épocas do ano, estas intempéries se repetissem ao longo dos dias e das noites.
Com companheiros na esplanada
A par disso, umas passeatas pela cidade, umas cervejas (cucas ou nocais) no “Café Cubata”, no “Quioco” ou no café do “Cinema Chicapa”, onde podíamos apreciar os bons filmes da época; ou até, para os mais abonados, um “bife com todos” no “Quioco”, que custava à volta de sete escudos e cinquenta centavos (7$50), a fim de variarmos a alimentação trivial que nos era fornecida na “Base”, que não ia muito além do arroz com carapaus fritos, já secos; da massa com feijão, ou das batatas cozidas com atum; um ou outro mergulho na piscina da cidade, aos fins-de-semana; umas espreitadelas ao musseque, para verificarmos “in loco” como era o dia-a-dia daquela gente; e pouco mais, a rotina, forçosamente, instalava-se enquanto aguardávamos, semana a semana, que chegasse o correio com notícias dos nossos familiares e amigos, que tínhamos deixado tão longe.