Vista aérea de Runtu |
O Runtu (ou Rundu) é uma cidadezinha da Namíbia, na
fronteira com Angola. Situada na margem sul do Rio Cubango (internacionalmente
conhecido por Okavango). A Namíbia foi primeiro administrada e depois ocupada
pela União Sul-Africana (actual República da África do Sul). Tornou-se
independente em 1990.
Como é sabido, os sul-africanos foram, de forma mais ou
menos encapotada, nossos aliados na guerra em Angola. Eram conhecidos pelos
"primos". Da ajuda militar que nos proporcionavam fazia parte o apoio
aéreo. Principalmente com helicópteros AL III. Estes helicópteros eram usados
para o transporte das nossas tropas durante as operações militares. Esta ajuda
era sempre enquadrada por um heli-canhão nosso.
No fim de cada operação os “primos” regressavam à África
do Sul (Namíbia) sendo escoltados pelo heli-canhão até ao ponto de saída de
Angola, o Runtu.
Heli dos "primos" |
Esta introdução explica as nossas visitas ocasionais à
Namíbia.
Era a oportunidade para o piloto e o mecânico irem até ao
outro lado da fronteira e ganhar ajudas-de-custo "internacionais". Um
complemento ao pequeno ordenado que recebíamos. Principalmente porque no pouco
tempo que lá se passava (um dia ou dois) estávamos alojados no campo militar do
Runtu e não gastávamos nada. Para se gastar alguma coisa tinha de se ir ao
Runtu (povoação). Aí podiam fazer-se algumas compras como, por exemplo, os
cachimbos, os "sacos" de estopa que serviam para transportar água (mantendo-a
fresca), lembranças no comércio local, etc.
Vindos do rio Cubango/Okavango |
Foi num desses "raids comerciais" à povoação
que...
Caminhando numa das ruas vi uma loja de
"souvenirs". Uma olhada rápida para o interior prometia fazer um bom
rombo no orçamento. Havia um pouco de tudo: tecidos, pinturas, máscaras, peles
curtidas, trabalhos em madeira, etc. A escolha era vasta. A loja, não muito
grande e um pouco sombria, tinha duas ou três filas de expositores em
prateleiras que subiam um pouco acima do nível da cabeça (como num
supermercado). Os diversos artigos estavam bem arrumados nas prateleiras e o
chão, de cimento velho, tinha sido varrido recentemente porque os fachos de luz
solar que entravam obliquamente pelas janelas mostravam, contra o fundo escuro
do interior, as partículas de pó que flutuavam no ar. Ainda sinto o cheiro
típico destas lojas; aquela mistura de madeira esculpida e peles secas. Era o
mesmo cheiro em todas essas lojas. Mesmo nas de Angola.
Já lá dentro, demorei-me um pouco a apreciar os diversos
objectos.
Ao fim de algum tempo comecei a sentir aquela sensação
que se sente quando se é o alvo das atenções. Uma espécie de pressão sobre os
ombros que não nos deixa concentrar no que estamos a fazer. Pelo canto do olho
vi que, efectivamente, dois indivíduos tinham parado ao fundo do corredor e
olhavam-me directa e ostensivamente. Pensei logo que seriam os guardas do
estabelecimento a ver se eu não punha alguma lembrança nas algibeiras do fato
de voo mas rapidamente me apercebi de que havia mais gente que me olhava. Toda
a gente me olhava. Mesmo pelos intervalos das peças de artesanato à minha
frente, havia olhos que me fitavam. É certo que eu era um estrangeiro mas...
tanta curiosidade?
Loja de artesanato |
Pousei na prateleira a caixa de madeira trabalhada que
tinha na mão e olhei à minha volta. Afinal todos aqueles olhares não eram de
curiosidade, eram olhares graves e carrancudos, quase (?) de ódio. E foi nesse
momento que eu percebi a situação: todos os clientes eram pretos! Eu estava
numa loja para pretos num país onde, oficialmente, pretos e brancos não se
misturavam. Eu estava na loja errada e era, claramente, indesejado naquele
local! Este foi o meu primeiro encontro com o “apartheid”.
Voltei a pegar na caixa de madeira que me tinha agradado
e dirigi-me ao balcão, perto da porta, onde estava a caixa registadora. Sem
muita conversa, paguei e dirigi-me para a porta com a caixa debaixo do braço.
Na saída voltei-me para o interior da loja, levantei a mão em sinal de paz e, olhando
para a minha estranha plateia, abri um sorriso amigável e franco e disse:
“Sorry.” Ninguém me respondeu, nem alterou o olhar fixo e agressivo. Outras
gentes...
Felizmente que o comerciante devia ter por lema: “Apartheid,
apartheid, negócios à parte!” Ainda hoje tenho a caixa de madeira que lá comprei.
Em Angola esta situação, que me apanhou de surpresa, não
faria sentido. Eu sempre andei por onde quis e sempre tratei todos da mesma
maneira, pretos, brancos ou mestiços. Também nunca me senti hostilizado por
parte da população local. Nós, Portugueses, deixámos pelo Mundo uma “marca” que
nenhum outro povo soube deixar. A nossa maneira de ser, franca, amigável e sem
preconceitos, sempre foi um inimitável cartão de visita. Sei do que falo porque
ao longo da vida vivi e trabalhei em muitos países que foram antigas colónias
de diferentes povos.
Penso que uma boa parte da juventude actual não sabe o que foi o
"Apartheid". Ainda bem!