quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O MAJOR TOMÁS E O ALUNO LARILAS !



Estava de Sargento de Dia à EI (Esquadra de Instruendos), 69/70, quando o 1º.Sarg. Garcia, chefe da Secretaria me diz que sabia dum aluno OPCART, o nº.11, algarvio, andava metido com larilas e que andava constantemente baldado, pois tinha cunhas muito grandes e safava-se sempre.
Havia um gajo, que respondia por ele e era preciso caçá-lo. Calculem, que até os instrutores e monitores não davam as faltas do marmanjo Caço o gajo, que respondia por ele e fiquei a saber da história toda. Este, estava a ser bem pago, o outro andava com a dispensa dele, mas já estava desenfiado há 7 dias com o fim de semana. Até parecia impossível!!! Na segunda-feira de manhã, saio de serviço e vou à Formação entregar o relatório do serviço, as faltas e dizer ao Garcia o que se passava. Manda-me fazer a participação para o Comandante da Formação dar seguimento (Cap. Evaristo), e diz-me: Olegário, já livrámos a nossa responsabilidade, metemos os ditos cujos na virilha dos gajos do GITE, que têm de se justificar, mas espera pela resposta que até estala! Estava a almoçar quando recebo uma chamada do Ministério da Marinha, com um Comandante qualquer, a dizer-me que o nosso Almirante tal, alentejano (pensava eu, que no Alentejo não havia larilas!), queria falar comigo e queria saber a hora ideal para tal. Disse-lhe, que podia ser depois do almoço, já lixado sem saber o que se passava para ter a tal honra. O homenzinho até já sabia o meu nome, que tinha filhos pequenos, etc., que estava no início da carreira. Parecia uma conversa em família, e lá para as tantas diz-me que era para eu tirar a participação, porque o dito 11 estava com ele, e tinha adoecido, e não sei mais o quê, uma aldrabice. Respondi, que a dita já estava nos meus superiores e que só eles podiam fazer algo, tendo o senhorzinho quase me ameaçado com delicadeza. Cerca das 19 horas, aparece um bruto Mercedes da Marinha a deixar o 11 na Base.

No dia seguinte havia um jogo de andebol entre oficiais e sargentos, tendo o Major Tomás por casualidade...passado junto da Messe de Sargentos e dado uma boleia ao Olegário para irmos para as aulas!!! No meio da conversa acerca do jogo diz-me: Ah! Já me esquecia, esqueça a história do 11 que depois falamos. No mesmo dia deu duas carecadas e corte de dispensas a dois alunos de comunicações, porque não vinham na formatura. Fui falar com ele perguntar-lhe que moral era aquela, e que sendo assim seguia com a minha participação. Cale-se, ou então vai de imediato para África para o pior sítio que eles lhe vão arranjar e o seu futuro na FAP acaba aqui!
Turma OPCART da 1ª. de 1969
Dias mais tarde foi ter comigo à sala de aulas, chama-me cá fora e diz-me: Não calcula no que estava metido e só para sua informação deve calar-se e não contar a ninguém mas até do Gabinete do CEMFA recebi um telefonema. Digo-lhe isto porque tenho consideração por si e não volte a ir ter comigo com a chantagem para eu tirar o castigo aos seus alunos porque eu também cumpro ordens.

Por: Olegário Silva, Sarg. Chefe OPC

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A MINHA HOMENAGEM AO GENERAL LUÍS ARAÚJO, RECORDO O DIA EM QUE NOS CONHECEMOS EM MUEDA

AM51 - Mueda
Hoje 5/12/2023 durante a missa das exéquias pela morte do meu camarada, companheiro e meu grande amigo, Luís Araújo, na tranquilidade e no silêncio da igreja, revi e recordei o dia em que nos conhecemos nos idos de 1972 em Mueda, Moçambique, em tempo de guerra.
O General Luís Araújo, Luís para os amigos, para lá das suas excelsas qualidades de militar e líder, para lá de ser um experiente piloto dos helicópteros Alouette III, era um notável contador de histórias. Um dia ainda durante os anos 80, depois de um jantar de amigos durante os anos que ambos fomos professores no saudoso IAEFA (Instituto de Altos Estudos da Força Aérea), bem bebidos e melhor comidos, o Luís com toda a sua bonomia resolveu contar a história do dia em que nos conhecemos. Como uma pequena homenagem, vou escrevê-la como ele a dissecou nas suas palavras.
Poucas semanas depois de ter chegado a Nampula fui enviado pelo comandante da esquadra 503 “Índios” para o meu primeiro destacamento no AM-51 em Mueda.
- Araújo pode chegar aqui ao meu gabinete, grita-me o capitão Estevinho.
Convida-me a sentar e calmamente diz-me.
- Araújo amanhã você vai de manhã para Mueda no Nordatlas, que sai daqui às 09h00, transmite-me.
Continuando as suas diretivas diz-me tranquilamente.
- Chegas lá cima agarras-te ao alferes Cruz, ele é um dos mais certinhos dos meus pilotos e o mais experiente, ele vai-te ensinar a combater no cenário da guerra no Planalto dos Macondes. Você vai gostar dele, acrescenta com um sorriso de confiança.
No dia seguinte depois do voo matinal entre Nampula e Mueda lá chego ao aeródromo de Mueda. Muitas histórias me tinham contado sobre aquele inferno, as histórias absolutamente loucas dos pilotos de Mueda eram já uma imagem de marca no imaginário de todos os militares no Planalto dos Macondes, interiormente pensava que eram manifestamente um exagero. Contudo ao descer as escadas do Nordatlas, verifiquei que efetivamente era pior do que tinha imaginado, uma placa cheia de aviões e helicópteros e o Nordatlas estacionado no meio da placa, pois não havia espaço para mais. O aspeto era deprimente, rodeado de arame farpado, era mesmo um lugar de guerra.

Ainda meio aturdido da primeira impressão de Mueda, que não foi manifestamente a melhor, aquilo era pior do que tinha imaginado nos meus piores pesadelos, questiono um sargento mecânico que ia a passar.
- Senhor sargento onde posso encontrar o alferes Cruz dos helicópteros.
- Senhor tenente o alferes Cruz foi fazer uma missão e deve estar a aterrar.
- Obrigado, respondo-lhe.
Passados alguns minutos ouço o barulho característico dos alouette III, aquele som de liberdade que sempre me impressionou desde o meu primeiro voo naquele fabuloso helicóptero. Rapidamente os dois pilotos saem dos helicópteros e dirigem-se em passo tranquilo para as operações, questiono um dos mecânicos.
- Nosso cabo, qual daqueles pilotos é o alferes Cruz?
- Senhor tenente, o Cruz é o que traz o lenço azul atado à cabeça, responde-me educadamente
O que vejo deixa-me completamente espantado, o aspeto é de um verdadeiro guerreiro, fato de voo impecável, barba, com um ar simpático, lenço de seda atado à volta do cabelo, qual Índio, numa mão o capacete e na outra mão a famosa Kalashnikov e o que me deixou mais intrigado um arco e flexas pendurado junto à sua arma de defesa.
Caminho vagarosamente pela placa em direção aos dois pilotos, olho mais especificamente para o tal alferes Cruz que caminha vagarosamente na minha direção, conforme se aproxima, olha para mim com um sorriso calmo e maroto, preparo-me para lhe dirigir a palavra, mas ele foi mais rápido que um raio, a cerca de dois a três metros de mim, olha-me com aquele sorriso e grita.
- Ó checa estás f**dido, bem-vindo a Mueda terra da guerra.
Quase em simultâneo envolve-me num forte abraço e sempre com aquele sorrido que irradiava confiança, uma enorme tranquilidade e claro também uma dose de loucura.
Aquele abraço de boas-vindas fez-me sentir a entrar num novo mundo onde sabia por outros camaradas ainda na metrópole, que era um mundo, onde a camaradagem e a coesão do grupo eram sublimes. Ao caminhar-mos os três em direção às operações senti um arrepio ao pensar nas palavras do capitão Estevinho sobre o alferes Cruz no dia anterior “se este é o mais certinho, imagino como serão os outros”
José Bento, Enf. Paraquedista e Luis Araújo
A noite no bar dos pilotos foi algo especial para mim, sentia-se no ar uma enorme alegria de todos os pilotos, a amizade e camaradagem eram bem evidentes e especialmente o alferes Cruz que me foi introduzindo naquele novo universo, sentia que estava a ser recebido e aceite no grupo.
Depois da noite caótica e animada no bar, fui finalmente para o meu quarto, onde no silêncio da noite, tive uma certeza, tinha ganho um amigo e não me enganei. Passados tantos anos continuamos tão próximos e tão amigos como naquele meu primeiro dia de Mueda, ficou para sempre marcado na minha memória. Por: Gen. Alfredo Cruz

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

GONÇALO LOBATO

6/6/1935 - Destroços do acidente do piloto Gonçalves Lobato

Para quem não sabe a origem do nome do Aeródromo Gonçalves Lobato, em Viseu, tem aqui a história deste grande pioneiro da aviação portuguesa.

António GONÇALVES LOBATO, Militar, nasceu em Lisboa, a 05-04-1909, e faleceu em Viseu, a 06-06-1935. Depois de frequentar o Ensino Comercial, assentou praça como voluntário na Aviação em 1927.
Primeiro-Sargento Mecânico da Aeronáutica Militar (actual Força Aérea Portuguesa). Antes de acompanhar Humberto da Cruz, na viagem de 1934, estivera nos Estados Unidos da América com Plácido de Abreu, e noutros países europeus com outros Aviadores Portugueses.
Humberto da Cruz escolhera-o como companheiro de viagem devido à sua competência, ao seu carácter alegre, aos seus aspectos morais, à sua correcção, aprumo e camaradagem.
Trabalhou como mecânico na Força Aérea Portuguesa, tendo atingido o posto de primeiro-sargento. Em 1931, viajou até à Alemanha e Suécia no avião Lisboa, em conjunto com o major António Maia, o capitão Amado da Cunha e o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca, em missões de estudo para os Serviços Aéreos Portugueses.
Acompanhou o tenente Plácido António da Cunha Abreu numa viagem até aos Estados Unidos da América, a bordo do avião Foguete. Também participou, com o tenente Humberto Amaral da Cruz, no Raid Aéreo Lisboa - Timor - Lisboa, em 1934.
Faleceu em 6 de Junho de 1935, num acidente durante o II Rally Aéreo de Portugal. Nesse dia, descolou de Viseu às 6 horas da manhã com o tenente Tovar de Faro, e aterrou em Espinho às 9h15, tendo de seguida voltado para Viseu. No entanto, quando tentavam aterrar no campo de aviação da Muna, em Viseu, por volta das 10h30, o avião capotou, ficando quase totalmente destruído. Com a ajuda das pessoas no local, o tenente Tovar de Faro conseguiu sair dos destroços, tendo depois sido retirado o corpo do sargento António Lobato. Foram ambos levados por automóvel até ao Hospital de Viseu, onde António Lobato chegou já morto, com todas as costelas fracturadas, enquanto que o tenente Tovar de Faro ficou gravemente ferido. Às 16h30, o corpo foi transportado para a Câmara Municipal de Viseu, num cortejo fúnebre onde participaram muitos populares e as entidades oficiais. O funeral realizou-se no dia seguinte, ficando o corpo depositado no cemitério de Viseu até ser transladado para Lisboa, após as festas da cidade.
Na altura do seu falecimento, tinha 25 anos de idade, e estava noivo.
Aeródromo Gonçalves Lobato - Viseu


"Dos fracos não reza a história."

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O PENSADOR TCHOKWE


Este Pensador foi concebido simetricamente, com a face ligeiramente inclinada para baixo para exprimir um subjectivismo intencional. 
Na sua filosofia, os Idosos ocupam um estatuto privilegiado: A sabedoria, a experiência de longos anos e o conhecimento dos segredos da Vida!...                                                        
E, pensando em nós que, em tudo o que o Pensador exprime é verdade, recuemos ao passado, a Angola, ao Leste dos Tchokwé´s e, trilhemos a nossa Vida, Experiência adquirida pelos anos fora, Sabedoria e…ainda com grandes segredos por desvendar!...
Na partida, sentimos uma saudade que em versos aqui se retrata: A nossa Majestosa esteve sempre presente connosco e ainda dá sinais da sua existência. Sentiu e ainda sente tudo aquilo que se passa em seu redor. Está viva, como nós vivemos a alegria deste 47º. Encontro.

Quando a noite veste de sombras o mundo
E o silêncio me desperta a solidão
Verto lágrimas e o meu sofrer é profundo
Põe-me louco de saudade o coração.

Quando penso que lá longe ela me espera,
Ansiando pelo dia da chegada,
Grito a Deus, que minha alma desespera,
Grito a Deus, mas o silêncio não diz nada.

Quando os pássaros saudando a madrugada
Me despertam para a guerra uma vez mais
Sinto o peso desta vida amargurada
Sinto ódio às minhas "asas" infernais.

Oh ! Henrique de Carvalho, meu desterro,
Que por dois anos me farás teu prisioneiro,
 Se eu morrer quero bem longe o meu enterro,
 Quero ser da paz eterno companheiro.

 Rocha Marques – AB4 - 1969

E O PENSADOR OBSERVA O NOSSO, REGRESSO!...



OS ANOS PASSAM…
As nossas vidas refazem-se e, sobrevivendo, eis-nos presentes neste Convívio, em Argomil. Surge a Esperança de voltarmos a reviver a nossa infância. A voz do Comandante João Pinto vibra e, a luz renasce!










AS JANELAS DESTE ENCONTRO, ABREM-SE!...



NA DESPEDIDA, COME-SE O BOLO




E…RECOLHEM-SE AS BANDEIRAS



ESTAMOS TODOS GRATOS AO SIMÃO CABRAL
SAUDAÇÕES AOS PRESENTES E AUSENTES
ATÉ PR´Ó ANO!...



Texto de V. Oliveira – 17/11/23



quinta-feira, 9 de novembro de 2023

GENERAL ANACORETA ALMEIDA VIANA

Inauguração do Clube de Especialistas, Gen. Anacoreta Viana comandante da 2ª. RA discursando, em 2º plano o Comandante Ten. Cor. Manuel Andrade Fernandes - Foto de Mário Mendes


Foi como aluno piloto que conheci, pela primeira vez, o Ten. Almeida Viana. Não era instrutor dos pilotos mas, dava aulas de Tecnologia, aos alunos mecânicos.
Mais tarde, voltei a encontrá-lo na qualidade de Director da Aeronáutica Civil, ao tirar o Certificado de Piloto Comercial.
Quando fui colocado em Angola (Out 1966) o Comandante da 2ª Região Aérea era, precisamente, o Gen. Almeida Viana.
A sua especialidade principal era Engenheiro Aeronáutico mas, também, piloto. Devido aos variados cargos como Engenheiro, a última função, como piloto, nunca a desempenhou em permanência.
Contudo, gostava de se sentar aos comandos mas, atendendo à idade e falta de experiência, pilotava mas sempre acompanhado.
Na altura, na Base, só havia um único piloto a voar C-45 Beechcraft, sendo necessário qualificar mais algum. Fomos nomeados dois pilotos para esse fim. Fizemos os voos de Adaptação considerados necessários e largados.
Logo depois comecei a ser nomeado para acompanhar o General. Ele fez-me uma “dissertação” em que reiterava a sua qualidade de piloto mas, inexperiente e já “velho” como dizia, mas exigia que em caso de necessidade eu é que era o responsável. Tinha de o corrigir quando necessário.
Assim, pouco depois, num voo de regresso de Cabinda, ao aterrar em Luanda, bate com o trem no chão e vamos para o ar numa posição um tanto ou quanto anormal. Reagi de imediato, tomei os comandos, reponho o avião a voar junto ao solo e, entrego-lhe o avião. Aterrou de seguida e bem. No vestiário volta-se para mim e diz: acerca da aterragem, fez muito bem, é para isso que quero um piloto experiente. Não sabia mas tinha acabado de passar num teste.
Foi por causa desta aterragem que ficou definitivamente a voar comigo. Quando precisava de sair, telefonava-me para saber da minha disponibilidade pois não queria estragar as outras minhas missões. Quando eu estava ausente chegava a aguardar a minha chegada para efectuar as suas saídas.
Entretanto, ainda em 1967, o General é nomeado Comandante-Chefe.
Inicialmente, os voos eram efectuados com o General, eu, o mecânico e o Ajudante de Campo mas, ao fim de pouco tempo, dispensou o Aj. de Campo. Na prática fiquei eu a substituí-lo. Para enfatizar disse-me: a partir de agora andará sempre comigo, vai para onde eu for.
Nesta fase, ainda não me tinha apercebido da profundidade daquele conceito.
Pouco depois, como disse, já na qualidade de Comandante-Chefe foi efectuar uma visita ao Governador da Lunda (na altura Maj. Soares Carneiro, mais tarde General que concorreu a Presidente da Republica), daí termos ido a Henrique de Carvalho. Aterramos eram quase 12 h. O Gen. seguiu nas viaturas da comitiva e, eu fiquei na Base. Almocei e estava a beber o café após o almoço. Toca o telefone – era o “nosso” general, a dizer-me: “então Mestre, estamos à sua espera para almoçar”.
Gaguejei… “mas, acabei de almoçar… e… sim meu general”.
“Já mandei uma viatura para o trazer”.
Tinha acabado de ser posto na “ordem” quase definitivamente.
Ao chegar à residência do Governador, cumprimentando as entidades apresentei as minhas desculpas pelo atraso – tinha estado a aprontar o avião (desculpa).
À mesa (8 pessoas) como se compreenderá, estava com fastio – tinha acabado de almoçar. Aí o “meu” general diz: Ó “Mestre” está mal disposto ou com fastio?
Compreendi que me tinha acrescentado mais uma lição. Não esqueci.
Enchi-me de coragem e virando-me para a anfitriã, pedi desculpas pela minha atitude e, pela minha falha perante as instruções dadas pelo meu chefe. Muito bem. Acharam graça, com especial relevo, para a minha franqueza.
Nunca mais deixei de o acompanhar, até em situações muito delicadas do ponto de vista militar. Não querendo identificar vou dar um exemplo.
Um chefe militar (brigadeiro) recém-chegado a Angola permitiu-se fazer algumas considerações depreciativas dos comandos.
O “general” foi-lhe fazer uma visita surpresa. Conseguimos entrar na Sala do Comando sem sermos detectados. Aí, começou uma “cena”. Sentindo que estava a mais comecei a recuar para a porta para abandonar a Sala. Eu era um simples Capitão e estavam a admoestar um Brigadeiro à minha frente. O General reparou e obrigou-me a ficar…
Normalmente, o General, equipava-se com uma combinação de voo em camuflado mas sem insígnias e, ao apresentar-se para quem o não conhecia, dizia: “Alf. Velho”.
Um dia fomos ao Camaxilo, AM42 destacamento do AB4. Após pararmos o avião, aparece um jeep com um alferes a apresentar-nos cumprimentos e dar-nos transporte. Claro, o General, apresentou-se como: Alf. Velho. Fomos para o bar. O alferes ofereceu-se para nos servirem qualquer coisa e… “meu capitão para aqui, alferes para ali”, enquanto se aguardava a chegada do Comandante (Ten. Cor). Quando este chegou apresentando-se com uma valente continência, dizendo: “muito prazer em vê-lo meu General”. O alferes abriu a boca de espanto e… pediu desculpa pela ignorância. Tudo bem. Foi um momento de descontracção.
Seguiram-se muitas e variadas saídas por toda a Angola.
Já contei noutro local uma viagem a “Terras do Fim do Mundo” – Coutada do Mucusso, junto à fronteira da Namíbia.
Como foi no Fim de Ano, a missão principal era confraternizar com o pessoal mais isolado de Angola. Connosco seguia um convidado especial, o Vice-Reitor da Universidade de Lourenço Marques amigo do general.
Jantamos com os soldados e ficamos até cerca das 3 da manhã em amena cavaqueira. O general tinha um jeito especial para lidar com as pessoas. No dia seguinte visitamos Luengue, Vila Nova de Armada, Cuito Canavale e paramos para visitar a guarnição de Gago Coutinho. Aí esperava-nos um almoço especial mas, o General quis, primeiro, fazer uma visita à Unidade. Passamos pelo Refeitório dos soldados, em pleno almoço – uma bela feijoada. Pretendendo dar uma lição de simplicidade, mete conversa com alguns soldados, gaba o almoço e virando-se para o Comandante do Batalhão pergunta se pode partilhar do almoço com o pessoal. A resposta só poderia ser uma. Lá nos sentamos em agradável convívio. Saiu de lá com um elevado capital de simpatia mas, das classes baixas porque, os outros não gostaram.
Foto com dedicatória
Houve algumas missões muito especiais e até secretas, como por exemplo, uma Reunião no Palácio do Governador em Serpa Pinto com o Ministro da Defesa da África do Sul, e mais 2 entidades com altos postos para negociações quanto a apoios militares da África do Sul. Estive sempre presente, as conversações foram em inglês (levamos um tradutor – oficial da Armada) mas esforcei-me para não querer saber pormenores.
Também recordo o último voo que fizemos. Já de noite de regresso de Silva Porto para Luanda. Expressou-me a sua nostalgia e o desgosto por ter de regressar a Lisboa.
Tinha caído em desgraça perante a capital. Pouco tempo antes as forças vivas locais prestaram-lhe uma grandiosa homenagem. Isto assustou Lisboa. Tiveram medo duma Declaração de Independência.
Para a sua exoneração serviu de desculpa o ataque ao Caminho de Ferro em Nova Lisboa.
Infelizmente já faleceu.
Tenho imensa honra e ficarei infinitamente grato pela confiança que em mim depositou. – Obrigado General Almeida Viana

Cap. Fernando Moutinho


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

VOO 2547, MISSÃO À ÍNDIA

Aeroporto de Dabolim-Goa

Ten. Paraquedista Maria Arminda:
Foi no dia 18 de Dezembro, de 1961 que a Índia foi invadida pelas tropas da União Indiana no governo do seu primeiro-ministro, o Pandita Nehru, como à data se dizia.
Hoje vou recuar no tempo e relembrar porque tal facto fez parte da minha vivência cheia de emoções, que não se apagaram da minha memória.
 Luanda 1961, Maria Ivone Reis
e Maria Arminda Santos 
Prestava serviço em Angola, Luanda, como enfermeira pára-quedista, onde tinha sido colocada; tinha ali chegado a 12 de Outubro de 1961 na companhia das minhas colegas, Maria da Nazaré e Maria Zulmira – já falecidas - chegando a Maria de Lourdes, também apelidada de Lurdinhas, pelo seu aspecto físico mais franzino, cerca de duas semanas depois.
Terá sido entre os dias catorze a dezasseis de Dezembro que nos soou que se encontrava de prevenção uma companhia de pára-quedistas para a hipótese de ser necessário enviá-la para o Estado da Índia Portuguesa; havia notícias de uma possível invasão daquele território por parte dos Indianos, que estavam a concentrar as suas tropas nas nossas fronteiras. A 2ª companhia, comandada à época, pelo Cap. pára-quedista Heitor Almendra, a que estava destinada essa missão, partiria por via aérea até à Beira, através do canal de Moçambique, por ser geograficamente mais próximo desse nosso território e haver habitualmente uma ligação entre Goa e Moçambique assegurada pelos TAIP (Transportes Aéreos da Índia Portuguesa).
Dissemos que se fosse necessário também nos oferecíamos para ir; tínhamos a consciência de que por certo não poderíamos ir todas, dado o trabalho a desenvolver em Luanda. Trabalhávamos nos postos de socorros das companhias, íamos em missões de vacinação às tropas estacionadas na Base Aérea do Negage e outros locais, dávamos apoio ao bloco operatório do hospital militar e na Direcção do serviço de Saúde da Força Aérea, onde também eram tratadas as famílias dos militares e pessoal civil. Acresce ainda que assegurávamos o acompanhamento de feridos e doentes, nas denominadas “Evacuações Aéreas” entre Luanda e Lisboa.
Nessa manhã tratámos da esposa do Senhor Cor. Magro, que a acompanhava, e com quem desabafámos sobre a hipótese da nossa ida à Índia, ao que o mesmo respondeu com ar de troça: “Falam assim mas sabem que não vão, porque se tivessem que ir, se calhar não quereriam”. É claro que estava a brincar connosco pois, além de conhecer o nosso empenho, era acima de tudo nosso amigo. A conversa ficou por ali e combinou-se que à noite, eles viriam a nossa casa, para fazermos o tratamento à senhora.
O dia passou-se tranquilamente e não mais se ouviu falar da saída dos Páras, nem do seu embarque. Após o jantar a Nazaré e eu fomos chamadas à 2ª. companhia (sedeada em Belo Horizonte), a mesma que estava de prevenção, onde alguns militares apresentavam sintomas de paludismo.
Um avião DC-6 da Força Aérea estava a essa hora prestes a partir para Lisboa, com passageiros sem feridos ou doentes, pelo que nenhuma de nós previa viajar nesse voo. Acontece que um rádio chegado pouco tempo antes ao comando da Região Aérea, tinha entretanto dado instruções para embarcarmos com urgência nesse transporte a Nazaré e eu, ficando atrasada a hora de saída do DC-6 até ao nosso embarque.
O capitão pára-quedista Jerónimo Gonçalves dirigiu-se a nossa casa e tendo encontrado a Zulmira e a Lurdinhas, disse-lhes que “tínhamos que embarcar imediatamente no avião que aguardava a nossa chegada para partir” e informou-as de que “iríamos para a Índia”. Como ainda não tínhamos chegado o oficial saiu ao nosso encontro, enquanto as duas preparavam as nossas bagagens com algumas peças de roupa, umas a mais e outras a menos.
Daí a pouco chegámos nós nas calmas, muito longe de imaginar o que se estava a passar; ao vermos a Zulmira, excitadíssima, gritar-nos do alto da janela da pensão da dona Maximina, onde habitávamos, “despachem-se e subam depressa que têm que ir para a Índia”. Começámos a rir, pensando que elas nos estavam a pregar uma partida. Perante as malas de viagem prontas e as palavras do oficial é que ficámos convencidas e, tal como estávamos vestidas, despedimo-nos apressadamente sem tempo sequer para ver as roupas que nos tinham emalado, para um clima que não conhecíamos.
Na saída deparámo-nos com o senhor Coronel Magro, que vinha com a esposa levar a injecção; vendo todo aquele aparato e a nossa pressa interpelou-nos, acabando por saber naquele momento o nosso destino. Escusado será dizer que o senhor ficou perplexo, visto ser um dos comandantes da Região Aérea, mas como o rádio tinha chegado fora do horário normal, não tinha dele conhecimento. Despediu-se de nós, desejando-nos que a missão decorresse bem e ainda brincou acerca da conversa que tínhamos tido de manhã.
A pressa foi tanta que, chegadas à placa, entregámos as malas ao oficial responsável pela carga de embarque de passageiros e muito lestas nos vimos dentro do avião, sem que o restante pessoal se apercebesse. Foi o capitão. Jerónimo Gonçalves quem comunicou ao Senhor General Resende que já estávamos a bordo, a aguardar pelos restantes passageiros; O Gen. Resende era o responsável máximo da Força Aérea em Angola e possivelmente teria recebido a comunicação directa de Lisboa, tendo-se deslocado propositadamente ao aeroporto, para se despedir de nós. Pedimos desculpa pelo lapso e despedimo-nos do Senhor General, com certa estranheza, dado o insólito da situação.
No decurso da viagem para Lisboa comentámos entre nós, que não levávamos nenhum dinheiro nem roupa quente. Íamos com um vestido leve e de manga curta, dado que naquela data em Angola era verão e na metrópole inverno. Depois de quase vinte horas de viagem, com escalas em S. Tomé e na Guiné, chegámos ao aeroporto da Portela cerca das dezassete horas, com um dia gélido, de apenas quatro graus, segundo nos disseram.
Esperavam-nos o Senhor Coronel Kaúlza de Arriaga, Secretário de Estado da Aeronáutica e esposa a Senhora Dona Maria do Carmo Arriaga. Acompanhavam-no o seu chefe de gabinete, Tenente-coronel Troni e um dos oficiais às ordens, o Alferes Francisco Pinto Balsemão; o outro era o Alferes Francisco Vanzeller, que nós também já conhecíamos.
Pensávamos que teríamos tempo de arranjar alguma roupa mais apropriada, mas enganámo-nos. Fomos de imediato com o alferes Balsemão à Embaixada do Paquistão, para tratar do passaporte e do visto, sendo entretanto informadas de que iríamos para Carachi.
Um funcionário da Embaixada pediu-me mesmo se eu não me importava de levar uma encomenda com um relógio de pulso, um presente para a mulher - que se encontrava na parte oriental do Paquistão – a quem eu podia enviar a encomenda directamente do aeroporto de Carachi. Aceitei fazer esse favor ao senhor e fiquei com a encomenda.
Terminadas estas formalidades o alferes levou-nos de seguida para o local onde íamos jantar e entregou-me um envelope com dólares, para as nossas despesas, com a recomendação de que não levássemos nada que nos pudesse identificar como militares e que estivéssemos de novo no aeroporto às vinte e uma horas, para seguirmos viagem a bordo de um avião da TAP (um Super Constellation).
Após essas diligências dirigimo-nos ao Lar das enfermeiras do Hospital de Santa Maria, onde tínhamos trabalhado, e de onde tínhamos saído poucos meses antes. Ali jantámos, revemos colegas, arranjámos roupa adequada para a época e aproveitámos para telefonar à família, sem lhes darmos conta do porquê da nossa vinda e do destino seguinte. Inventámos para todos, que tínhamos vindo trazer doentes, mas por sermos poucas e haver necessidade de voltar, partiríamos de novo após o jantar, não dando tempo para uma visita. A minha família vivia em Setúbal mas, morando a da Nazaré na capital, mesmo assim ela não os foi visitar, tal “o secretismo”.
Todos acreditaram, mas umas amigas mais próximas fizeram questão de nos levar ao aeroporto e aí se despedirem. Esperava-nos o Ten-coronel Troni, que ao ver as acompanhantes disse “que já não embarcávamos, mas que tínhamos que ir com ele”. Não percebemos na altura essa mudança brusca de procedimento. Afinal fomos para ali ao lado, ao aeroporto militar de Figo Maduro. Foi a maneira das nossas amigas regressaram sem nós, não tendo desconfiado de nada.
Maria do Céu e Maria Ivone


Fomos então informadas do conteúdo da missão. Íamos para o Paquistão Ocidental para a cidade de Carachi, onde já se encontravam há alguns dias as nossas colegas a Maria do Céu e Maria Ivone, que estavam muito cansadas; nós íamos revezá-las no seu trabalho, como reforço, no acompanhamento de mulheres e crianças, famílias de militares a prestar serviço nesse território, que estavam a ser retiradas, de Goa, através da ponte aérea assegurada pelos TAIP e posteriormente evacuadas para Lisboa pelos aviões da TAP. Estavam nessa missão o chefe da mesma, um representante do nosso Ministério do Ultramar, o Dr. Espinheira, o Major médico da Força Aérea, Dr. Fernandes Tender e o sr. Rodrigues, Relações Públicas da TAP.
O Aeródromo Base nº,1 de Figo Maduro, estava em silêncio e pouco iluminado, o que estranhámos; o avião da TAP mantinha-se ali, imobilizado, parecendo que esperava por algo para ser posto em marcha e rolar para a pista. Pouco depois apareceu o Chefe do Estado Maior da Força Aérea, General Mira Delgado, que nos veio desejar boa viagem; ficámos um pouco curiosas e apreensivas perante tanta despedida e votos para que tudo corresse pelo melhor.
Colocaram-nos na zona da 1ª. classe do avião, comunicando-nos que qualquer pergunta do pessoal de bordo sobre a nossa presença deveria ser remetida para o piloto, comandante Magro (que viemos a saber posteriormente ser irmão do Coronel que estava em Luanda). Fomos informadas de que só sairíamos, definitivamente, em Carachi.
Passado pouco tempo sentaram-se atrás de nós cinco ou seis homens trajando à civil; soubemos mais tarde tratar-se de oficiais e sargentos do nosso exército, da arma de engenharia, enviados à pressa nessa missão. Ouvimos o ruído de um carro, que pude divisar da janela do avião, um carro grande, com capota de lona vi encostar ao avião, não tendo conseguido detectar mais pormenores. Passado pouco tempo arrancámos para a placa do estacionamento do aeroporto, para a entrada do pessoal de cabine, duas hospedeiras e um comissário de bordo que, penso eu, só nesse momento souberam para onde iam voar, porque nos perguntaram pelos bilhetes; respondi-lhes que perguntassem ao comandante o avião.
Por volta das onze da noite locais descolámos rumo ao nosso destino. Nessa altura, disse à Nazaré: “Com todo este aparato, achas que nos vai acontecer alguma coisa? Uma das hospedeiras deu-nos cobertores para nos taparmos e dois banquinhos para descanso das pernas, pois a viagem ia ser longa e nós, poucas horas antes, tínhamos chegado dum local bem distante. Dormimos tranquilamente algum tempo, até porque estávamos muito cansadas e havia que recuperar forças para o que viesse.
Recordo-me que quando acordei para não mais dormir até à chegada no outro dia já de noite, talvez por volta das vinte horas locais, ter sobrevoado as costas da Itália, Grécia, Turquia, as Ilhas de Rodes e Chipre, até fazermos a primeira paragem no Líbano, na cidade de Beirute, onde almoçámos e o avião foi reabastecido.
Toda aquela vista aérea me encantou, pois foi feita com condições atmosféricas favoráveis e o mar mediterrâneo por baixo de nós, de tons de verde e azul, fascinou-me. A aproximação ao Líbano mostrava-nos uma cidade que me parecia ser linda. Não deu na ida para a apreciarmos, mas na vinda pudemos visitá-la. Ao sairmos para o restaurante reparámos então no avião seguiam umas dezenas de rapazes, que tinham em comum peças de vestuário iguais: nuns, eram as camisas, noutros as gravatas, ou sapatos e até as meias. Não nos foi difícil de adivinhar que se tratava de militares.
A vida é um misto de acasos e emoções. Aconteceu que na nossa mesa se sentou, entre outros, um jovem que na minha frente me olhava, parecendo rebuscar na sua memória a minha fisionomia, para chegar à conclusão de onde me conhecia. Porém, eu com a minha memória de elefante, que afirmam que tenho, reconheci-o de imediato. Comíamos em silêncio, quando o rapaz mete conversa e me diz conhecer-me, embora não se lembre donde. Sorri nessa altura e perguntei-lhe se não tinha uma cicatriz, por cima do ombro direito, respondendo-me afirmativamente, muito espantado.
De repente, exclama “Srª. enfermeira Lopes Pereira, o que faz aqui no meio de nós?” ao que lhe respondi, que ia no mesmo passeio turístico que ele. Ficou espantado e de repente começou a falar do que os jornais tinham noticiado sobre as primeiras mulheres pára-quedistas e eu pedi-lhe que se calasse. Tinha estado internado no meu serviço no Hospital de Santa Maria, meses antes de ir para a tropa e por esse facto, estava muito presente na minha memória.
Despedi-me dele em Carachi; continuou viagem para Goa, ficou prisioneiro e nunca mais o vi. Prestes a chegarmos ao Paquistão o comandante mandou avisar-me que possivelmente teria que seguir directamente para Goa e assim sendo, não nos deixava em Carachi. Eu como mais antiga, era a interlocutora, respondendo que as ordens que recebera eram para ficar ali e não noutro lado.
C-54 Skymaster
Não sabíamos o que se estava a passar mas o comandante, via rádio, sabia que o assalto ao aeroporto podia estar eminente. A invasão já tinha começado e o avião dos TAIP, que deveria estar em Carachi, para fazer o transporte do material de guerra e os militares para Goa, que connosco tinham viajado, não tinha conseguido sair, pelo que o nosso avião fez uma paragem técnica. O pessoal saiu para comer e voltar para continuar a viagem. Nós ficámos em Carachi e, talvez por volta da meia-noite, soubemos que o aeroporto em Goa tinha sido bombardeado; desconhecíamos o que acontecera ao avião e a todos os que iam a bordo, incluindo a tripulação.
Na viagem até Carachi fomos muito bem tratadas pelo pessoal de cabine, de cujos nomes tenho pena de não me recordar. O comissário de bordo, ao conversar connosco, contou-nos que era casado e que esperava ser pai do primeiro filho, pois a mulher estava grávida de seis meses. Quando se soube que o bombardeamento tinha sido no desembarque em Goa, as palavras do comissário não me saíam do pensamento, embora estivesse preocupada com todos os que iam naquele avião, com menos sorte que nós.
Ninguém no grupo sabia da missão, que aquele avião ia chegar e o que transportava. Carachi era uma cidade de espionagem intensa e estava em guerra há anos com a União Indiana, por integração do território de Caxemira, cuja posse ambos reivindicavam. Se o governo indiano soubesse desta missão, da ajuda e das facilidades de manobra que o governo paquistanês nos tinha concedido, por certo nos teriam abatido, daí todo o grande secretismo à volta deste voo.
A Maria do Céu quando viu chegar o avião e este se imobilizou, disse ao Dr. Tender: “parece a Maria Arminda que vem ali à janela, mas não pode ser, porque ela está, em Angola”. Foi um espanto para todos a nossa chegada - os homens pareciam pertencer a grupos desportivos, até transportavam alguns sacos de rede com bolas, o que eu e a Nazaré não tínhamos visto, na paragem em Beirute e ficámos espantadas e convictas de que se tratava de uma missão secreta.
Aquela noite foi um pesadelo, não nos deitámos, apesar do alojamento disponibilizado ser nas instalações do aeroporto, num piso térreo, que as várias companhias estrangeiras que nele operavam tinham para descanso das tripulações. O nosso era da Companhia da KLM. Apesar de muito cansadas permanecemos por ali a fim de sabermos mais algumas informações através dos paquistaneses, porque de Lisboa ainda menos se sabia e de Goa, nem pensar. Mais nada se soube e foi com forte angústia que por ali fomos ficando, em alerta a novos acontecimentos.
Entretanto encontrava-se ali estacionado outro avião da TAP que iria transportar algumas crianças e as últimas mulheres e que aguardava partida para Lisboa; entre elas estava uma grávida, em fim de gestação. Foi decidido que seguiriam nesse voo a Céu e a Ivone e que ficaríamos nós, Nazaré e eu. com os restantes elementos da missão, até chegarem ordens de Lisboa. A ansiedade que nos tomou, também tomou a parturiente, que começou a dar sinais evidentes de que o parto podia ocorrer a qualquer momento - o que teria acontecido, se o avião tivesse ido para o ar. Foi de imediato acompanhada pela Maria do Céu e internada numa clínica obstétrica local, tendo nascido uma menina. O pai, um sargento enfermeiro do exército, foi, como todos os outros militares, feito prisioneiro e só veio a conhecê-la, meses depois, quando da sua libertação.
No dia seguinte continuávamos sem notícias, nem de Goa nem de Lisboa. Nessa tarde o Dr. Tender foi confrontado com telefonemas anónimos, em que o interlocutor perguntava se ele era militar, bem como o restante grupo. Essa ocorrência deixou-nos a todos um pouco apreensivos, pois tínhamos sabido que algum tempo antes uma hospedeira da TWA tinha sido assassinada. Quando o avião estava prestes a sair, o comandante foi avisado de que deveria aguardar, porque estavam a caminho dois aviões, que conseguiram descolar de Goa, em condições muito desfavoráveis e escapar ao controle dos radares indianos.
Foi com grande alegria que vimos chegar a tripulação, com o avião que nos transportara, bem como o dos TAIP, que não tinha podido anteriormente descolar de Goa, trazendo o pessoal civil que trabalhava no aeroporto e o director da Emissora de Goa. Com os novos acontecimentos ficámos todos em Carachi, até a senhora ter alta; no dia vinte à tardinha, o avião dos TAIP (ainda com marcas dos estilhaços de bombas) iniciou a viagem de regresso, transportando-nos a nós e a todas as pessoas que tinham conseguido fugir, as restantes mulheres e crianças e a nossa nova passageira recém-nascida.
O avião da TAP ficou no aeroporto, para reparação, tinha sofrido mais estilhaços que o nosso. O que nos trouxe, pilotado pelo comandante Solano de Almeida, era um DC4, muito mais lento, um quadrimotor a hélice, enquanto a primeira aeronave era turbo-hélice e mais rápido. Soubemos de imediato, que seria uma viagem muito mais demorada e com escalas pelo meio. Preocupava-nos além dos condicionalismos existentes, o bem-estar de todos os que estavam a bordo, até porque alguns dos passageiros estavam psicologicamente abalados. Tinham embarcado à pressa, apenas com a roupa que traziam na altura vestida. Acima de tudo preocupava-nos a recém-nascida e a sua mãe. Passámos desde então a assumir o papel de enfermeiras hospedeiras, o que teve a virtude de nos trazer distraídas e ocupadas.
Saímos na noite do dia vinte e a primeira paragem foi na Síria, em Damasco, apenas para reabastecimento; daí seguimos para o Líbano rumo à cidade de Beirute, onde pernoitámos, sobretudo para descanso da tripulação, que era única para toda a viagem. Este percurso, segundo o que os pilotos nos disseram, foi mais demorado porque o avião tinha que subir lentamente acima dos montes da cordilheira do Líbano, que separa este país da Síria, não sendo as condições as mais favoráveis, pelo que teve que subir em espiral até atingir a altitude de segurança.
No dia seguinte, vinte e um à noite, descolámos para mais um percurso; mas a paragem na cidade de Beirute tinha-me permitido visitá-la, pois era linda e com duas zonas distintas: uma parte mais antiga, no centro, e outra, nova, de enormes edifícios, que lhe valeu pela sua imponência a designação da “Riviera do Oriente”.
Aterrámos em Beirute já era escuro, com mau tempo e chuva intensa; e foi debaixo desta, que a Nazaré e eu deixámos o hotel onde estávamos alojados e procurámos uma farmácia próxima para comprar, material de penso a fim de tratarmos o cordão umbilical da bebé, que ainda não tinha caído. Escusado será dizer que sem qualquer protecção e a água a entrar no pescoço e a sair nos calcanhares, nos deixou molhadas até aos ossos, mas foi por uma boa causa.
Aproximava-se o Natal e a cidade com enfeites alusivos ao mesmo, com cedros e pinheiros de montanha, fascinou-me. Actualmente e com o grau de destruição que caiu sobre a mesma, a paisagem deve ser muito diferente e alguns daqueles imponentes edifícios da zona moderna, penso que foram em parte destruídos nos conflitos mais recentes, a avaliar palas imagens televisivas que nos têm sido mostradas nos últimos anos.
Na permanência em Carachi, também fui, mas sozinha, ao centro da cidade, tendo utilizado um riquechó, tipo lambreta com capota de lona, onde o dono levava uma esteira. Era cerca do meio-dia e para meu desespero, chegou a um local onde se encontravam vários veículos iguais, mandou-me descer e apontou-me a zona para onde eu me deveria deslocar a pé. Dito isto, puxa pela esteira e virou-se ao que julguei ser para Meca e com os outros, ficou a fazer as suas orações.
Eu ficara num local onde se situavam os Bancos e assim vestida à ocidental a cruzar-me com os naturais, as mulheres de saris e lenços na cabeça, os homens de calças largas e de turbantes, fizeram-me ter algum receio, até porque me veio ao pensamento a história da hospedeira raptada e assassinada, anteriormente à nossa chegada.
Achei a cidade suja; uns vendedores ambulantes nuns carros do tipo dos da venda de castanhas em Portugal, comercializavam um caldo espécie de sopa, ao mesmo tempo que mascavam uma pasta encarnada, que muitas vezes cuspiam para o chão, o que me enojou fortemente e me fez retardar a saciação da fome, que começava a sentir. O trânsito era caótico, com carros sempre a apitar no meio de veículos motorizados, onde também passavam como meio de transporte, vacas e camelos. Uma verdadeira babilónia, que gostei de apreciar, pela sua excentricidade.
A Nazaré aproveitou o dia para visitar uma religiosa sua amiga, que se encontrava num convento no deserto, a uns quilómetros de distância, tendo feito também só, o percurso num táxi que alugou no aeroporto. Finda a visita, a religiosa com outras Irmãs, veio trazê-la na sua viatura por receio e porque era preciso chamar da cidade, um novo transporte.
Na véspera à tarde ela e eu já tínhamos andado num táxi da marca Gogomobil, que era pequeníssimo, conduzido por um homem, muito alto e com um mau aspecto, que dizia saber onde ficava o convento, mas na realidade não sabia. Quando o vimos sair da estrada e meter para um bairro da periferia quase sem luz, onde os homens nas soleiras das portas e fumando os seus cachimbos, descansavam acompanhados de alguns camelos, começamos a ter receio de prosseguir a viagem. Estava prestes a anoitecer e o condutor por informação que outro lhe dera, dizia-nos que esse convento ficava no meio do deserto. Pedimos-lhe então a conta e apanhamos outro carro, que ali estava e regressámos ao aeroporto, felizmente sem mais incidentes. Esta missão foi um misto de aventuras e emoções, mas ainda não tinha terminado.
Descolámos então de Beirute, no dia vinte e um de manhã, desejosos de chegar a Lisboa; nesse percurso apanhámos tanta turbulência que julgávamos que o avião ia cair. Alguns passageiros começaram a ficar assustados e o nosso médico, o Dr. Tender, quase que desmaiou. O susto por que passámos foi tão grande, que resolvemos fazer o baptismo da menina, “sob condição”, fórmula existente na Igreja Católica para situações de urgência, como morte iminente, não invalidando um baptismo, a posteriori, por um sacerdote. A menina a partir daquele momento foi por nós, considerada nossa afilhada.
Após muitas horas de voo, aterrámos debaixo de chuva intensa em Palma de Maiorca, conscientes do perigo que tínhamos corrido, sabendo dos buracos feitos pelos estilhaços na fuselagem do avião na sequência do bombardeamento do aeroporto de Goa. Na viagem um dos tripulantes de nome Vinhas, com quem mais tarde viemos a contactar de perto e com quem voámos muitas vezes, porque era um navegador da Força Aérea, mostrou-nos um estilhaço de uma das bombas lançadas, que tinha apanhado antes de fugir.
Nessa noite pernoitámos na ilha, de onde saímos no dia seguinte, vinte e dois, com um sol radioso, que nos permitiu desfrutar a linda vista aérea e nos animou o espírito. Lisboa estava mais próxima e até já sentíamos o cheiro do Natal.
No final desse dia, avistámos a nossa capital e todos nos animámos; porém, ao sairmos do avião fiquei impressionada com o mar de gente que aguardava a nossa chegada, na ânsia de saberem mais notícias dos acontecimentos e de familiares que tinham sido feitos prisioneiros. A televisão mostrou no noticiário essa chegada e a minha família viu-me aparecer na saída e desfez as dúvidas com que tinha ficado na semana anterior.
Quando em Portugal se soube da invasão dos nossos territórios na Índia, a minha cunhada, tinha dito para o meu irmão: “A tua irmã não voltou para Angola, foi de certeza para a Índia”. E tinha razão, foi por um acaso que não fui lá parar, porque talvez não tivesse tido a sorte de regressar.
Também em Angola, quando se soube do sucedido e o que acontecera ao nosso avião, a Zulmira e Lurdinhas, foram nessa tarde à igreja do Carmo mandar rezar uma missa pelas nossas almas, convencidas que tínhamos morrido nessa ocasião. Contaram-nos depois que a Zulmira dizia para a Lurdinhas, ”Como é que vai ser agora, que grande responsabilidade só ficámos as duas e ainda por cima perdemos as nossas grandes amigas”, respondendo a outra que haveriam de se arranjar; e choravam ambas copiosamente, até que o Dr. Varela - que as acompanhara - lhes disse que ia procurar saber mais notícias, para as tranquilizar; não era fácil, pois as notícias não chegavam a Luanda tão rapidamente, só pela comunicação oficial, por meio dos chamados “Rádios”.
Graças a Deus que cheguei a esta data para recordar todas as emoções vividas nessa missão, tendo todas nós sido condecoradas, pelo então Ministro do Ultramar, Professor Adriano Moreira, com o Grau de Cavaleiro de Benemerência. No dia seguinte depois de cumpridas as formalidades militares, fui à Baixa comprar um casaco por causa do frio, mas tinha dificuldade em caminhar a direito, parecia embriagada por efeito de tantas horas de voo.
No dia vinte e quatro passei no barco para o outro lado do Tejo e com a chuva a cair, vi partir a última camioneta que me levaria para Setúbal. Não podia ali ficar parada mais tempo naquele lamaçal, isto porque o cais de embarque de Cacilhas, era de terra batida. Felizmente apareceu um conterrâneo que estava nas mesmas condições, alugámos um táxi e dividimos a meias a despesa e cheguei a casa. Foi o melhor presente que tive: bater à porta dizer que era eu e não, o Pai Natal, abraçar os meus irmãos e festejar essa quadra com a minha família. Depois do Ano Novo, apanhei com a Nazaré outro avião, de regresso a Luanda.
Maria Zulmira
Esta missão estava cumprida e foram muitas as que realizei ao longo de quase dez anos de vida militar, a maioria nos ex-territórios ultramarinos, de Angola, Guiné e Moçambique, entre outros.
Passados meses sobre a nossa missão, em Maio dá-se início ao repatriamento dos prisioneiros, tendo sido para eles uma eternidade o período em que ficaram privados da liberdade. Foram então nomeadas para essa nova missão, a Maria Zulmira, e a Maria Ivone que rumaram para Carachi. Porém, foi à Ivone que coube o papel de ir ao campo de prisioneiros, como hospedeira da companhia francesa da UAT e acompanhar, entre outros, o General Vassalo e Silva no seu regresso.
Começava outro capítulo da Nossa História Colonial. Tínhamos perdido os territórios do Estado da Índia, a nossa “Jóia do Império”, que tantas tormentas tinham dado aos nossos valorosos navegadores. Confesso que tive pena, nós ficámos mais pobres, sentimentalmente e culturalmente, foi uma perda que a muitos de nós deixou marcas, mas todos sabemos, não ter sido possível, pelas armas, virar os acontecimentos, a nosso favor.
“FOI O COMEÇO DO FIM, DA NOSSA EXPANSÃO ULTRAMARINA, NO ORIENTE E EM ÁFRICA E DO FIM DO NOSSO IMPÉRIO COLONIAL”.
Todos os anos, quando chega o dezoito de Dezembro, recordo e revivo esta missão sem nunca ter esquecido aquela criança, que hoje tem quarenta e nove anos. Algumas vezes perguntei à Ivone por ela e manifestei vontade, de a procurar. Por parte da Ivone tinha havido um contacto entre ambas, mas posteriormente, perdera-se.
Rosa Serra
Nesta data, através de felizes acasos, a minha amiga e colega enfermeira pára-quedista Rosa Serra conseguiu o seu contacto e deu-mo. Finalmente sabia do seu paradeiro. Pude por isso falar-lhe, dar-lhe os parabéns, por mais este aniversário, saber que se chama Ivone Cruz, que é casada, tem uma filha e um filho e vive no Caramulo. A sua mãe já faleceu, mas o seu pai embora idoso, ainda vive.
Assim como eu sempre digo,” A VIDA É OS DIAS QUE NOS LEMBRAMOS”.
Espero que Deus me permita por mais alguns, lembrar-me desta data, que para muitos, foi dolorosa e lhe possa continuar a dar os parabéns.












Maria Arminda Santos
Ex: Tenente Enf. Pára-Quedista