quinta-feira, 29 de outubro de 2020

OS KHUM


Chegámos, eu e os meus companheiros, a um acampamento de Bosquímanos. Alguns abrigos feitos de paus, folhas e ervas, muito rústicos, para se abrigarem do sol escaldante durante o dia e do frio da noite, e como sempre, muitas crianças, de barrigas enormes, e algumas mulheres jovens e adultas, idosas não havia.


Os homens andavam esgravatando a terra seca à procura de raízes comestíveis, de frutos selvagens, colhendo mel ou caçando animais de pequeno porte, que constituem as suas magras refeições e que ocupa a maior parte do dia de um bosquímano, o grande problema é encontrar água. Basta dizer, onde este povo consegue sobreviver, nas terras estéreis do Cuando Cubango, nenhuma outra raça consegue sobreviver. Apesar desta fraca alimentação são robustos e as mulheres, belas e muito sorridentes.


Felizmente que tínhamos um guia, de uma outra etnia, que nos levou ao local pois os seus abrigos confundem-se com a mata e é difícil encontrar um acampamento.
Muitos quilómetros antes já eles sabiam que estranhos vinham na direcção das suas cubatas e então escondiam-se no meio da vegetação num silêncio total. 
Depois de algumas palavras do guia no seu dialecto, muito curioso de estalidos com a boca, lá apareciam, como zombies, muito medrosos e cheios de receios. Depois de uma oferta de cigarros, sal ou açúcar, era uma felicidade para este povo que tanto sofreu durante décadas. 
Uma anedota que se passou com o Guy: vendo os dois garotos da foto muito sujos, deu-lhes 2 ou 3 pequenos sabonetes do hotel, para se lavarem, e qual foi a surpresa do meu companheiro quando viu os miúdos os comerem…
À noite, à volta da fogueira, era uma alegria. Cantos e danças ritmadas com o bater das mãos. Temos registados estes momentos em gravações e em filmes de 16 mm.
Quando desci o rio Cubango em 1972 encontrei outros povoados organizados pelo Governo Geral, que pretendia, com enorme esforço, formar uma nação Khum e assim evitar o domínio de outras etnias sobre este povo tão sacrificado. A revolução de Abril deitou por terra toda esta nobre tarefa.
Por onde param agora? Uns fugiram para o Namibe ou para o Botsuana, outros andam escondidos nas matas das Terras do Fim do Mundo. Continuam a sofrer, ninguém e nenhuma Nação os protege. Este povo, pacato, que foi o primeiro a povoar a África Austral, foi corrido das suas terras por outros povos guerreiros, vindos do Norte, que os reduziu em escravatura, e ninguém se preocupa com isso.
O RENASCER DOS KHUM
É uma história triste e muito incompleta a que trago, do Cuando-Cubango, para contar. Uma história larga de centenas de anos com capítulos esparsos pelas pinturas animistas das grutas do welt, reinventada em cânticos de cantar à volta da fogueira, guardada na memória não ordenada dos mais velhos, nas cicatrizes de queimaduras que lhes desenham o peito e costas, nos ventres espantosamente esféricos, desproporcionados.
Aviso que este conhecimento representa, também, uma obrigação: a de tentar fazer alguma coisa por este povo, nobre e escravo, que se extingue, brandamente, silenciosamente, humildemente, quase desculpando-se por ainda existir.
O som de metal contra metal, vibrante em três notas claras, acorda o TUXU, a aldeia. Das toscas cabanas, que parece serem apenas tecto, ergue-se em resposta um coro largo de tosses brônquicas. Faz frio, sempre, pela noite e manhã adentro, no Cuando-Cubango. Um frio seco e mordente, que chega depressa aos ossos. Pelas portas ovais das cubatas, uma estrutura simples de troncos em abóbada, coberta a capim, surgem vultos de crianças.


Do colmo, filtra-se o fumo das pequenas fogueiras, acesas no escuro interior, para a primeira refeição do dia.
A aldeia anima-se, enquanto o sol sobe, discretamente, para lá tão longe que nem aquece. Vultos friorentos, de mulheres e homens, aparecem a ver a manhã que nasce sobre o único grande acampamento KHUM, a Vila Administrador Pereira Pontes, existente em toda a Angola. Será, mesmo, por um conjunto de circunstâncias, local único em toda a África.
Ganguelas e Kiokos chamam-lhes, depreciativamente WASEKELLE, os etnólogos e outros entendidos BOCHIMANES ou BOSQUIMANOS. Parece que poucos curaram de saber como eles próprios se chamam uns aos outros – um nome sonoro, firme e orgulhoso: os KHUM.
Enquanto Alberto, o chefe das milícias, grita para a formatura, desautorizando os dorminhocos, Gonçalo Mesquita, um homem grande e loiro, de olhos frios, com uma história que passa pela Legião Estrangeira e pela O.A.S., fala, com estranho amor, desta gente. Ao princípio, em Outubro de 1969, eram apenas 37, agora, ascendem a mais de 700 almas e seriam duas mil se, para tanto, lhes dessem condições mínimas que fossem.
Nesta aldeia se desperta um povo para a vida de hoje.
Se lhe insufla a dignidade perdida, ao longo de dezenas de anos de escravidão feroz. Se lhe dá uma condição humana. Pode estar aqui, o embrionário, o ressurgir da "nação" KHUM, que terá hoje à volta de 10 mil membros (não recenseados) dispersos pelas chanas do Cuando-Cubango, pelas faldas da serra da Chela, pelos caminhos quentes e quase secretos do Namibe.
Gonçalo Mesquita fala do pouco que tem, do muito que precisa, da falta de apoio oficial para a iniciativa.
Mostra o que está feito – tão pouco ainda – desbobina conclusões e recomendações, a terminarem, sempre, com a mesma frase: "Este povo merece que se faça alguma coisa por ele"...
Um açude represa, numa lagoa, a água necessária às culturas, que vicejam na terra fértil: é o feijão e o milho, é a alface e a "tronchuda", em grandes e cuidadas hortas.
Parece pouco importante, para quem não saiba o que se passa no Cuando-Cubango onde, num ano, o Estado despendeu qualquer coisa como 12 mil contos, na alimentação de populações recuperadas. Para quem não saiba que todos os frescos consumidos em Serpa Pinto vêm de Sá da Bandeira, de comboio.
Os KHUM, neste aspecto, encontram-se quase auto-suficientes. Sobre sacos de sisal, no meio da aldeia, seca-se a última colheita de feijão encarnado.
Mulheres pilam, à maneira ancestral, quantidades de milho. Ainda assim, a vida não é fácil. Faltam o vestuário, os cobertores, os medicamentos, apesar do auxílio das Forças Armadas, dos comerciantes e particulares de Serpa Pinto, também tocados pela obra grande que se realiza. E era ponto assente que os KHUM não serviam para nada, nada sabiam fazer, salvo caçar quando a fome lhes apertava os estômagos vazios, salvo colher frutos e raízes na floresta…
Afirmam-nos pioneiros e exploradores, nas suas crónicas de viagem, onde os descrevem como seres repelentes, piores do que animais, desconhecedores da agricultura, da criação de gado, ignorantes do trabalho do cobre e do ferro. Viajantes que já encontraram os KHUM submetidos pelos Bantos, após uma guerra de extermínio, puro genocídio para varrer este povo da face da Terra. Quase o conseguiram.
Os conhecimentos ancestrais não se perderam. Hibernaram apenas, através das gerações escravizadas e ressurgem, agora, em toda a sua pujança.
Nas lavras, juntas de bois puxam o arado. Um bochimane senta-se ao volante do único tractor, emprestado, que serve à aldeia para os trabalhos mais duros. Fá-lo com evidente à vontade, como se nunca tivesse feito outra coisa, ele que há bem poucos meses era menos do que um pária, tutelado a um "senhor" Kioko ou Ganguela. 
No entanto, os KHUM eram os verdadeiros senhores da terra, antes das grandes invasões dos povos Bantos, vindos do Norte, antes dos Holandeses do Cabo, para fugirem à dominação inglesa (1838) terem ultrapassado a barreira das montanhas do Drakenberg, rumo ao interior.
Na tosca enfermaria, onde falta o essencial, a esposa de Gonçalo Mesquita faz o que pode pelos doentes, quase sempre velhos, esqueléticos, de braços e pernas tão finos que parece possível parti-los, com as mãos, sem esforço. O maior problema ainda é, porém, a fome crónica que quase todos os habitantes de Vila Administrador Pereira Pontes trazem bem marcada no corpo acobreado.
DA GLÓRIA À DERROTA
A história da Nação KHUM anterior à guerra em duas frentes, que terminou com a derrota e a dispersão das tribos, é quase desconhecida. Os primeiros testemunhos sobre este povo chegam-nos através dos Holandeses do Cabo, que lhes invadiram os domínios e os dizimaram.
Já por esse tempo estavam em luta aberta com as tribos Bantos – sobretudo de Ganguelas e Kiokos – que desciam do Norte, em vagas imparáveis.
Os KHUM "não pediam quartel e nenhum quartel lhes davam". Lutavam até à morte, mesmo depois de feridos, o pequeno arco semicircular despedindo flechas ervadas com veneno mortal e doloroso, a ponto de forçar os atingidos a esburacarem a ferida, com a lâmina da faca, até cortarem tendões e vasos sanguíneos. Muitos tinham espingardas, compradas aos pumbeiros, em troca do marfim, da liamba, do cobre.
Esta situação desesperada atingiu o seu auge e declinou rápidamente para a resolução fatal entre os anos de 1800 e 1860. Já no princípio deste período o extenso domínio dos Bochimanes se tinha reduzido à região ao longo do Rio Grande, às nascentes meridionais e centrais, no que viria a ser o Estado Livre de Orange. Contudo, até neste momento da sua maior miséria e isolamento eles pareciam manter intacta uma certa dignidade, abandonada por outras raças.
O crepúsculo da Nação KHUM é contada por eles em admiráveis pinturas rupestres, descobertas e estudadas pelos etnólogos sul-africanos até à exaustão. Por nossa parte, as que se encontram no deserto do Namibe, muito mais recentes, nada se conhece, donde talvez seja possível concluir que os KHUM de Angola já provêm do êxodo das tribos originais agora dispersa pelo Sul da Província.
Ainda hoje é possível reconstituir-se - se para tanto se
agir depressa – parte da cultura deste povo.
Fê-lo Pereira Pontes admirável figura de velho funcionário administrativo, toda uma vida sacrificada ao Quadro, compêndio vivo de usos e costumes das tribos desta zona, uma experiência dos "velhos bons tempos" difícil de encontrar...
Porém, não é um etnólogo. Fê-lo, com maiores conhecimentos, o venerável Padre Carlos Esterman, mas muito campo virgem resta, ainda, por desvendar.
A vida para os KHUM era bem diferente da desta aldeia, organizada, por imperativos evidentes, como um 48 grande quartel. 
A ordem – social era a Monarquia. Un rei, o Ku-vê, um vice-rei, o Kai-Há, um ministro (?) Nê-Kau.
Havia os Donzi, chefes de guerra, os Maku-Mã, seus subalternos, os Nahim-Kau, os guerreiros. Cultivavam lavras, San-guê nos tempos da chuva Xinam-já, no tempo seco à margem dos rios. Trabalhavam o ferro Ká e o cobre Kanu. As mulheres, e só elas, moldavam o barro, que os homens, se o fizessem, perdiam a virilidade.


Os velhos, hoje, repelem com notável veemência o vocábulo Kau – a tribo, substituindo-o por KHUM, – a raça, agora que já são poucos. Ainda assim, recordam os nomes de, pelo menos, doze grandes tribos, vivendo em povoações fixas, Tu-xu, de casas feitas de pau, as paredes cobertas de cascas de árvores grossas, telhadas a capim.
Chamavam T'xu-num a essas cabanas, bem diferentes das de hoje, que parecem esfiadas cabeleiras de Beatle erguidas sobre a terra arenosa.
E tinham armazéns de víveres Un-con-si. Só a existência deste vocábulo na lingua KHUM, que se entremeia de estalidos, seria prova suficiente para desfazer o mito do nomadismo. O Administrador Pereira Pontes ainda encontrou vestígios de lavras de tempo seco, feitas pelos Bochimanes, à margem dos rios, montículos de terra, de 40 centímetros de altura, para evitar o excesso de humidade.
Em 1880, os KHUM do Cuando-Cubango ainda se dividiam em tribos, gozavam de estabilidade política e social, possuíam espingardas, cabras e os seus filhos eram "crianças encantadoras e fortes", como o são, algumas, hoje.
A ocupação portuguesa do Cuando-Cubango iniciou-se em 1909-1910.
Já este povo se encontrava completamente escravizado, pelas tribos Bantos, que "sempre os guerrearam com ódio feroz (...) devorando-os e fazendo outros escravos, nas proximidades das suas povoações".
Para vencerem estes restos dispersos do que fora a maior nação pré-banta da África Austral, ainda assim usaram do traiçoeiro estratagema de envenenarem, durante um banquete, os seus chefes de guerra. Foram os Ganguelas, auxiliados pelos pumbeiros Kiokos que para ali iam, traficar borracha, que se encarregaram da tarefa e da horrível matança que se lhe seguiu. 
Começara o tempo da escravidão. Sem chefes, os KHUM foram rapidamente subjugados e feitos escravos. Por uma espécie de justiça imanente, os Kiokos despojaram, depois, os Ganguelas das terras conquistadas aos Bochimanes...
A ESCRAVIDÃO
Trinta e três anos depois de Bernardino José Brochado por ali passar, apenas quatro anos depois dos testemunhos do Padre Carlos Duparquet, os exploradores Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto referem-se a "fragmentos de população, evidentemente distanciados pelo aspecto, língua e costumes das tribos de raça negra, no meio dos quais vagueavam."
"Estamos em presença duma raça indolente, d'um typo infimo da humanidade, que nenhuma esperança ou desejo despertam para as lutas da vida". " Não praticam nem conhecem a agricultura. Não conhecem o ferro nem o bronze. Não têm previdência. A pátria, para eles, é o chão onde acendem hoje o fogo, é a caverna ou a fenda das rochas onde se abrigam, de noite, com a mísera prole".


Capelo e Ivens dizem: "Nada há de mais abjecto e repugnante do que esse arremedo de homem, que hoje vagabundeia pelos bosques e campinas(...) tão revoltante é esta raridade do humano género, tão mesquinho o seu ar, apoucado o vulto e estranho o modo, que degrada e aflige ter que descrevê-lo. É como se em frente de nós se erguera um cadáver e, parando, nos fitasse, envolto em miséria e frio..."
Que diferença vai desta descrição, à do Padre Duparquet: "DONGA: nas costas desta, 20 a 25 léguas, há um mato habitado por Mucuancalas (Bochimanes) que diferentes da raça têm residência fixa, sendo donos de grandes minas de cobre, que é sabido existirem naquelas partes".
Só esta gente do Donga comerciava com os KHUM.
Os outros, segundo o narrador, eram mortos imediatamente.
Brochado, nas suas crónicas de viagem, afirma que os KHUM têm residência fixa e impedem o trânsito, pela via mais rápida, entre o Cuanhama e o Mucusso, obrigando a uma volta por Cafima.
O que se passou, entre os relatos de uns e outros; terá sido uma guerra de puro genocídio. Os Bochimanes sobreviventes foram distribuídos pelas tribos Bantos vitoriosas e feitos escravos – o tráfego de escravos fora abolido em 1815 e a escravatura em 1836 – e concentrados em acampamentos.
O Administrador Pereira Pontes, numa curiosa monografia sobre os Wasekelle, descreve um desses acampamentos, que visitou em1938:
"Ao fim de dois dias de viagem, montado num burro, cheguei à povoação do queixoso e, meia hora depois, acompanhado da autoridade tradicional dessa povoação e doutros Bantos, encontrava-me, muito surpreendido, entre os Bochimanes. Nada revelava que o local fosse habitado por seres humanos.
A população desse acampamento era de cerca de 50 pessoas, de ambos os sexos, e de todas as idades. Havia mais crianças do que adultos e mais mulheres do que homens. Todos andavam totalmente nus, apenas usavam uma minúscula pele a tapar-lhes o sexo. Essa pele, como depois me disseram, era de coelho, tida como a mais ordinária, que nenhum homem ou mulher livre usaria, por vergonha, só os escravos a usavam. Só as mulheres dos Bochimanes eram autorizadas a confeccionar, com peles de pequenos antílopes, uma espécie de alforge, para carregarem os filhos às costas.
"Na mata onde se situava o acampamento dos Bochimanes, as árvores eram esparsas umas das outras, o que a tornava clara e, de permeio, cresciam pequenos arbustos, de cerca de dois metros de altura. Vim a saber, depois, que não era permitido aos Bochimanes o corte de qualquer árvore ou arbusto.
"Nem o acampamento, nem as pessoas que nele viviam, podiam ser vistos ao longe. Por baixo da copa dos arbustos viam-se pequenas concavidades, parecidas com as que os animais abrem com o dorso quando se espolinham, que me disseram serem abertas, à mão, pelos Bochimanes, para, à noite, lhes servirem de cama, espalhando em cima dessas concavidades folhas tenras, para não magoarem os seus corpos nus nos grãos de areia. Por cima das copas dos arbustos, todos eles sem folhas, (…) viam-se pedaços de capim, cuja utilidade se não percebia.
"Os acampamentos eram fixos e só eram mudados com os Bantos quando mudavam as suas povoações para outro local. Os Bochimanes estavam, a todo o momento, ao serviço dos Bantos, a quem pertenciam. Não se podiam ausentar em momento algum, nem mesmo para procurarem alimentos.
"Como compensação, recebiam os farelos das farinhas peneiradas pelas mulheres dos Bantos a que pertenciam, com uns pequenos atados de folhas de cânhamo (liamba)".
Os Bochimanes eram marcados com os sinais característicos de cada tribo Banto a que pertenciam: Os Kiokos obrigavam-nos a limar os dentes em vvv, os Ganguelas em arco, os Vakangalas em arco também, mas com as pontas exteriores afiadas.
Marcados como se marca gado. E como gado, aliás, eram tratados.
O velho funcionário administrativo prossegue a espantosa descrição: "Nada, absolutamente nada, se via naquele acampamento que, aos olhos dos leigos, pudesse revelar coacção. A disciplina era discreta e eficientíssima. A sujeição era absoluta".
Assim se reduziu um povo à condição de animal, e animais eram para os seus senhores, que nem lhes chamam "homem" e "mulher" mas sim "macho" e "fêmea".
A liamba, prodigamente distribuída, retirava-lhes o raciocínio. Mesmo as crianças de peito, trocavam a teta da mãe pela boquilha da mutopa, o cachimbo em que se fuma este estupefaciente. Depois, o frio das noites do Cuando – Cubango, que desce a 8º C, um frio suportado, sem outro vestuário que a desonrosa pele de coelho, um frio torturante e maligno que justifica, hoje, as cicatrizes de queimaduras ostentadas pelos mais velhos, no peito e nas costas. Eles lançaram-se sobre os carvões das fogueiras, acesas ao lado das "concavidades" que lhes serviam de cama, para se aquecerem. Por isso a referência: "É como se diante de nós se erguera um cadáver e, parando nos fitasse, envolto em miséria e frio..."
A sujidade lhes servia de cobertor. Sobre as queimaduras "muitas infectadas, criando crostas por onde escorriam serosidades", amontoava-se o pó da terra e a cinza das fogueiras. De senhores da terra passaram a escravos.
Perderam-se as antigas designações tribais, enquanto os vencedores os chamavam pelo nome de bichos, como Vasekelle e Vakwankala. Nada tinham, nem o direito de erguer casas para viverem. Eram animais de compra e venda, completamente subjugados. E parecia, aos olhos dos leigos, não haver a mínima coação...
Só em 1952, o Administrador Pereira Pontes chama a atenção dos seus superiores para os Bochimanes, que"viviam num regime de tutela, imposto pelos Bantos, desde que estes ocuparam os seus domínios, tutela essa de que acha imperioso e urgente libertá-los"...
O FIM DA ESCRAVATURA BANTO
Também ao Cuando-Cubango chegaram os homens do "contracto", em busca de braços que trabalhassem o 55 café do Norte. Kiokos, Ganguelas e Lundas também se integravam nestas caravanas. Até perceberem que, para trás deixavam o escravo, que bem os podia substituir, com a vantagem de lhes receberem o dinheiro ganho, noutras terras, quando voltassem.
A medo, começaram a apresentar os KHUM aos contratadores, que os aceitaram. E eles foram e viram e aprenderam que havia outra vida possível, para além daquela
dos acampamentos. Aprenderam. E revoltaram-se. Há rumores de chacinas de KHUM, como "exemplo", mas nada se confirmou. Os segredos, no mato, raras vezes chegam a ouvidos estranhos.
O certo é que, grande parte deles, depois de virem dos contractos, desapareceram. Muitos foram viver para longe da tribo a que pertenciam – e passaram palavra. Este ciclo da história KHUM inicia-se em 1950. Pouco a pouco, reuniram-se em aldeias escondidas nas profundezas das chanas. Libertaram-se da tutela.
Uns e outros se viram, repentinamente, envolvidos na guerra de guerrilha que se desenrola, há anos, no Cuando-Cubango. Não havia lugar, para os KHUM, nas hostes da UNITA ou do MPLA, por isso mergulharam ainda mais fundo nas matas. Outros, seguiram os senhores Bantos na clandestinidade. Ainda outros procuraram a protecção das autoridades. Em breve com ela colaboravam, como pisteiros.
GUERRILHEIROS POR EXCELÊNCIA
A milícia está formada, com Alberto à frente, na parada da aldeia. Os homens parecem frágeis. As feições mongolóides, a pele cor de cobre, a gentileza da ossatura, recordam os vietnamitas, que tanto se lhes parecem.


Os mesmos olhos amendoados. Apenas o nariz amachucado os diferencia dos rostos enigmáticos que ressaltam das reportagens de guerra feitas na antiga Indochina. E também estes são guerrilheiros, dos melhores que pode haver, frugalíssimos, leais, com uma motivação forte para o combate, com um conhecimento profundo da terra e dos hábitos dos seus ex-donos.


Depressa o provaram. Foram treinados nas artes da guerra. Deram-lhes armas automáticas – a G3, a FN – e hoje estão espalhados por todos os aquartelamentos do Distrito, fidelíssimos, arrojados no combate. Todas as operações dos KHUM, iniciadas em 1967, tiveram resultados positivos. Armas capturadas, centenas de granadas, milhares de munições. Centenas de cabeças de gado foram, por eles retiradas da alçada do inimigo. Quanto a populações, só o ano passado devem ter trazido para o convívio português, entre cinco a seis mil pessoas. E trouxeram quilos de documentação, de "quartéis" da UNITA e do MPLA.
Conhecem a mata: A necessidade obrigou-os, nestes anos de escravatura, a aprenderem a subsistir com os recursos da mata. Apenas precisam de um bolso de sal para fazerem, a pé, em tempo incrível, percursos de 300 quilómetros.


Os KHUM não gostam de fazer a guerra acompanhados. Preferem ir sozinhos, depois de, mesmo ali na parada, terem devorado duas ou três rações de combate – "porque fazem muito peso". De compleição frágil, não suportam as mochilas, nem delas precisam. Apenas um cobertor, a arma, granadas, as munições. E um punhado de sal. Os chefes de grupo aprenderam a ler os mapas. O mais importante sucesso por eles alcançado, terá sido a morte (ainda não confirmada) do comandante-geral da UNITA numa operação de assalto a um acampamento da UNITA-SWAPO. Quinze KHUM abriram fogo, de surpresa, das próprias trincheiras do acampamento, armaram um "pé de vento" desgraçado, fizeram debandar os guerrilheiros – entre 40 a 50 – capturaram armas, munições, granadas, importante documentação.
No regresso um dos KHUM identificou, em fotografia, o chefe terrorista, que disse ter tombado com uma bala na cabeça e muitas no peito. Além disso trouxe toda a documentação pessoal daquele chefe terrorista, que não chegou aos 40 anos, especializado em guerrilha pela Academia Militar de Pequim. De caminho o grupo trouxe, também, uma bandeira da UNITA, hasteada no acampamento, novinha em folha, fabricada no Cairo.
Estas espantosas forças de contra-guerrilha actuam na mais estreita colaboração com as Forças Armadas.
Aldeamento dos Khum no Cuito Cuanavale em 1972 - foto de e com o Luis Timóteo

O FUTURO
Arrancados ao jugo dos antigos senhores, transportados num repente do arco e da flecha para as armas automáticas, da colheita do mel e de frutos para uma produção agrícola planificada, da pele de coelho a tapar-lhes o sexo para a "mini saia" e a calça e camisa, os KHUM, parece, poderão olhar o futuro com maior confiança. E melhor será, ainda se as autoridades responsáveis – Governo de Distrito com o apoio do Governo Geral – lhes facilitarem um mínimo de condições.
O princípio está feito – a Aldeia Administrador Pereira Pontes. Há que prosseguir e isso só será possível com o auxilio do Estado, neste período de transição. Sequer será necessário muito dinheiro. O problema talvez se resolva mais com boa vontade do que com dinheiro. E convirá acentuar que não se podem contabilizar os gastos, em Angola, com as populações abrangidas pelas áreas do terrorismo.
O sonho grande – mas possível – de quem estruturou esta obra, sem nada ter, é a transformação da antiga colónia penal do Missombe, abandonada desde Setembro, num centro exclusivamente KHUM. Há ali muito trabalho feito, que se está a perder, nos campos circundantes, já preparados para a agricultura. Há oficinas casas, um edifício adaptável a "quartel". É tido como certo que viriam de todo o lado, para se acolherem à sua Pátria. e o que lhe oferecem, em contrapartida, não é para desdenhar.
Especialmente agora.


Texto de Moutinho Pereira
 em Angola Dever de Memória 1974
Fotos de Raul Sousa Machado, Jean Charles Pinheira e Zé Carcalho.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

ALMOÇO NO LUNGUÉ-BUNGO !


Num dia pela manhã, vindo eu de Cangamba, aterrei neste destacamento dos "Fusos", por uma questão técnica. 
Ainda não eram horas de almoço e, o 2º. Tenente médico que já me conhecia de outras andanças, convidou-me para o almoço...até aí tudo bem.
O Comandante do destacamento do Lungué corroborou o convite e, aí, depois de conferenciar com o MMA (mecânico de material aéreo), este disse-me, que por ele, estava tudo bem! Afinal, nós éramos uma tripulação e eu fazia questão de auscultar quem me acompanhava na missão.
O almoço foi farto e bem regado, porque o pessoal da Marinha caracterizava-se por receber bem todo o pessoal que por ali passava, em particular, os "putos da FAP". 
Quando demos conta o tempo tinha passado, e a tarde tinha-nos surpreendido com um "trapezanal" de Cúmulos Nimbo, que anunciavam uma tarde e noite de chuva abundante e vendaval à mistura. A frente vinha de Nordeste, precisamente em cima da rota que eu levaria até ao AR Luso...Às 15h30 já caia a "cats and Dogs" as descargas elétricas riscavam o céu sombrio daquela paragem paradisíaca, que num repente se tinha tornado num inferno molhado. O ribombar, fazia tremer tudo em redor. Porém, todos nós estávamos habituados àquela "música" estridente e algo aterradora, acompanhada pela luzes "psicadélicas" das potentes descargas eléctricas que se sucediam mais ou menos umas em cima das outras...
É um panorama desigual, que tem tanto de lindo, como de aterrador para quem não se aclimatou às intempéries tropicais, assusta. Não era o meu caso, porque sempre vivi pelo trópico. 


Feitas as formalidades no posto de rádio, para confirmar a nossa posição, acabámos por pernoitar na casa dos Fusos. O bar estava aberto, as cartas de jogo estalavam com força nas improvisadas mesas para esse fim, a tradicional lerpa e, a cerveja fluía direta das garrafas, Cuca ou Nocal, garganta abaixo para não aquecer...eu bebi uma "Nocais" e, às 23h00, recolhi aos aposentos para um breve repouso, uma vez que, a "ETD" descolagem, seria às 06h30. Foi a última vez que por aqui passei.
Sinto alguma nostalgia, quando revejo e, me vejo neste locais já distantes, quem sabe, já desaparecidos na totalidade...hoje serão não mais que escombros esventrados ao sabor da natureza que tudo normaliza... 


Também passei por "Vila Nova d'Armada" no Cuando-Cubango, outro reduto do Fusos, mais a Sul, com base na margem esquerda do rio Cuando, onde patrulhavam a fronteira feita por este, com a Zâmbia....

Por:


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A ÚLTIMA COLUNA DO AB4



Estávamos em Julho de 1975.

Entretanto, nos quatro cantos de Angola, as unidades militares iam sendo desmobilizadas e as instalações desocupadas. Em Henrique de Carvalho, a 12 de Junho, verificaram-se sérios confrontos entre os três movimentos, que duraram alguns dias e encheu o AB4 de refugiados, que ali aguardavam transporte aéreo para Luanda, de onde poderiam regressar à metrópole. Quase todos os haveres ficavam para trás, apenas havia espaço para transportar pessoas.
Da capital angolana, chegavam notícias ainda piores, falava-se em mais de 25 mil mortos.
As instruções que a Força Aérea tinha, eram para entregar o AB4 ao Batalhão de Cavalaria 8322 e retirar por via aérea e também terrestre.
E assim foi.

No "sossego" do AB4

No dia 1 de julho de 1975, integrei uma coluna que partiu para Luanda às quatro da manhã, e jamais imaginaria a aventura que me esperava.
As instalações passavam para o Exército e depois para o antigo inimigo, mas como o armamento não podia ficar para trás, seguia em colunas terrestres como aquela que agora rumava à capital, a cerca de 1000 km de distância.
A coluna militar com pessoal do AB4 era grande e a protecção aérea também estava presente, até porque transportavam toneladas de bombas.
Apesar disso, o pessoal ia bem disposto - mal ou bem, estávamos de abalada!
Passámos a Cacolo onde havia um destacamento dos Rangers e, uns quilómetros mais à frente, o camião onde eu seguia começou a dar problemas, não queria andar. Parou-se a coluna, vieram os especialistas de material terrestre e verificaram que a caixa de velocidades estava partida.
Não havia volta a dar, era preciso pedir uma nova e esperar que um helicóptero a trouxesse. 
O capitão Campos, que comandava a coluna, decidiu então que a coluna seguiria caminho, deixando para trás o camião avariado, as vinte toneladas de bombas que transportava e também os quatro elementos da tripulação, à espera de socorro. Um Cabo PA, dois Soldados PA e o condutor do semi-reboque que era civil.
Eu não acatei a ordem de ficarmos para trás o que gerou uma acesa discussão, entre mim e o Capitão Campos, mas, os galões falaram mais alto! Deixou-nos um reforço de munições, alimentação e mil escudos que eu lhe exigi. 
As ordens foram: ficam aqui até chegar o helicóptero com a caixa de velocidades, depois seguem viagem, que nós esperamos nas quedas de água de Malange. E ainda afirmou: se forem atacados, entreguem o carro e vão embora! Isto para mim não fazia sentido, como se veio a confirmar! Mas, como quem manda pode. Fui obrigado a obedecer!
Resignados, eu, o Barros, o Martins e o condutor passámos aquela noite no camião em plena estrada de alcatrão, aninhados no meio das bombas sem pregar olho, atentos a todos os barulhos nocturnos. Quando se fez dia, fartos de esperar e de não dormir, resolvemos voltar a pé para a destacamento dos Rangers no Cacolo, de onde poderíamos pedir ajuda. De G3 a tiracolo, fizemos o caminho a pé sem sobressaltos e, chegados quase de noite, comunicámos com o AB4, enquanto os Rangers foram com uma Berliet rebocar o camião. Passados alguns dias chegou um heli do AB4 com mantimentos para nós e para os Rangers, pois a comida escasseava. A tripulação entregou os mantimentos e de seguida partiram...



Doze dias passados, finalmente chegou a caixa de velocidades num heli que veio de Luanda. A caixa foi montada por dois especialistas e depois vimo-los partir de regresso à BA9... 
Caixa montada, e ordem para partir, às três horas da tarde, em ponto. Assim foi cumprido!
O camião voltou a andar e seguimos para Luanda, cumprindo as ordens de Henrique de Carvalho. Entretanto os Rangers receberam ordens para abandonar o destacamento até ás três horas da tarde. Hora em que que foi desmontado o rádio. O que fez com que já não fosse recebida uma segunda ordem, para impedir que prosseguíssemos a viagem. Pois havia maca generalizada em toda a Província. Sem conhecimento desta contra ordem lá rumámos a Luanda! 
O caminho era longo e queríamos chegar ao destino o mais depressa possível. Descansámos umas horas em Capenda e outras tantas em Malange. Aqui dirigi-me ao Quartel do Exército, falei com o Oficial de dia, pedi-lhe alimentos, e ajuda para reparar um pneu. Assim feito, partimos pouco depois das nove da manhã.
A nossa atribulada aventura ainda mal tinha começado...
Eu e os meus camaradas não soubemos na altura, mas tanto em Cacolo, como em Malange, tinha havido duas tentativas frustradas para nos alertarem a não seguirmos viagem porque havia sérios problemas mais à frente...
Alguns quilómetros depois de Malange reparámos um furo e seguimos. Começámos por encontrar um ajuntamento de carros com civis que nos pediram para seguirem atrás do camião na esperança de terem alguma protecção no percurso para Luanda. Eu, olhei para toda aquela, gente, onde se podia ver muitas mulheres e crianças, pois eram umas dezenas de pessoas, que de qualquer forma e por qualquer meio, queriam chegar a Luanda. Bastante comovido, respondi: como podem ver, nós somos apenas quatro, e como tal é impossível garantir seja o que for se optarem por seguir-nos podem vir. Mas, não podemos prometer nada, infelizmente! Mais à frente, encontrámos na estrada um civil negro, que também nos pediu boleia para a capital. Acedemos a transportar o homem, mas não sem antes o mandarmos abrir o saco, que levava consigo. Recusou, e foi-lhe dito que, ou abria o saco, ou não havia transporte. Então o saco foi aberto e lá dentro continha uma Kalashnikov desmontada e uma farda do MPLA. Podia ser uma mais-valia, caso viéssemos a ter problemas, e lá seguimos todos rumo a Luanda. Com total desconhecimento do que se passava, mas cada vez mais apreensivos, pois a responsabilidade tinha duplicado!
Passamos o Cacuso e Lucala e, antes de Salazar, fomos mandados parar por um grupo de guerrilheiros da FNLA. Estavam cinco, ou seis homens e um muito mais novo á beira da estrada, num terreno descampado, o que nos dava uma ampla visão de cima do camião. Fizeram-nos alto com a mão no ar, e a arma na outra. Rapidamente me apercebi, que eles não estavam muito á vontade, nem se mostravam muito agressivos. Dei instruções para preparar para fazer fogo se as coisas se descontrolassem. Quando chegámos junto deles o carro parou, eu saí e dirigi-me para eles. Mostrando uma calma e uma segurança que não possuía! Cumprimentei-os ao estilo FNLA. Eles recuaram, eu também, e as armas foram apontadas de ambos os lados. E foi de armas apontadas e dedo no gatilho que dialogámos. Fizeram-nos perguntas acerca das bombas, para onde íamos, que andávamos a fazer, quem era o prisioneiro (referindo-se ao civil do MPLA), etc… Respondi a todas as perguntas e até ironizei, (sem saber da situação que se estava a passar) respondi que as bombas eram para lançar ao mar, ou em cima da cabeça do MPLA, se não se portassem bem! Pedi-lhes informações acerca do itinerário, pedi-lhes água. Então um deles, numa outra linguagem, mandou o “miúdo” ir fazer qualquer coisa que não entendi. Ele desatou a correr, e passado algum tempo regressou, com as ordens recebidas. Ajudavam-nos com a condição de entregarmos o “prisioneiro“. Disse que isso não era possível. E começou uma discussão que poderia acabar muito mal!
E foi assim, que acabámos por entregar o passageiro do MPLA em sinal de boa vontade. Em troca, recebemos água fresca e fomos avisados de que N'Dalatando estava a ser fortemente atacada pelo MPLA. Era preciso termos muito cuidado. Perguntei onde ficava N’Dalatando, e foi-me respondido, que era ainda muito longe! E Salazar fica longe? Não! É já a poucos quilómetros adiante! Se a guerra era em N'Dalatando e iam-mos para Salazar, estava tudo bem, e continuámos caminho ignorando que N'Dalatando  e Salazar eram nomes diferentes para a mesma localidade! 
E de facto, a menos de uma dezena de quilómetros de Salazar/N'Dalatando, numa recta com alguns quilómetros e a descer, o condutor desengatou o camião o qual ganhou uma velocidade louca, até assobiava. Lá muito ao longe, aparece no meio da estrada, com a arma no ar um negro fardado e a fazer-nos alto! Eu disse para o condutor, passa-lhe por cima! Todos os meus sentidos se concentraram naquele homem, e em tudo que o rodeava. E de repente apercebo-me que o capim, que era muito alto, se movimentava no sentido contrário ao vento, e aí meu Deus, apercebi-me que era uma emboscada, em larga escala! Começo a gritar ao condutor que tinha que parar o carro ou íamos todos pelos ares! Ele diz-me que não consegue, porque não conseguia meter mudanças, dado ao excesso de velocidade. Eu gritava, tens que parar ou morremos todos, isto é uma emboscada! A muito custo lá conseguiu engatar uma mudança e a partir daí controlou o veículo, e conseguimos parar.
Fomos cercados por trezentos, quatrocentos, nem sei avaliar, dado a enorme quantidade de guerrilheiros e mercenários afectos ao MPLA, alguns deles armados de bazucas, lança roquetes, até com duas Kalashnicov, com duas pistolas e o cinturão todo cheio de granadas. Estavam armados até aos dentes! Saltaram para cima do veículo pesado onde seguiam as toneladas de bombas, e os nossos poucos pertences em malas.  Começaram a vandalizar e a vestir as nossas roupas, numa festa nunca vista. Nós encostados á cabine, nem falávamos, apenas fazia sinal aos meus camaradas para terem calma. 
Continuávamos armados com a G3 em posição de rajada, de repente aparece um “gigante" negro, com mais de dois metros, um monstro, com um osso no nariz. Observa-nos um a um, e decide pegar em mim, levantou-me até á altura da cara só com um braço. Enquanto ele me levantava, simultaneamente ia levantando a G3, que, como era nosso hábito, tinha-a com a bandoleira no ombro esquerdo e a arma na mão direita, eu ia recuando a G3, para que ele não a sentisse. Olhou-me nos olhos, puxa de uma faca e gritou, mim mata! Aí era o fim! Então passei ao ataque! Dei-lhe com o cano da G3 no abdómem e gritei-lhe bem alto, enquanto lhe batia repetidas vezes com a arma, até ele a sentir. Olhou para mim, com os olhos com ar de espanto, e eu grito: vamos mata, e eu furo-te todo!!! Então com muito jeitinho, colocou-me no chão, sempre com a arma apontada para ele!                De seguida, parece que acordaram todos! Uma boa dúzia deles vieram revistar-nos. Levantamos os braços e começou a revista. Eu tinha no bolso do camuflado, uma caixa de fósforos das grandes, com diamantes, que tinha comprado, a um daqueles nativos, que passavam em frente á porta de armas, rumo á Diamang, ao rabisco. Encontraram, os diamantes, terminou a revista, e nova festa começou! E foi assim que depois de revistados, ficámos com as armas e com  a  faca dentro da bota!
Alguém deu ordens, e rumamos ao destacamento dos GEs.  Aí estavam mais cerca de uma centena de nativos, mas sem armas, e não se manifestavam! Aí fomos separados. Condutor e camião sob forte escolta, partiram não sei para onde, os civis foram levados não sei para onde também, isto porque eles falavam um dialecto que nós não percebíamos nada.
O Martins e o Barros no AB4
Com tudo isto a acontecer, o Martins e o Barros perguntavam-me: Silva o que fazemos? Eles matam-nos! Eu respondia-lhes sempre: calma, muita calma, não pode haver tiros, porque não temos hipóteses nenhumas!
Entretanto e aproveitando a confusão que estava gerada, com o camião e os civis, houve uns instantes em que estivemos um pouco mais esquecidos, e eu fiz sinal ao Barros e ao Martins para nos tentarmos afastar até ao mato. Armados de G3 fomos recuando na direcção da mata de capim. Já pouco faltava, quando um começou aos berros apontando para nós.  Pronto, estava tudo estragado. 
O Barros queria abrir fogo, o Martins perguntava e agora Silva?  Eu respondi: Ninguém abre fogo enquanto o podermos evitar, quando a coisa estiver totalmente perdida, levamos o maior número possível destes sacanas connosco para o inferno! Armas apontadas para nós e um dirige-se na nossa direcção, para nos vir desarmar. Lembro-me de os dois ao mesmo tempo, me perguntarem e agora Silva? A minha resposta foi!  ninguém entrega a arma e ponham em rajada.  Colocámo-nos costas com costas, e dispusemo-nos a vender cara a vida! Eles perceberam isso e insistiram em pedir as armas, mas, a resposta foi não!  Então, depois de uma grande algazarra, começaram a afastar-se de nós, e diz o Barros eles estão a recuar.   Pois estão!  Isso quer dizer que chegou a hora de entregar as armas, porque eles vão usar granadas! Levantámos os braços com as armas, e de seguida colocámo-las no chão, mas nós ficámos de pé. Veio um monte deles   direito a nós, recolheram as armas e um deles queria o relógio do Barros, que o defendeu ao soco, e não o deixou levar! 
Começámos a ouvir um motor, e aparece uma carrinha Austin/Morris, de caixa aberta, e foi para aí que fomos levados.  Saltamos para a carrinha, e três homens, bem armados, também entraram, dois na cabine e um encostado á grade com os pés em cima das nossas G3, e de arma apontada para nós. Eu coloquei-me sentado o mais perto que consegui do guerrilheiro.  Na  carrinha estava um jornal do MPLA, (O Victória) e o Barros com toda a dose de adrenalina, que todos tínhamos, pega no jornal, com o carro a cerca de oitenta quilómetros á hora “tentava ler o jornal“ mas poucos segundos o teve nas  mãos,  pois, de repente, dada a velocidade e a deslocação do ar, o Barros viu o jornal voar e ficou com  um pedacinho dele, em cada mão.
Eu ia olhando para o conta quilómetros, na esperança que a velocidade abrandasse um pouco, para utilizar a faca pegarmos nas armas e saltar e resolver o assunto! O Martins ia-me perguntando, vamos a quantos? E eu respondia! Passados uns bons quilómetros, começamos a ouvir artilharia pesada, e pouco depois tiros, muitos tiros! Então pergunto ao guerrilheiro para onde íamos? Ao que ele me responde assim: vamos morrer, vamos todos morrer, os soldados são para morrer!  
Continuamos sempre ao som da artilharia, e dos tiros dados pelas armas dos guerrilheiros, que ladeavam a estrada, e faziam a "festa"! O carro vira á esquerda para terra batida e víamos cada vez mais guerrilheiros á espera de entrar em actividade, era uma espécie de reserva de forças! Tínhamos chegado precisamente á base do MPLA  de onde partiam os ataques a Salazar/N'Dalatando. Era uma frente de combate como nunca tínhamos visto! Artilharia pesada de toda a qualidade, armamento de todo o tipo. As morteiradas não paravam, voavam para um lado e para o outro, e feridos constantemente a chegar. Que eram imediatamente substituídos por voluntários, para a linha de ataque que ficava a uns cem metros. Foi neste cenário, que com ofensas e agressões que a adrenalina atenuava, nós os três fomos encostados a uma cubata e percebemos que íamos ser imediatamente fuzilados, acusados de levarmos armamento - as bombas que eram transportadas no camião - ao inimigo. E, talvez porque estivessem mais à mão ou por falta de alternativas disponíveis naquele momento, as armas que os vimos apontar contra nós foram as nossas próprias G3.
Quando foi dada ordem de fuzilamento, fechei os olhos e, em silêncio, pedi a Nossa Sra. de Fátima que nos  protegesse, e fiz as despedidas mentais, da minha namorada, mãe, pai, irmãos  e deste  mundo que me pregara a partida de acabar a vida em África numa guerra que  nem sequer era a minha. Os gatilhos das G3 foram apertados...mas nada aconteceu. As armas não dispararam. Aos meus olhos, os segundos seguintes desenrolaram-se em câmara lenta: os negros aglomerados em torno das armas para lhes diagnosticarem o problema, o Barros e o Martins apalpando-se, atarantados, à procura dos furos das balas. Então uma alma iluminada ensinou a destravar as G3, que são novamente apontadas para o fuzilamento...Nesse mesmo momento deu-se  a chegada providencial de um homem negro baixote, de óculos e fato amarelo, que deu três gritos num dialeto qualquer e toda a gente se calou! Uma aparição providencial no último minuto, digna de um filme de suspense (pensei)! As minhas preces foram ouvidas.
Notava-se que era alguém com alguma autoridade no MPLA, mas ainda assim houve reacções no sentido de se acabar com a nossa vida!  Mas não a tiro! Tentavam chegar até nós com catanas, facas, tudo o que não fizesse barulho. Fomo-nos defendendo, corpo a corpo. Recordo-me perfeitamente, de um negro chegar junto de nós, olhar para mim, e chamou-me branco, filho da puta, e no mesmo instante desferiu-me um murro mesmo nos olhos. Cambaleei, e retribuo a agressão com tal vontade, que ele voou! A partir daí começaram a bater-me, e depois fui torturado com um martelo de picar carne. Foi aí que o homem vestido de amarelo se impõe de novo! Eu “exigi" falar com o comandante, ele mandou os homens dele controlar a situação enquanto os outros continuavam a tentar mandar-nos desta para melhor! A todo o custo tentavam chegar até nós, e ele teve que mandar disparar, para o ar e avisou que quem se aproximasse de nós seria abatido, enquanto perguntava quem é que fez o inquérito, onde está o inquérito?! E mandou colocar dois homens um de cada lado, com ordem para disparar contra quem se aproximasse.
A situação era periclitante eu e os meus companheiros pedimos para falar com o comandante. O negro acedeu e levou-nos à presença de um guerrilheiro que sangrava abundantemente, ferido na barriga e também numa perna. O homem não estava com cabeça para diplomacias e, sem mais delongas, deu ordem para que se livrassem dos prisioneiros. Mais uma vez foi o negro de óculos, com ar de futuro político, que pôs água na fervura e arranjou uma alternativa: levou-nos a um segundo comandante, que felizmente foi mais afável, recebeu-nos na sua cubata e até nos ofereceu comida “fuba” e bebida. Passado algum tempo, os dois africanos saíram, deixando-nos sozinhos mas bem guardados. O comandante regressou daí a algum tempo, dizendo que estava tudo tratado para sermos entregues a uma equipa das Forças Integradas, que incluíam elementos das várias facções inimigas e elementos da tropa Portuguesa!
O tempo ia passando, já estava quase a anoitecer e, pelo sim pelo não, tínhamos aproveitado aquelas horas de espera para fazermos um buraco na parede da cubata com uma faca de mato que tinha escondida numa bota. Por esse buraco íamos espreitando, sem que o nosso vigilante se apercebesse! Começámos a ouvir um motor de um Unimog e criámos uma alma nova, pensando que íamos sair dali. Quando vimos chegar o  Unimog  que supostamente traria a tal delegação das Forças Integradas, rapidamente percebemos que o caso estava mal parado: só lá vinham elementos do MPLA e muito sangue, que evidenciava o que teria acontecido aos restantes elementos da delegação. Aquilo não augurava nada de bom. Era preciso fugir, o mais rapidamente possível! Mas tínhamos que escolher o momento certo, pois homens do MPLA armados eram ás centenas, e tentar a fuga seria suicídio.    De repente a artilharia pesada vinda de Salazar era tanta e tão frequente que eles correram para os abrigos. Então eu decido que era o momento e grito Barros, Martins: é agora, vamos fugir!
Metemos conversa com o guerrilheiro que estava a guardar a cubata, oferecemos-lhe um cigarro que ainda restava e quando ele aceitou e se pôs a jeito, agredimo-lo e ele caiu. O Martins e o Barros já se tinham posto ao fresco e eu fiquei a tirar a faca, por uns segundos, acontece que o tipo tenta levantar-se para apanhar a arma, aí tive que ser radical e desimpedir o caminho. Comecei a correr, mas ao contornar a cubata seguinte fui detido por um negro com ar tresloucado, vestido com uma farda do Exército Português. Estávamos frente a frente, a uns dez  metros de distancia, eu, na dúvida, ainda pensei que fosse também um prisioneiro, mirei-o  de alto abaixo para me certificar, mas ele começa a tentar destravar o coldre da Walter, aí corro na direção dele, faço a cambalhota, e ao erguer-me estava a cerca de dois metros dele, a faca voou e chegou ao destino. Mas ele ficou de pé e eu ia acabar com a disputa, quando aparece atrás dele um médico, ou enfermeiro, de bata branca e com uma seringa grande na mão, agarra-o, espeta-lhe a seringa no ombro direito e grita-me, fuege, fuege …
O negro caiu para o chão e o cubano voltou a gritar-me que fugisse dali, o que fiz sem mais delongas, correndo no encalço dos meus camaradas.
Ziguezagueando por entre as cubatas ao som dos ataques que continuavam de Salazar, alcancei o Martins um pouco mais à frente e a fuga continuou em conjunto, através de uma zona de arames horizontais onde havia peixe a secar até que encontrámos, metido num buraco feito por uma morteirada... um bebé a chorar. Não queríamos acreditar!
À luz do princípio de que onde cai um morteiro não cairia mais nenhum, algum pai ou mãe em apuros teria ali colocado a criança para a manter em segurança. Não podiam deixá-la ali...Baixámo-nos junto ao bebé para vermos como estava, e o gesto foi providencial porque nos salvou a vida: as balas cortaram nesse momento um dos arames, mesmo por cima das nossas cabeças.
Levando o bebé, seguimos caminho em direção ao mato, estávamos quase, quase a chegar á mata quando  à nossa frente aparece saído do mato, como quem sabia o nosso percurso, o tal negro vestido de fato amarelo, com ar de político, acompanhado por outros homens, a quem me  dirigi, apelando ao seu bom senso. Após uma troca de palavras, e muito à conta do bebé, o homem acabou por quebrar. Depois de ele concordar em nos deixar seguir, ainda lhe pedi uma arma, justificando que com o bebé a chorar poderia ser necessário defende-lo. Não nos deu nenhuma arma mas deixou-nos passar, e que levássemos o bebé dali.
O nosso plano era seguirmos para Cacuso e Malange, de onde tínhamos vindo, uma vez que no sentido oposto ficava o inferno de N'Dalatando/Salazar.
O bebé não parava de chorar, pelo mato nunca mais chegaríamos a Malange - era preciso ir para a estrada, foi o que fizemos e, qual intervenção divina, o primeiro veículo que passou trazia lá dentro um Padre e uma Freira! Os dois representantes do Senhor na terra pararam e, inevitavelmente sensibilizados com o bebé, prestaram-se a ajudar-nos, esconderam-nos na caixa aberta da carrinha, debaixo de um oleado. Seria o que Deus quisesse!
Aproveitando os salvo-condutos que tinham das várias facções para circularem livremente, ainda andamos vários quilómetros...até sermos mandados parar por um controlo do MPLA que, claro está, quis saber o que estava na caixa da carrinha, debaixo do oleado. Fomos descobertos e, perante as armas apontadas, virámos a história ao contrário e justificámo-nos como estando a fugir da FNLA. Os homens lá trocaram impressões entre si, olharam para o padre e para a freira e, num repente, de arma apontada, um gritou: andar, andar depressa antes que mude de ideias.
Não nos fizemos rogados e seguimos caminho. Mais á frente outra recepção a fazerem-nos alto. Eram os homens da FNLA, com os quais já nos tínhamos cruzado antes.  Contámos-lhes a verdade e foram eles que nos pediram ajuda, pois o MPLA estava a matar toda a gente! Como se tivesse poderes para isso, prometi-lhes que iríamos enviar os aviões e o helicanhão para travar o MPLA. Coitados, agradeceram várias vezes!  Mais tarde vim a saber que foram todos dizimados. Seguimos até Cacuso, onde já chegámos de noite.
Não se via ninguém nas ruas, o padre e a freira deixaram-nos junto a um café que estava fechado e abalaram, levando o bebé. Pedi-lhes que nos levasse até Malange, mas recusaram!
Ficámos ali sentados nos degraus a trocar impressões sobre o que fazer em seguida, e eis que a porta atrás de nós se abre numa frechazinha, de onde espreitou um português que sorrateiramente nos mandou entrar. A divina providência não nos tinha abandonado naquela já longa aventura! O homem tinha ouvido a conversa, fez-nos bifes, ovos, e batatas fritas e mandou-nos rasparmo-nos dali rapidamente porque aquela zona estava toda em pé de guerra.
Cansados de tanta peripécia, decidimos ir aos correios para tentar telefonar para Malange, foi necessário quase arrombar a porta, pois ninguém nos respondia. Lá entrámos e demos com um homem morto no chão e outro a remexer em papéis, que disse que não tinha linha para Malange e nos recambiou para o posto da Polícia Angolana.
Lá seguimos até ao local, estava isolado de tudo, distanciado da Vila de Cacuso cerca de dois quilómetros, e quando lá chegámos com os camuflados todos rotos e sujos, a recepção foi algo hostil, com um interrogatório intimidativo e na primeira oportunidade saímos a correr dali e regressámos ao centro da localidade. Encontrámos um carro com a chave na ignição e, embora nenhum de nós soubesse conduzir, decidimos arriscar...mas eis que apareceu o dono, bem vestido e anafado: era o administrador de Cacuso. Perguntou-nos o que estávamos a fazer no carro, e onde íamos? Eu respondi: o carro é seu? Então vá buscá-lo a Malange! Desagradado com a ideia de lhe levarem o veículo, conduziu-nos ao posto dos Correios, onde mandou o funcionário que restava com vida fazer uma chamada para o quartel de Malange e o “sacaninha” fez! Falei para Malange, expliquei a situação em que nos encontrávamos, pedimos ajuda e de facto, passadas horas, que pareceram uma eternidade lá apareceu uma Berliet em Cacuso com elementos do Exército que nos levaram de volta a Malange.
Levaram-nos para o Bar dos Oficiais e sentados ao balcão com o Comandante e outros oficiais que me iam fazendo perguntas, nós tremíamos com frio, dos pés á cabeça. Deram-nos cafés, brandys, toda a espécie de bebidas, mas eu o Martins e o Barros só tremíamos. A dada altura alguém se riu, e ouço o Barros responder: estais a rir-vos para mim, ou de mim?  Ide todos para o carago! Então levaram-nos para a Enfermaria, medicaram-nos, e só acordámos no outro dia já” recompostos“, depois de um sono reparador!  
No dia seguinte, desfrutámos de um passeio retemperador por aquela localidade onde ainda reinava alguma paz, quando um Jeep do Exército nos veio buscar, porque o DO que nos vinha buscar, já tinha chegado.


Seguiu-se um voo atribulado para Luanda.  Éramos   cinco homens a bordo, e a “velhinha” DO fez-se á pista, mas começou a acusar excesso de peso, pois não conseguia levantar a cauda, a pista era curta e o Piloto grita:  todos para as minhas costas!  Assim fizemos e a “velhinha” levantou!   Já no ar o Piloto diz-me: esta   gaja agora vai pagá-las  e no minuto que se seguiu, nós vimos uma piscina por cima das nossas cabeças!
Partimos muito tarde de Malange, e rapidamente se começou a fazer-se noite. Eu ia sentado atrás do Piloto, e pergunto-lhe o porquê de não acender as luzes?  Responde-me que as luzes já iam acesas, ou melhor…não tínhamos luzes no DO para iluminar o caminho. Perante esta resposta, comecei a observar os instrumentos de voo, e reparo que a bússola não parava de andar ás voltas, que o ponteiro do combustível estava quase em baixo. Na “brincadeira “pergunto ao Piloto: então diz-me lá, posso saber o que é que funciona bem? O motor, enquanto tiver combustível!  Respondeu-me ele.
A noite cai, só se viam as estrelas e ouvia o roncar do motor. Estávamos todos mudos! Olhava para o ponteiro do combustível e via-o cada vez mais em baixo. Pergunto ao mecânico, então tu não sabes orientar-te pelas estrelas?   Claro que não!   Definitivamente, estávamos perdidos, pensei. De noite, sem luzes, e o combustível quase a acabar!  Começamos   todos a preparar-nos para “planar” até ao chão!  Então, passei-me, e pergunto ao Piloto, a que distancia é que ele pensava que estaríamos de Luanda? Já devíamos estar lá! Então vamos usar a cabeça antes que seja tarde. Eu como, graças a Deus, ouvia muito bem, pedi ao piloto para baixar até onde fosse possível.  Assim foi, e eu ouço as ondas do mar, e grito vira para a direita rápido, estamos em cima do Oceano.  Assim foi feito e passados minutos todos gritávamos de contentes.
Alguns dias depois na BA9
Luanda estava á vista e com a pista iluminada!
Todos gritávamos de euforia, enquanto o DO se fazia á pista. Missão cumprida! Estávamos em terra firme e em segurança!  Enquanto comemorávamos na placa, aonde um conterrâneo meu, o Alferes Ferreira, me trouxe um camuflado e um par e botas, para eu vestir porque no rádio de Malange dizia que nós ficámos sem nada. Ouviram-se uns tiros por cima da base mas nada de especial a comparar com o que tínhamos vivido nos últimos dias!
Entretanto, e enquanto estas aventuras aconteciam, também o Furriel Miliciano Norberto Areias Teixeira Cardoso, que se encontrava no Quartel em Salazar tem muito que contar!

Coluna do BC 8322
Com este relato, gostava de saber se, tanto os MMTs que foram substituir a caixa de velocidades, como os pilotos do heli  e do DO27, bem como o 1º Cabo  do Batalhão 8322 Augusto  Rosa  meu  conterrâneo, o qual vi pela ultima vez em Cacolo, sozinho a transportar o correio para a AB4, numa ambulância. Se   andam por aqui e se podem comentar os factos ocorridos naquela atribulada viagem.
A foto é de uma coluna do Batalhão de Cavalaria 8322, que em Setembro fez o mesmo trajecto quando deixou definitivamente o AB4. 

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quinta-feira, 8 de outubro de 2020

CAGAÇO NO CAMAXILO !

Camaxilo AM 42


Parece incrível mas nunca fui ao Cazombo!
Fui ao Camaxilo uma única vez para reparar o rádio farol pois uma daquelas trovoadas habituais queimou um dos circuitos. Durante uma semana deu para um jogo de futebol contra a companhia de Exército ali destacada, que nos fornecia o pão e água. No final foi uma jantarada, no quartel do exército, cujo menu foi uma bacalhausada no forno. Um manjar dos deuses para quem tinha passado dias a comer arroz com chouriço e chouriço com arroz por causa de uma chuvada, que nos estragou alguns víveres. Por azar, nessa semana, o PV2 não levou abastecimento por motivos de uma missão.
Foi a semana mais acidentada que tive em Angola.

Um abrigo do AM


Durante essa estadia, numa das noites, a sentinela viu um vulto e começou a disparar. Dado o alarme, despertei do burro onde dormia e passei o resto da madrugada a carregar os carregadores da metralha. O sargento-ajudante de abastecimento, que lá tinha ido fazer o inventário, foi colocar-se junto aos bidons de combustível aguardando pelos acontecimentos, quando de repente um dos bidons deu um estrondo de contracção. O homem deu um salto de susto e disse:- f.... as ajudas de custo não pagam o cagaço...e tudo terminou em bem, falso alarme.

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