quinta-feira, 22 de junho de 2023

AB4 – A BIBLIOTECA, O BIBLIOTECÁRIO E EU (2ª. Parte)

Em primeiro plano o edifício do Comando onde se localizava a biblioteca






Na sequência de opções pela leitura, para contrariar o excesso de tédio, lá longe no leste de Angola, vou dar a conhecer o que li e conheci dos quatro magníficos autores que aprendi a gostar a par de Ernst Hemingway.

JOHN DOS PASSOS

Este pensador americano, nascido em Illinois, interpretou a cultura deste grande país nas áreas das finanças, bolsas de valores e viagens. Nunca escondeu a sua origem e a dos pais madeirenses da Ponta do Sol que emigraram no último quarto do século XIX. O seu último livro é dedicado aos Descobrimentos Portugueses, é editado pouco tempo antes do seu falecimento. A sua obra é extensa mas pouco traduzida aqui em Portugal.

Na biblioteca do AB4, por curiosidade li o livro “Paralelo 42” e notei que fazia parte de uma trilogia que era completada por “Dinheiro Graúdo" e “U.S.A”. Tudo é passado após a primeira Guerra Mundial desde 1919 a 1939. É apresentado um estilo totalmente diferente, em pequenos textos aparentemente confusos mas que na sua conjugação deixavam ver a euforia do pós guerra, a inflação que levou à grande depressão de 1929 e o renascer da economia que teve o seu esplendor na Bolsa de Chicago em 1939. Faleceu em Baltimore em 1970.

Li ainda um livro de viagens que o autor fez ao Daguestão em que retrata sobretudo o espanto dos habitantes desta república asiática ao ver os modos e vestimentas do forasteiro. Outro livro que li em nova edição foi o "Manhattan Transfer”, que não é mais do que uma dedicação que o autor dava à Alta Finança. Estes cinco livros tenho na minha biblioteca.

John dos Passos era míope e por isso não fez o serviço militar. Quis viver a boémia de Paris que foi um chamamento gritante durante dezenas de anos e gerações de artistas que ainda hoje, querem ir a Paris. Eu fiz a viagem a pé desde Moulin Rouge até à Sacre Coeur, quis ver os pintores no adro da Catedral onde espreitamos o que estão a pintar e alguns nada condiz o que pintam com a imagem à sua frente. Vêem-se aquelas figuras sinistras de boina basca, óculos de aros de tartaruga, cara macilenta, dedos queimados pelo tabaco, à espera de alguma coisa que tarda em chegar. Gosto de ver aquele ambiente a que se juntam chulos, palermas, meretrizes e bebedores de absinto que vociferam que quando o mundo acabar eles serão os timoneiros de uma nova era.

Ao que parece, esta curta estadia em França não alterou o rumo da sua escrita. Hemingway, Picasso e outros foram os autores a divulgar uma nova ordem de coisas.

JOHN STEINBECK

É porventura o escritor americano mais conhecido e admirado nos meados do século XX. Nasceu em Salinas (Califórnia) e os seus escritos têm raiz nesta maravilhosa terra, a Califórnia, que desde sempre foi o destino final dos aventureiros desde a colonização do Oeste americano.

Estava na OTA em 1970 e li “A Leste do Paraíso", livro que pertencia à biblioteca do clube de Especialistas da Base. Era um livro extenso e nem por isso demorei mais de três dias a lê-lo. Tinha visto recentemente o filme baseado no romance, estava muito condensado e não apresentava pormenores que adorei na leitura que considerei extraordinária. Ainda assim, gostei da interpretação do James Dean no papel do filho rebelde do patriarca interpretado por Raymond Burr, o mesmo que fez a série policial Perry Mason. Descobri mais tarde na biblioteca do AB4 “As Vinhas da Ira”, que é considerado o documento altivo da grande Depressão Americana, em que bandos de desempregados mendigavam tarefas na apanha da fruta e são explorados pelos capatazes, seres frios, mais exigentes e ameaçadores, até que se dá a morte de um deles. Já havia sido passado no cinema e o autor principal foi Henry Fonda que provou que não era só intérprete de filmes de cowboys como era até aí conhecido.

Estavam na biblioteca e li “A Batalha Incerta”, “Ratos e os Homens”, “A Pérola” e ainda “A um Deus Desconhecido”,

ESKINE CALDWELL

Este grande escritor novelista foge aos padrões tradicionais da literatura americana. Escreveu mais de 100 livros e retratou como ninguém as fraquezas intelectuais do povo americano, que o cotou de grande ingenuidade a roçar a burrice. Não me esqueço de uma vez, o Zé Carvalho, o mago dos helicópteros com mais de 25 000 horas, me dizer que os pilotos americanos são quezilentos e burros, mas são trabalhadores e contentam-se com uma grade de cerveja gelada e um balde de pipocas em frente a uma televisão panorâmica a dar um jogo de basebol.
Não esteve o autor bem representado na biblioteca, só me lembro de Uma Agulha num Palheiro e o Pregador, que é um retrato da sua família sulista, o pai um pastor evangélico muito preocupado com os fiéis e sobretudo com as beatas; uma delas, a Dane, quis saber com o prelado porque diziam que ela tinha ovos no meio das pernas, o homem fez-lhe a vontade, partiu-os.
Na “Estrada do Tabaco”, a sua melhor referência, trata-se de uma família de cultivadores de algodão e tabaco que teve uma safra excelente e deu para comprar um Buick, cujo condutor seria Bill, um rapazola estouvado, que na primeira viagem à cidade veio com um farol abalroado e o para-choques empinado. À chegada toda a família verificou o desaire e apressaram-se a manifestar que os estragos eram de pouca monta. Nas contínuas viagens à cidade os acidentes sucediam-se e ao fim de 1 mês o Buick já estava na sucata. 
Muito mais tarde apreciei “O Rapaz da Geórgia", uma novela estupenda, trata-se de um rapaz que numa viagem de finais do liceu foi ao Norte e viu a funcionar uma enfardadeira de papel que em poucos minutos amassava o papel e formava um paralelepípedo de 0,5 m3. Conseguiu convencer o pai que era uma grande solução, pois havia muito papel que se amontoava em tudo o que era vila, era a melhor altura para o recolher, pois até parecia uma praga. Quando veio a máquina houve pressa para instalar e funcionar. Após os ensaios logo trabalhou. Previamente fez acordo com as papeleiras e estipularam o preço e as entregas parceladas no tempo. Rapidamente começaram a encher os celeiros e armazéns. Aconteceram dois imprevistos: a matéria prima começou a ser comprada mais longe e mais cara; as papeleiras em face da pressão da grande oferta do novo enfardador para entregar, decidiram baixar o preço de compra. Conclusão: ao fim de pouco tempo a máquina cessou definitivamente a atividade.
A “Jeira de Deus” é o título livre da famosa novela "God is Little Acre” que exprime mais uma vez o misticismo do povo americano, o apego à terra, a ignorância da gente do Sul. 
Na sua obra, para além de abusar da burrice dos seus conterrâneos, trata também dos costumes dos brancos e suas famílias que se convenciam que os pretos não têm direitos e fazem tábua rasa na vida quotidiana e praticam com naturalidade a violação de jovens negras e incitam os rapazes a continuarem as práticas dos pais e antepassados. As mulheres destes não podiam discordar, só tinham de aprender a aceitar. Esta forma de agir, provocou muitas infidelidades nos brancos.
O autor publicou sobre estas brejeirices em várias novelas editadas pela Portugália. Uma que li provocou-me risos, foi Valentine, em que a protagonista gostava de provocar e uma das curiosidades era fazer desenhos com os pelos púbicos íntimos.
Caldwell escreveu muitos anos, nasceu em 1903 e faleceu em 1987. Não precisou de vir para a Europa para se inspirar, mas os seus escritos chegaram em força ao nosso continente.

WILLIAM FAULKNER

É o meu escritor preferido. O primeiro livro que li dele foi em Henrique Carvalho. O Filipe Raimundo, que o leu primeiro, disse-me que deveria gostar de o ler.
Chamava-se “O Mundo Não Perdoa”, numa edição nova da Europa - América. Requisitei-o e verifiquei que era uma escrita, nova, difícil, confusa, mas que tinha sentido. Experimentei e gostei, seguiu-se o “Som e a Fúria”, “O Homem e o Rio” e depois "Aldeia”, que não compreendi, pois não estava alinhada com as obras anteriores.
Já com o serviço militar cumprido adquiri “Sartoris”, o 3º romance do autor e passa por ser a espinha dorsal do seu pensamento e a inspiração para a maior parte dos seus romances.
A família Sartoris é imaginária, mas tem raízes do próprio Faulkner seu avô coronel sem pergaminho que serviu na guerra com o México e civil americana do lado dos confederados que era em linguagem vernácula um aventureiro manigante, sempre a fazer asneiras até ao seu assassinato. O nome Faulkner deriva do avô Falkner que antes de tomar o caminho enviesado personificava o patriarca da família rica do sul, mas que a guerra civil se encarregou de provocar a miséria. 
Sartoris funda o seu estilo inconfundível e o meio da materialização do seu mundo, constituído por 3 famílias diferentes, os Sartoris, os Compsons e os Snopes. Para compreender a trilogia temos de ler “O Som e a Fúria”, “Hamlet”, “Os Ratoneiros”, “Luz de Agosto”, “Santuário”, a “Aldeia e a Mansão”.
Faulkner tornou-se escritor relativamente tarde. Nasceu em 1897. Fez o serviço militar na Real Força Aérea do Canadá, esteve na Europa, frequentou o Pigalle, quando desmobilizado teve inúmeras profissões, só vingou a de operador de correios que lhe dava tempo para as suas aventuras romancistas. O seu ídolo era o escritor Sherwood Andersen. Conseguiu amizade com a mulher deste senhor e ela prometeu-lhe influenciar o marido para que o seu editor deste publicasse o seu manuscrito. Ele enviou o texto e na resposta Sherwood disse que não teve tempo de o ler, mas mesmo assim conseguiu a primeira edição dos Mosquitos. Teve sorte, foi bem recebido e foram publicados mais 2, sendo o último Sartoris. A apreciação deste romance com 440 páginas teve o favor dos críticos e começou assim a senda vitoriosa de William Faulkner. Eu pessoalmente acredito que o principal crítico não percebeu a mensagem complicada que o meu herói quis difundir, é preciso ler mais livros do autor para se perceber a grandeza da sua mensagem.
À medida que vamos desfolhando as páginas abre-se um horizonte que não sabemos quando deriva ou acaba. 
Nos anos 50 e 60 a obra de Faulkner foi conhecida no mundo. Os franceses André Maulraux e Albert Camus valorizaram o seu saber. Camus levou ao palco a sua obra Requiem para uma Freira e Sartre dedicou-lhe um famoso ensaio filosófico. Em Portugal influenciou José Cardoso Pires, Lígia Fagundes Teles e tem admiradores como Rui Vieira Nerry, Jorge de Senna, Lobo Antunes, Nuno Rogeiro é claro, Eu. 
Voltando ainda a Sartoris, família constituída por três gerações, sendo o último membro Bayard Sartoris, com o mesmo nome do pai e avô. Sartoris e o irmão foram para a guerra na Europa juntamente com o filho do cocheiro Simon. O irmão morreu em combate em França e Bayard veio com a cabeça estragada e acaba também por morrer num desastre de automóvel em corridas deixando uma viúva fresca e bonita. O filho do cocheiro negro veio com ideias da emancipação dos Homens da sua raça e novidades da democracia. De nada lhe valeu conspirar, pois era preciso comer todos os dias e essa ideia de libertação estava muito atrasada.
O velho Sartoris era banqueiro em Jefferson (cidade fictícia situada a 190 kms de Memphis) e todos os dias o cocheiro Simon o transportava em caleche e retomava a casa às 5 da tarde. Já tinha mais de 90 anos, ainda fumava charuto e cachimbo. 
Na casa patriarcal quem mandava era uma sobrinha, Miss Jenny du Pre, parente do coronel Sartoris descendente de franceses que muitos anos antes colonizaram o Mississipi, Alabama e Luisiana. Era a casamenteira da família. Conseguiu casar Horace Benbow e Narcisa Sartoris, este senhor era advogado e teve um papel importante no romance Santuário. 
O livro mais carismático do autor seria “Santuário”, em que Popeye, um perigoso assassino, só era castigado pelos crimes que não cometia. A sua dureza é desmistificada no fim do romance em que Miss Temple, gerente de uma casa de meninas deu a conhecer a frigidez sexual do terrível. 
Na minha mente o absurdo continua, assim como em “Palmeiras Bravas”, “Som e a Fúria” , “Luz de Agosto” , “Na minha morte” e os “Invencidos” 
Vou desligar, perdoem-me o atrevimento. 


Por: "TONETA"


 


 


 


quinta-feira, 15 de junho de 2023

CIRCUNCISÃO TSHOKWE - LUNDA


As casotas dos circuncisos feitas de pau-a-pique e cobertas de capim são construídas em roda sendo a do meio ocupada pelo Tfumbakambungu (o Rei dos Tfundandjis-os circuncisos) que na sua linhagem e na sucessão ocupa lugar de destaque, devendo também aprovisionar os batuques.
Será o Tfumbakambungu a ostentar a carapaça do cágado (o amuleto) destinado à proteção do recinto (a Mukanda) e os seus ocupantes. Na ausência do Tfumbakambungu pode tomar as rédeas da Mukanda o Khunda da linha de sucessão podendo ser dois (seu irmão no caso) a seguir vem o Songo (da linhagem) e vem o Tchihindakagi que podem ser vários não necessariamente aqueles da linha de sucessão.
Na entrada da Mukanda estará um amuleto fixo para proteger o recinto contra todos os malefícios. Na vigência da Mukanda não deve registar-se o óbito de algum kandandji ou Ngangamukanda, se tal acontecer, dá-se como finda a Mukanda (Mukanda ua tfula).
Antes da cicatrização das mutilações os circuncisos aprendem a tecelagem de Muquichi destacando-se Tchikungu pertencente ao Ngangamukanda, Tchikunza da alta hierarquia (dos soberanos) ou do sobrinho desta, Tchithelela o rei dos Muquichi, Katfua, Mbuembueto, Tchindombe ou Mutombo (tem a função de as noites ir à sanzala dançar para angariar víveres para os circuncisos) e tantas outras máscaras (Muquichi ua ngulu, ua puo, ua katoyo, ua kassumbi, ua khanga, ua tchihongo).
Foto de José Ventura da Foto Sport
Para a indumentária dos Kandandji temos a famosa muya, tchikaba, muwango khamba, muchipo e sango. Para a recepção de altas individualidades tal como o Ngangamukanda canta-se “Muandvumba eh, oh yaya Muandvumba yaya tanguonoka tchissengue...
Ao cair da tarde a Natchifa bate o pirão coloca em balaio e chama pelo Tchikholokholo para ir buscar, este com balaio a mão ou a cabeça começa com o pregão “ tfundandji kuliohe! E eles respondem wawe! Txhala, he txala txalile yaya txalile txambala yako, ena...
Os utensílios mais coisas ganham outros atributos a saber: mulher-natchikhendembua, faca-tfuilo, água-massuita, sal-muyeku, Muquichi-kaweja.

Foto de José Ventura da Foto Sport


O local ou direcção onde aconteceu a mutilação do prepúcio nenhum circunciso deve olhar nem que esteja lá alguém a chamar-lhe. Na sociedade Lunda-Tshokwe a circuncisão significa coragem, valentia, teimosia, masculinidade e afirmação, viver a universalidade pois, o indivíduo é preparado multifaceticamente, aprender a montar ratoeiras, armadilhas, cestos de pesca, de caça e a construir a própria casa.
Fala-se de existir uma mulher para cada circunciso pois é de facto lá existe, é uma cabaça pequena, embutida ao solo contendo uma porção de água, onde pela madrugada todos em fila, deitadinhos com o membro mutilado introduzido naquele pedacinho, para amolecer a crosta e ser removida depois, isso é feito no cacimbo, imagine, um garoto nu, o chão frio, a água idem. Esse recipiente recebe o nome de Kashinakagi (anciã). 
Foto de José Ventura da Foto Sport


Com a cicatrização efectiva ou não, são os circuncisos submetidos a aprendizagem do canto e da dança...
Algumas máscaras utilizadas na Mukanda






Texto de: Alberto Muteba e arranjo de V. Oliveira 

quinta-feira, 8 de junho de 2023

HANGAR 6


Em 1969 deu-se início à construção do mítico Hangar 6 da TAP, espaço destinado aos Serviços de Manutenção e Engenharia. Ali se fariam as grandes inspeções de todos os aviões da frota da TAP desde o SE210 Caravelle ao Boeing 747 que mais tarde haveria de chegar. Pensava-se a longo prazo.
Com projeto da Profabril a obra foi realizada pelas Construções Técnicas e terminada em 1971. Uma vez concluído o Hangar 6 ficaria a ser uma das maiores e mais avançadas estruturas do género na Europa. Tinha pontes rolantes, docas suspensas, aquecimento, sistema de deteção de incêndios e duas portas "guilhotina" no topo para acomodar as caudas dos Boeing 747. Era possível albergar dois Boeing 747 e outros tantos Boeing 707 ao mesmo tempo o que dá uma ideia da dimensão do espaço.

Dada a "forte probabilidade" do Aeroporto da Portela vir a mudar de local a curto prazo o projeto desenvolvia-se em duas fases, a saber:
1) Primeira fase para servir até 1975
2) Segunda fase a construir depois de 1975 naquele ou qualquer outro local.
Ora a "forte probabilidade" não aconteceu, o aeroporto continuou no mesmíssimo lugar e o Hangar 6 lá vai chegando para as encomendas.
Falta só dizer que em 1969 foi também criado o Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa. Trabalharam depressa e em 1971 já havia uma decisão: Herdade de Rio Frio na margem sul do Tejo.
Só que...

Por: O Aviador


quinta-feira, 1 de junho de 2023

O ELEFANTE REPARTIDO

O jornalista Emílio Filipe, o fotógrafo Raul Moreira e eu andámos cerca de dois meses num Land-Rover pela Região do Cuando Cubango colhendo material sobre variados aspectos daquela zona; etnográficos, paisagísticos, cinegéticos, etc..
Muitas vezes dormíamos mesmo no carro ou montávamos tenda, Fomos mesmo integrados numa operação militar à Região do Luíana (disso falarei mais tarde). Na ocasião estávamos aboletados numa Coutada de caça e já tínhamos feito vários contactos com uma tribo de "Buchímanes" de que falarei noutra ocasião.
Depois de termos conseguido filmar em boas condições antílopes, avestruzes, búfalos e mesmo um rinoceronte, não tínhamos visto elefantes em condições filmáveis.
Entretanto chegaram dois turistas americanos vindos directamente de avião da África do Sul, (nem passavam por Luanda). Também procuravam elefantes dos quais só queriam levar uma pata, para cada um e uns bocados de pele para fazer carteiras. Também tiveram dificuldades. Mesmo uma vez em que estivemos mais perto, como junto deles estava um rinoceronte – que ouve muito melhor que o elefante – este fugiu e os elefantes seguiram-lhes o exemplo.
Numa madrugada em que não seguimos com os americanos fomos dar com uma "libata" de "ganguelas" - povo daquela região – que estava a fabricar uma espécie de cerveja de "massambala" uma gramínia muito vulgar. É curioso que esta "cerveja" chama-se "makau" (cheirava mesmo a cerveja e foi isso que nos chamou a atenção) Pedimos ao Sóba, que ali é também o feiticeiro, que nos deixasse filmar aquela operação, ao que ele não se opôs. Posto isto pedimos que fizesse um feitiço junto do "Pau Votivo" pois eles não têm imagens, bonecos ou fetiches. Diz ele:"vou fazer feitiço prá aparecer "arefante". Juntou algumas mulheres em volta do "pau votivo", pintou-lhes as caras com cinza e uma pasta branca, fez muitos gestos "cabalísticos", fez umas rezas e foi tudo; aliás bastante breve.
Era ainda bastante cedo e continuamos na nossa busca, e já da parte da tarde fomos encontrar os caçadores americanos e pouco depois, finalmente, um elefante que eles mataram.
Ao regressar à Coutada passamos pela "libata" e dissemos ao Soba que na madrugada seguinte passaríamos por ali para os levar até junto do elefante para eles o esquartejar e dividir. Aqui um à parte; como deve ter subido o prestígio daquele "kimbanda" junto do seu povo! Fazer o feitiço e, no mesmo dia aparecer elefante, é obra! Pelo menos o alarido das mulheres dava-lhe nota alta. Assim, no dia seguinte carregamos o jeep com uma multidão de homens com catanas e facas e mulheres com bacias e alguidares.
E lá chegamos ao elefante. Enquanto os homens abriam o paquiderme (tudo isto nós, o Raul e eu íamos fotografando e filmando enquanto o Emílio tirava notas).As mulheres faziam um estendal para posteriormente porem a carne a secar. Omito os pormenores do desmontar do bicho que era bastante repugnante à vista e ao olfacto. Quero realçar a forma como foi feita a distribuição da carne pelas mulheres; O Soba separava uns pedaços de carne de diferentes partes do elefante, chamava uma mulher e entregava-lhe a porção que entendia; certamente segundo o número de pessoas que ela teria a seu cargo e nenhuma disse: "Aquela teve mais do que eu". (havia de ser cá!!!) Disciplinadamente ia estender no varal a parte que lhe coubera.
Entretanto alguns homens punham às costas porções de carne a afastavam-se até desaparecerem da nossa vista. Perguntamos para onde iam e foi-nos dito que iam levar a carne a outros povos vizinhos que noutras ocasiões tinham feito o mesmo com eles. Mas o mais estranho veio a seguir.
Com o maior espanto vejo aproximarem-se dois buchimanes com dois paus às costas que sem dizerem nada se metem também dentro do elefante e vá de cortar carne. Sabendo como era grande o ódio entre os Bantus e os Mucancalas (o mesmo que buchimane) imaginamos logo ali um massacre. Nada disso; os homens enfiaram a carne que puderam nos paus que traziam, puseram-nos atravessados nos ombros e, sem dizer água vai, lá se foram por ponde vieram.
A explicação que nos foi dada pelo próprio Sóba foi que se toda a gente tem fome, quando se apanha um elefante ou outro animal grande toda a gente tem direito a levar aquilo que for capaz de carregar. Mas não sejamos românticos e não vejamos nisto um simples acto de solidariedade. O instinto da sobrevivência, fala aqui muito alto: "hoje por ti amanhã por mim", mas não deixemos de pensar quão diferentemente se passam as coisas neste nosso mundo civilizado. Ou mesmo naquela mesma África mas mais para o Norte, Luanda, Uíje, Malange, etc onde o contacto dos povos nativos com os europeus é mais estreito e antigo.
Já se sabe que mais depressa se absorvem os maus exemplos do que os bons.
De qualquer forma, o que me deixou marca foi realmente o episódio solidário e humano que presenciei do "ELEFANTE REPARTIDO".

João Silva
Blog Roxa Xenaider