quinta-feira, 28 de abril de 2022

ZECA AFONSO, RUI PATO e SALGUEIRO MAIA


Na EPC de Santarém, em 1969:

Você é que anda a acompanhar o Zeca Afonso nos discos?"
- Sou, sim, meu tenente!
Então fica já uma coisa combinada - sempre que eu estiver de serviço, o meu amigo leva a viola para o quarto do médico de serviço.

Como a maior parte de vós saberá, o Rui Pato, que tocava com o Zeca desde 1962, foi impedido de o acompanhar na viagem a Londres para a gravação do disco Traz Outro Amigo Também, por se ter envolvido nas lutas dos estudantes durante a crise académica de 1969. Também por isso, tal como todos os outros estudantes afetos à AAC (50!), foi expulso da Universidade - frequentava já o 4.º ano de Medicina - e castigado com o serviço militar.
Depois da recruta, em Mafra, Rui Pato foi enviado para Santarém, para o quartel de cavalaria, onde acabou por conhecer Salgueiro Maia. A seguir aos comandos, a cavalaria "era a pior arma porque estava preparada diretamente para a guerra na Guiné, tinha uma instrução própria", explicou ao DN em abril de 2019.
"Aí, foi um período duríssimo, porque foi instrução a sério, mas também teve os seus aspetos interessantes, que começou logo no dia em que fomos apresentados ao tenente Salgueiro Maia, que mandou destroçar a parada e se dirigiu a mim e ao João Pais Brito, que depois acabou por fugir".
"Você é que anda a acompanhar o Zeca Afonso nos discos? 'Sou sim, meu tenente'. Ora bem, vocês sabem que têm aqui um estatuto especial e que nós somos obrigados a vigiar-vos de uma maneira muito mais apertada do que aos outros recrutas que aqui temos?".
A resposta de Rui Pato e de João Pais Brito não se fez esperar: "Sabemos, sim". O espanto vem a seguir com o pedido de Salgueiro Maia: "Então fica já uma coisa combinada - sempre que eu estiver de serviço, o meu amigo leva a viola para o quarto do médico de serviço".
"E assim foi. E passámos umas noites animadas e nessa altura fiquei a saber quem era o Salgueiro Maia, isto ainda em 1969, quando ainda faltava bastante tempo para a revolução de 1974, em que já no posto de capitão teve um papel importantíssimo", contou ainda ao DN o RUI PATO.

E, já agora acrescento eu que, numa tertúlia em casa de amigos comuns, em Amiais de Cima, concelho de Santarém, ouvi o Fernando Salgueiro Maia cantar e tocar Zeca Afonso muito bem, com a sua voz tonitruante, enchia todo um salão sem precisar de microfone. Isto em 1980, já depois do regresso dos Açores, para onde tinha sido transferido em 1976.
(esta história tinha de ser contada com o devido destaque, o Rui Pato já a contou no seu mural, não sei se alguma vez aqui também em comentário, autorizou-me a contá-la aqui, tanto mais que é pública, consta num artigo do DN de há dois anos)

quinta-feira, 21 de abril de 2022

DOS FEITOS POR GUIDAGE OU OS DIFÍCEIS CAMINHOS DA LIBERDADE



No dia 22 de Maio de 1973, a minha companhia tem tudo pronto para seguir para o Cumeré(1), com vista a regressar a Portugal. A boa disposição é permanente e total.
A companhia, depois de uma comissão quase permanentemente actuando como unidade de intervenção, com a consciência do “dever cumprido”, dá largas à sua alegria, provocando o pessoal das outras unidades com o velho “Periquito vai no mato... que a velhice vai no Bissau”.
Pelas 19 horas recebo uma chamada de Bissau que me informava ir receber uma mensagem ordenando que a nossa companhia não seguia para o Cumeré mas para outro lado, com vista a fazer uma operação de 6 dias antes de embarcar.
Nesta altura, o PAIGC desencadeava uma ofensiva em pinça, a norte por Guidage(2)  e a sul por Guileje. Esta última posição já tinha sido ocupada pelo PAIGC, que capturou todo o material lá existente, depois de vários dias de cerco e bombardeamentos; a norte, lutava-se por Guidage. Na zona de Guidage, as flagelações do mês de Maio de 1973 passaram de 50, no mês anterior, a 167. O IN(3)  passou a utilizar mísseis terra-ar, do que resultou serem abatidos 1 avião DO-27 que acabava de evacuar feridos da pista de Guidage, um avião T-6 de uma patrulha de 2, que foram ver o que tinha acontecido ao DO-27, e um avião Fiat G91. Dos aviões abatidos resultou a morte de todos os ocupantes do DO-27 e de um dos outros pilotos, pois um deles pôde ser recuperado depois de se atirar em pára-quedas.
O único acesso a Guidage passava por Binta, a cerca de 20 km; no itinerário, o IN implantou um campo de minas anticarro e antipessoal, com a originalidade de, pela primeira vez, as minas anticarro rebentarem com a simples “pica” (pau com um pedaço de verga de ferro na ponta e que servia para, picando o terreno, ouvir o bater do ferro na mina). Antes das minas, a última coluna de reabastecimento a Guidage foi atacada consecutivamente durante cerca de 24 horas, tendo a escolta esgotado praticamente todas as munições de armas ligeiras que transportava, pelo que as viaturas com o restante material e os nossos mortos foram abandonadas no terreno, tendo as NT(4) retirado em boa ordem para Guidage, sofrendo 4 mortos, 8 feridos graves e 10 ligeiros. O Batalhão de Comandos foi enviado às bases IN localizadas no Senegal – operação “Ametista Real” – para tentar diminuir a impetuosidade do ataque mas, apesar de destruir material diverso, teve de retirar face a que o IN lhes surgiu com viaturas blindadas e sofreram 16 mortos, sendo dois oficiais, e 20 feridos.
Uma companhia de paraquedistas e um destacamento de fuzileiros tentam abrir o itinerário e conseguem chegar a pé a Guidage, mas com 3 mortos e vários feridos, depois do destacamento de fuzileiros ter caído no campo de minas e os paraquedistas terem sofrido uma emboscada em campo raso, onde o IN utiliza canhão sem-recuo em tiro directo.
Por volta de 20 de Maio, existiam cercadas em Guidage as seguintes unidades: a companhia de Guidage; a companhia que escoltou o último reabastecimento de Bissau sem problemas; a companhia de Farim, que teve de abandonar as viaturas, posteriormente bombardeadas e destruídas pela Força Aérea quando o IN as descarregava; a companhia de paraquedistas; o destacamento de fuzileiros; e o efectivo de cerca de uma companhia de comandos, constituído pelos homens das várias companhias que tinham actuado no Senegal mas, por cansaço ou ferimentos, não tinham podido retirar a pé para Binta; por fim, 1 furriel e 2 praças, únicos sobreviventes do pelotão de artilharia em apoio, cujas peças o IN tinha feito o alvo preferido (num dos ataques, o IN, que fazia tiro com observadores avançados, como numa carreira de tiro, acertou em cheio no abrigo da guarnição de uma das peças e fez 4 mortos e 3 feridos graves); existiam, ainda, 2 pelotões de milícias que, de Bigene, se dirigiram para Guidage, sendo emboscados no caminho e tendo sofrido 1 morto e 2 feridos graves.
Do desenrolar de várias acções na zona de Guidage, as NT sofreram mais 5 mortos e 23 feridos, sendo 7 graves, além de, dentro de Guidage, terem sofrido 3 mortos e 24 feridos, depois de prejuízos graves no aquartelamento. Nova coluna de reabastecimentos fica retida em Farim, pois no itinerário Mansoa-Farim foi atacada, tendo sido destruídas 3 viaturas, que ficaram no terreno, para além das NT terem sofrido 4 mortos e 16 feridos, sendo 9 graves, incluindo um oficial. Destas acções resultaram cerca de 70 mortos e muito mais feridos para o PAIGC, entre 5 e 22 de Maio de 1973.
No Sector Sul, continuava a acção IN, tendo abatido 2 aviões Fiat G91, com a morte de um dos pilotos, para além de atacar em força Catió e Cufar, e dificultar os trabalhos na estrada Cadique-Jemberem. Na sua luta por Guidage, o PAIGC utilizou a Art.ª pesada e ligeira do CE 199/E/70, apoiada por infantaria do CE 199/B/70 e CE 199/A/70, além de um grupo especial de mísseis terra-ar que, para além do referido, pode ter sido o responsável pelo desaparecimento de outro avião DO-27. Em armamento, o IN utiliza nesta altura  peças 120 mm, de tiro rápido, foguetões 122 mm, morteiros 120 e 80 mm, canhões-sem-recuo de 7,5 e 5,7, lança-granadas-foguete RPG 2 e RPG 7, isto para além do armamento ligeiro normal e mísseis Strela terra-ar.
Com estes brilhantes antecedentes, não foi fácil prever qual a operação a desencadear. A 23 de Maio, pelas 06.00, inicia-se a cambança(5)  do Rio Mansoa, em João Landim; pelas 08.30, estamos em Bissau no Combis(6), e começamos de novo a receber material de guerra para substituir o que tínhamos entregado com vista a embarcar para o Continente. Aqui começam os problemas. Em primeiro lugar, não havia granadas de morteiro de 81 ou 60 para fornecer, pois estavam esgotadas, não havia lança-granadas 8,9 (arranjámos 2 por especial deferência), pois estavam a aguardar a devolução a uma unidade que as tinha mandado arranjar; não havia cantis para toda a gente, arranjou-se depois um cantil por homem, o que se sabia ser manifestamente insuficiente. Enquanto isto decorria, desloquei-me ao Comando-Chefe saber o que acontecia. Como eu previ, íamos seguir para Binta-Farim, com vista a, com mais uma companhia de comandos, uma companhia de indígenas e outra companhia de atiradores de Farim, abrir o cerco a Guidage, ao mesmo tempo que os sitiados tentavam também abrir caminho. Pergunto porquê a minha companhia, quando já cumpriu a comissão. A resposta deixa-me elucidado. Íamos nós por não haver mais ninguém, isto é, tudo o que estava disponível era o pessoal que ia regressar à Metrópole e, de entre este, a nossa companhia – porque tinha tido bom comportamento em combate – foi “escolhida”; isto é, se tivesse mau comportamento vinha para o Continente, como tinha bom comportamento continua na “guerra”. Que melhor incentivo para a “vitória militar!”
Como o itinerário Binta-Guidage está minado, querem que a companhia leve quase uma tonelada de trotil para fazer rebentar as minas. Se fôssemos a fazer isso, nunca mais chegaríamos ao objectivo, para além de que não é nada agradável transportar explosivos em zonas minadas e de emboscadas permanentes. Para não entrar em conflitos complicados, acabamos por levar 100 quilos de trotil, que nunca chegaremos a utilizar, mas, como não temos granadas, talvez sirvam para responder “à pedrada”.
Depois de uma comissão, onde a dedicação foi total, para além das baixas não substituídas deixamos ficar em Bissau, com baixa à enfermaria, 14 homens; os outros também não vão famosos. Os meios auto também são poucos. Para garantir o transporte do pessoal com um mínimo de segurança temos de, em Farim, “roubar” uma Berliet à companhia de transportes de Bissau.
Em 26 de Maio, chegámos a Binta, onde já se encontravam as outras forças. Verifico que estão 3 capitães, alguns alferes, pouca comida e, para cúmulo, temos de dividir as munições com as outras subunidades, pois ainda estão pior que nós. Para uma missão de tal responsabilidade e de que só tomaria plena consciência depois de chegar a Guidage, local onde compreendi como foi possível Dien-Bien-Phu, não havia nenhum oficial “superior”. Assim, os capitães fizeram uma mensagem para o Comando-Chefe onde pediram um oficial superior com vista a comandar a operação. Claro que nenhum apareceu, mas, entretanto, houve muitas “baixas” ao HM 241(7)  e passaram a ver-se menos majores nos cafés de Bissau.
No dia 29 de Maio, pelas 05.00, iniciámos a abertura do itinerário Binta-Guidage. Cerca das 10 horas, ao ser picada, foi accionada uma mina anticarro, de que resultou um morto (ficou somente um bocado do tronco, pois o resto desapareceu), um furriel cego e 2 feridos ligeiros. Foi ordenado ao pelotão a que pertenciam as baixas para, em 2 Unimogs, fazer a evacuação para Binta, onde a companhia local os evacuaria para Farim e daqui para Bissau, em face de já não haver evacuações aéreas no local, devido à existência de mísseis terra-ar. O pelotão que fez a evacuação aproveitou a oportunidade e não voltou, como lhe tinha sido ordenado, e assim ficámos com menos 2 viaturas e cerca de 30 homens. Talvez para que o mau exemplo não se espalhasse, esta deserção colectiva em frente do IN, apesar de constar no relatório da operação, não originou qualquer procedimento disciplinar. Após o incidente e conforme o planeado, iniciamos a progressão a corta-mato, levando na frente uma viatura D 6 que abria o caminho junto com uma Berliet. Outra Berliet seguia em segundo lugar, a uns 300 metros, levava somente o condutor com um homem ao lado, tinha a caixa de carga cheia de cunhetes abertos, com todo o tipo de munições, prontas a utilizar – era a nossa arma secreta, o “self-service”. Até ali, o PAIGC tinha utilizado a táctica de ataques frontais em linha, com forte potencial de fogo, em que cada homem armado levava 2 a 3 carregadores, para o substituírem, caso fosse ferido ou morto, evacuarem e continuarem o ataque. Esta maneira de actuar vinha do Vietname; o ataque decorria em vagas sucessivas até esgotadas as munições, as NT terem de retirar, altura em que era desencadeado o ataque final. Com a nossa arma “selfservice” estavámos sempre prontos a responder taco-a-taco.
Um grupo do PAIGC, estimado em 120 elementos, atacou-nos pelas 12.00, utilizando a técnica já descrita, ao mesmo tempo que batia a zona com morteiros de 82 mm. Poucos minutos depois de ter sido repelido o primeiro ataque, o PAIGC volta, mas com as NT já remuniciadas. Voltam terceira vez, tentando envolver-nos, depois de nos fixarem pontualmente; também já desta vez estamos remuniciados e tínhamos adoptado um dispositivo em L para prever o envolvimento. Os ataques duraram mais de uma hora. Pelas 14.00, tinham desmaiado 6 homens, vítimas do cansaço e da insolação, consequentes de, desde o nascer do dia, estarem a pé e ao sol, carregados com todo o material bélico possível, depois debaixo de fogo terem rastejado, envolvidos na poeira do seu movimento e na consequência dos vários rebentamentos, terem para beber a água de um cantil por homem, que já há muito tempo tinha sido gasta. Com seis homens desmaiados por insolação, sem água para lhes dar e com todo o pessoal cansado, a situação não era brilhante, pois que, para levar cada homem, eram pelo menos necessários 4, mais 4 para render os primeiros; dava uma hipoteca de cerca de 60 homens só para se encarregarem do transporte. Felizmente, a coluna de reabastecimento de Bissau veio avançando, para aproveitar o novo itinerário aberto, e assim houve a hipótese de subirmos para as viaturas, continuando a companhia de comandos e a de Farim na testa da coluna. Atingida a bolanha do Cufeu, entrou-se em contacto com a companhia de paras que vinha de Guidage ao nosso encontro. Na região de Ujeque, o nosso corta-mato encontrou a antiga picada, apresentando chão firme e sinais de abandono, pelo que tentámos seguir por ela, só que, pouco depois, rebentava nova mina debaixo da quarta viatura da coluna, um Unimog 404; quando o pessoal saltou para o lado, um militar accionou uma mina antipessoal e ficou sem uma perna. De imediato se voltou a sair da picada e a seguir a corta-mato. Pouco depois, entrámos em contacto com o destacamento de fuzileiros retido em Guidage e que veio apoiar o nosso movimento. Quase às 18.00, foi a coluna novamente atacada, agora sem consequências para as NT e de curta duração, face à impetuosidade da resposta. Ao cair do dia, esgotados, chegámos a Guidage pelas 19.00.
Guidage, ao anoitecer, tinha um certo aspecto de irreal; o chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pareciam em ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia. Houve grande regozijo e azáfama com a nossa entrada, pois era necessário preparar tudo para os cercados regressarem ao alvorecer do novo dia, sem dar tempo ao PAIGC para minar o novo itinerário; por outro lado, era necessário dispersar os homens, pois os ataques eram frequentes. Como que para nos cumprimentar, pelas 21.00 somos flagelados por morteiros 82, com as granadas a cair em grupos de 5 e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm das capturadas na coluna de reabastecimento e agora disparadas pelo morteiro 82. Felizmente, destas granadas algumas não rebentam e, por sorte, são as que caíram mais perto de nós.
No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que até à data tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos que já padeciam, deitados sobre colchões velhos saltavam como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco.
Um mês depois, a 30 de Junho de 1973, seria a nossa vez de regressarmos a Bissau, onde ficamos fora das escoltas às colunas para Farim e no intervalo fazer segurança ao arame farpado de Bissau.
Só em Outubro de 1973 regressamos ao Continente, com 6 meses de comissão a mais. Durante 40 dias, devido a só termos sido informados de que íamos efectuar uma operação por 6 dias, não tivemos outra roupa para além da que tínhamos no corpo, que, entretanto, por falta de lavagem e com largos meses de uso intensivo, começou a apodrecer nas virilhas e nas covas dos braços, as calças começaram a abrir pelas costuras e a transformar-se em safões. A barba por fazer dava a todos o aspecto de salteadores ou de loucos, as micoses e outras erupções de pele eram gerais. Quando chegamos a Bissau, seguimos para o Combis, onde ficamos fechados, pois ninguém se podia aproximar e ver o “nosso estado”.
Mas em Guidage nem tudo foram más recordações, em especial a camaradagem e o comportamento da população; mas, mesmo os maus momentos são recordados como um sonho, tal a dimensão do não-senso em que se concretizaram.
A primeira característica de Guidage como “Nave dos Loucos” é o de não haver qualquer tipo de horário; tanto se podia comer a primeira refeição às 3 h da manhã com às 11 ou 12, isto porque todas as horas eram boas para os bombardeamentos do PAIGC, mas em especial as horas normais das refeições eram as escolhidas. Em Guidage só havia 1 hora de água por dia e esporadicamente luz para iluminar pontos suspeitos, porque o gasóleo para os motores trabalharem era pouco e não se sabia quando vinha mais.
A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros, mas com o material disponível só poderíamos fazer o mais elementar em primeiros socorros.
O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel, esporadicamente errava-se por lanços por entre os edifícios ou do que deles restava; se o movimento se tornava mais normal, lá apareciam umas granadas de morteiro 82 para nos fazer lembrar que devíamos ter mais cuidado. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri, dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3 que me permitia lavar o camuflado, uma escova de dentes, e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira, quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era preciso juntar mais gente. Nesta altura, pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes, para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse pecado na consciência. Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da Artilharia, onde houve 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo foi atingido em cheio por uma granada de morteiro 82, com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha, com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro seco; o odor envolvente era um pouco azedo mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão; depois de dar volta aos 8 que lá se encontravam, consegui encontrar o que estava menos sujo, tirei-lhe a capa, mas o cheiro que se encontrava dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar, debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado, que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde tinha vindo.

Em Guidage havia o “passatempo diário”. Consistia em adivinhar quando se comia; a ração diária consistia em um punhado de arroz e uma pequena salsicha de aperitivo ao almoço e jantar, isto porque não havia outra coisa para comer, salvo se, de entre os escombros do depósito de géneros, surgia alguma surpresa. No depósito de géneros, praticamente inteiros, tínhamos os sacos de farinha e de arroz, para além das latas de salsichas; tudo o mais estava desfeito. Sob o ponto de vista alimentar, a odisseia consistia em fazer pão; tínhamos farinha mas não tínhamos fermento; fizemos as misturas mais incríveis de restos de medicamentos moídos, tentando levedar a massa, mas o calor envolvente secava-a antes de azedar; assim, o nosso pão consistia nuns pequenos bolos de farinha, estilo broas de Natal, que nós chupávamos.
Nas horas a que normalmente deveríamos comer, costumávamos ser obsequiados com um grupo de 5 granadas de morteiro 82 enviadas pelo PAIGC (5 era o número de granadas que conseguiam pôr no ar ao mesmo tempo).
Em Guidage, não havia falta de passatempos, isto porque, estando Guidage construído sobre a fronteira com o Senegal e com a pista de aviação já no terreno do Senegal, existia, cerca de 2 km para o interior da República do Senegal, uma estrada paralela à fronteira, que durante a noite era extraordinariamente concorrida, em especial pelas colunas do PAIGC, escoltadas por blindados de origem russa. No silêncio da noite, e conforme o sentido do vento, ouvíamos o chiar das lagartas e o barulho dos motores, que pareciam vir na nossa direcção. Não tínhamos uma única arma anticarro e todas as granadas de bazuca eram antipessoal, pelo que, se o PAIGC avançasse com os blindados, restava-nos retirar em boa ordem. Para cúmulo, sabia que até 1968, em Moçambique, as unidades praticamente só tinham granadas anticarro, que utilizavam como antipessoal. Que agradáveis noites aquelas em que, de ouvido no solo, tentávamos saber se eles vinham ou iam! Bem, mas havia outros passatempos. Por exemplo, um sargento enfermeiro passava o tempo com velas de estearina a tapar os buracos do corpo de um militar nosso, de uma companhia de tropa especial, para que o corpo não começasse a cheirar mal, isto porque a companhia ameaçava desertar quando ele começasse a apodrecer.
Mas nem tudo era mau, pois os mortos das outras companhias foram, sem problemas, enterrados na parada, fora os que ficaram abandonados na picada. Mas, percorridos estes anos, no fundo do nosso espírito nacional-porreirista, não há problemas, porque, segundo dizem as consciências do antigo regime: “A guerra estava ganha!”... 


Por Salgueiro Maia

(1) - Campo Militar de Cumeré, próximo de Bissau, onde se processavam as operações de chegada e partida das unidades de reforço metropolitanas. (2) - Em linha recta, a distância de Bissau a Guidage é idêntica à distância Lisboa-Caldas da Rainha. (3) - Abreviatura de “inimigo”. (4) -  Abreviatura de “nossas tropas”. (5) - Termo local que significa “travessia de rio”. (6) - Abreviatura de Comando de Bissau. (7) - Hospital Militar de Bissau. 

quinta-feira, 14 de abril de 2022

O EXTRAVIO DA CADERNETA MILITAR











Quando em 1983 me surgiu um contrato de trabalho para Angola, através de uma empresa inglesa, tive a necessidade de obter uma licença militar para me poder ausentar para o estrangeiro. Foi nesta altura que senti a falta da caderneta militar. Como nunca apareceu na minha residência, nem no posto da PSP mais próximo, comecei por me deslocar à BA1-Sintra onde passei à disponibilidade, mas aí nada constava em relação à caderneta. Seguidamente fui ao EMFA-Estado Maior da Força Aérea, e também não havia qualquer documento que me pudesse valer. Foi-me sugerido ir a um Arquivo Militar na Avenida de Berna em Lisboa, onde me desloquei, mas não foi encontrado nenhum documento comigo relacionado. Só me faltava fazer mais uma tentativa de ir à SEA-Secretaria de Estado da Aeronáutica. No dia seguinte lá fui, e quando me encontrava ao balcão a expor o meu problema, eis que surge um primeiro sargento que tinha estado no AB4 no meu tempo precisamente. Expliquei o motivo de estar ali, ele prontamente se dispôs a procurar documentação que me pudesse ser útil. Após alguma espera veio ter comigo e disse-me, que a minha caderneta não constava, mas para me dirigir ao DRM de Setúbal onde existia parte do meu processo. No dia seguinte lá fui à secretaria, gentilmente atendido por um sargento, que depois chamou um capitão a quem expus a situação. Alguns minutos depois, o capitão disse que era possível adquirir a licença militar que eu precisava, e que me seria passada uma segunda via da minha caderneta militar, mediante uma fotografia e comprovativo de morada actual. Gostaria de saber se com alguns de vós se passou o mesmo, ou se foi caso único. Abraço Por: Antonio Pereira

quinta-feira, 7 de abril de 2022

OPERAÇÃO SACANDICA


Há 61 anos tinha inicio a Operação Sacandica, em Angola, utilizando os Páraquedistas o salto em paraquedas para a colocação em operações, no Norte desta Província, junto à fronteira do ex-Congo Belga.
Na altura, esta povoação era o último reduto importante sob controle do inimigo.
Os Páraquedistas ultimam os preparativos, estuda-se a zona, prepara-se o equipamento, armas nos respetivos sacos, prontas para o primeiro embate com o IN. Quase todos são principiantes em saltos em combate (anteriormente tinha havido em Quipedro e Serra da Canda), a descontração reina, mesmo sabendo que não haverá qualquer bombardeamento prévio. O responsável pelo lançamento é o T.Cor. Alcínio Ribeiro, ser largado pelo Comandante é uma honra que poucos Páraquedistas sentiram. Os comandantes de secção não se cansam de lembrar as regras de segurança, logo após a aterragem: arma em posição de fogo e varrer tudo o que pareça inimigo, sem descurar a posição dos companheiros.
Uma viagem de 350 quilómetros, na reta final é bem visível o vale que se abre em direção a Norte, no sentido do azimute para o objetivo. De súbito sente-se a redução das rotações dos motores e uma ligeira oscilação da carcaça barulhenta indica a correção da rota. Aos poucos nota-se o terreno com nitidez, vislumbram-se inúmeras palhotas e lavras com verduras.
Sacandica está à vista, o largador coça o bigode e afirma:
- Até parece o campo do Arripiado, vão fazer um salto com aterragem serena!


Os primeiros a saltar servem de sonda e orientação da predominância do vento. Uns a seguir aos outros e depois de mexerem as pernas e os braços, outros bebendo um golo do cantil preparam-se para a luz verde. No ar...apercebem-se que em lugar da planura do areal do Arripiado, vão encontrar um local com árvores por todo o lado, no entanto, apercebem-se da fuga do inimigo, que provávelmente não contava com este meio de infiltração.
Mais de metade dos Páraquedistas aterraram nas árvores, tendo algumas mais de vinte metros de altura. Depois da reorganização foi tempo de partirem para as missões. Uma delas foi cortar um tronco para servir de poste à Bandeira Nacional, em mais uma povoação reconquistada à UPA. Nos dias seguintes é visível a boa disposição numa foto do próprio Comandante, junto dos seus homens, em Sacandica, tal como o segundo Comandante da Região Aérea de Angola.

O sucesso desta operação e outras idênticas recorrendo ao salto operacional, veio demonstrar a grande mobilidade das Tropas Páraquedistas em situações de iminente perigo, apoio a outras tropas sitiadas no terreno ou ocupação táctica de posições estratégicas. Neste caso concreto, com as vias terrestres obstruídas, a deslocação era perigosa e mais morosa.

*Bibliografia: adaptação livre do livro de Joaquim Coelho "O Despertar dos Combatentes".