quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A AMIZADE E IRONIA SATÍRICA, A UM "JOVEM" AGRICULTOR !


2022 "Annus horrible" para o agricultor Esteves!
Aquele rapaz jovial MMA da linha da frente no AB4 e do Luso que se fartava de fazer destacamentos no Cazombo, Cuito Canaval e Gago Coutinho em 1972 até fins de 1974 conhecido por João Esteves, está a passar por um ano agrícola cheio de dissabores que o têm desanimado, pois também é agricultor.
Quando findou a sua prestação na FAP, o João, pela mão de um cunhado, abraçou a arte de caixeiro-viajante e começou na então famosa Tulipa Negra onde percorria o médio e norte do país com predominância em Trás os Montes.
Vendia artigos de decoração tão procurados à época, como faianças, casquinhas, pratas, estanhes, alabastros, cristais e produtos novidade.
O Esteves teve sucesso, adquiriu um duplex no Porto e um terreno agrícola para os lados de Chaves. Este terreno não nivelado, semiabandonado, tinha já algumas oliveiras e  de fruta bichadas. Mandou arrasar socalcos, arrotear terras e plantar dezenas de oliveiras e amendoeiras, tendo prontamente adquirido terrenos contíguos.
A pequena casa de apoio existente que tinha sido um lagar de azeite, otimizou-a e, sem destruir vestígios antigos e funcionais, arquitetou uma casa moderna para toda a família. Construiu também uma piscina de dimensões apreciadas com água corrente e jardins de apoio que, com uma periodicidade anual, nos presenteia com um almoço salutar.
A atividade agrícola é um part time. Ele ainda não deixou de praticar as tarefas que lhe dão o maior gozo. Jogou andebol até aos 50, onde foi cotado como magnífico atleta. Praticou ténis até aos 69 anos, não sei se teve de abdicar por grave lesão num joelho, ou por varizes. Foi campeão nacional de ténis na classe dos moribundos. Aquele Esteves folgazão que conhecemos já acabou, foi há 3 anos em Madrid, num arraial noturno, fraquejou e deixou-o inibido.

O João tem agora 70 anos e todos os dias pega na mala que já não é de madeira e vai visitar os fregueses, agora com acompanhamento ligado às novas tecnologias. Continua a vender produtos de decoração espanhola e italiana, onde tem de se deslocar amiúde, para se atualizar e acompanhar clientes. Vende mesas, cadeiras muito modernas, escaparates, espelhos e novidades. Como ele só tem 70 anos ainda tem mais 15 anos para trabalhar até à reforma final.
No seu projeto agrário tentou aproveitar a potencialidade da região que é sobretudo a exploração do azeite e amêndoa, preterindo a vinha. A vinha foi a primeira a arrancar, pois o seu feitor, que é também enólogo, regente agrícola, o tipo faz tudo, achou que a Quinta tinha demasiadas variedades de castas e nunca poderia produzir um "Terroir" digno desse nome.
Para consumo próprio 
o Esteves compra ao Gilberto o vinho já engarrafado, produzido com uvas produzidas na aldeia. Ao plantar novas oliveiras e amendoeiras procurou incluir os novos processos de rentabilidade e qualidade do produto que queria comercializar. Aumentou o processo de drenagem e extração e recolha de água, instalou sistemas de rega tipo gota a gota, com central de pressão na rede, leitura permanente da humidade dos solos, distribuição do caudal de água computadorizada conforme as necessidades pontuais e o eventual lançamento na rede de substrato.


Tudo corria na perfeição com a previsão atestada pelo 
estado da floração, mas chegou o ano de 2022.
Nós, os leigos, que não percebemos nada de agricultura, já tínhamos tomado da situação alarmante de falta de chuva no Outono e Inverno, o que não augurava nada de bom para as culturas. O Esteves, também de sobrenome Deus, não teve sorte e Ele não lhe valeu. O primeiro aviso foi dado pela pequena produção das cerejas, figos e ameixas cujos bandos famintos de melros e estorninhos se anteciparam à miserável colheita. Nas oliveiras e amendoeiras a falta água mirrou os frutos, mesmo com tratamento fito sanitário, apareceram as doenças e quedas de frutos.
O Esteves que faz o favor de ser nosso amigo e nos acompanhar nas sextas feiras, já não é o mesmo. Aquele cabelo outrora ralo e alinhado deu lugar a uma trunfa rebelde. O bigode farfalhudo, que era a sua imagem de marca, perdeu o vigor e agora parece um pincel de barba com metade das ardas. O próprio nariz, em tempos altivo, parece mais e assemelha-se ao apaga velas usadas nas igrejas.
Este estado de coisas preocupam os amigos de sexta-feira e lembramo-nos de pedir ajuda aos nossos amigos alfacinhas, para rentabilizar aquela máquina que comprou para descasque de amêndoa, que este ano vai estar parada.
A máquina, adquirida a um artesão de Mogadouro, possui já requintes de 
modernidade com uma ligeira afinação ou ajustes, pode descascar pevides de abóbora, um entretenimento obrigatório dos fanáticos do futebol, sobretudo quando o clube do coração está a perder. Como a máquina tem uma altíssima produção é necessário assegurar uma logística eficaz e flexível, mas não só. É obrigatório um armazém, licenciamento, higiene alimentar, embalagem e comercialização.
Pomos à consideração dos nossos amigos a possibilidade de alguém começar com esta indústria pioneira que pode transpor fronteiras. Senão for possível, só podemos desejar ao João Esteves um ano 2023 mais favorável.






TONETA, Dezembro de 2022

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

MILAGRES DE NATAL



Passei dois Natais em Angola, em 1971 no AB4 - Henrique de Carvalho, e em 1972 no AR - Gago Coutinho.
Com mais de 28 meses de comissão em Dezembro de 1973, sem substituto, já desesperava com a possibilidade de passar o terceiro quando chegou a mensagem com a minha substituição.
Rumei a Henrique de Carvalho onde entreguei o espólio, e embarquei para Luanda numa sexta-feira com voo marcado para a segunda-feira seguinte desta vez e finalmente para Lisboa.
Nesse dia logo de madrugada rumei aos TAM para confirmar a partida e sofri a maior desilusão, quando me informaram que o voo tinha sido adiado e remarcado para a semana seguinte, dia 22 de Dezembro de 1973. Mais tarde, vim a saber que morrera o Presidente Francês, e o avião que me viria buscar tinha seguido para França com o Marcelo Caetano e a comitiva, para as cerimónias.
Tinha gasto todo o dinheiro (Angolares) que tinha pois não queria levar nada de Angola, e agora teria que me desenrascar para comer dormir e esquecer o stress de mais uma semana de "lerpa".
Embarquei finalmente e cheguei à Portela (Figo Maduro) na madrugada de 23, colocado perante o dilema de seguir para a BA5 - Monte Real apresentar-me e não passar outro Natal com a família, ou rumar a casa passar o Natal com a família e esperar o pior por não me ter apresentado, arrisquei e segui para a BA5 onde cheguei já de dia, depois de apanhar três comboios.
Felizmente o chefe do posto de rádio era um Sargento Ajudante, que posto perante a situação me disse:- anda daí, fomos à secretaria (guia de marcha, fotos, cartão de
identificação) à secção de fardamento (fardamento, roupa de cama, alojamento) e depois de almoço, já saía pela porta de armas, rumo a casa onde cheguei finalmente, já noite alta a 24.
Meti a chave à porta e ouvi os gritos de alegria da minha Mãe e Irmãs… Só então o meu coração ateu vacilou, e dei por mim a justificar que talvez tivesse tido uma ajuda do fio com a medalha de Nossa Senhora e do Cristo Africano, ou talvez eu fosse um dos Milagres de Natal!!!


OPC/ACO - Angola - 1971/1973

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

PERIPÉCIAS VIVIDAS NA "MAJESTOSA"


Memórias de um passado saudoso


Quase três anos de Leste de Angola
- muitas pequenas peripécias aconteceram na Torre de Controlo, onde operei por centenas de horas, noite e dia.
Nos primeiros dias que estive de serviço e, durante o turno da noite, fiquei com receio de permanecer exposto a uma cena de invasão da Base, pelos inimigos. Situava-me num ponto estratégico e que poderia ser um bom e primeiro alvo de ataque. Vinte e cinco metros de altura, edifício de fraca estrutura, gingando por todos os lados e, nos dias de grandes trovoadas, metia respeito !...

1 - Num dos turnos nocturnos, naquelas noites silenciosas em que quase todos os militares dormiam, eu vigiava através dos vidros da cabine hexagonal. Nisto, ouvi um roncar longínquo de um avião que me parecia ser de grande envergadura. Mirei com os binóculos todo o espaço aéreo ao meu alcance e, nem uma luzinha eu avistei - mas, o barulho continuava a ouvir-se e com maior ruído. Algum avião inimigo?
O DC7F rodesiano no Negage
Chamo Luanda, peço informações sobre a possibilidade da rota daquele avião e, eis que me informam tratar-se dum quadrimotor Rodesiano que transportava gado bovino. Curioso!...o piloto não deu sinais de vida aos meus apelos pela rádio e, nem o avião tinha alguma luz visível para assinalar a sua direcção…
Vim a saber mais tarde, que periódicamente fazia voos para o Negage.

2 - Noutra ocasião, encontrava-se um companheiro meu, o Rui Silva, de serviço à Torre. Ao escurecer, notou que havia uma luz que pairava no céu, mas que teimosamente não queria fazer-se à pista!... Tentou contactar com a suposta aeronave, mas esta não dava sinais de vida. Disparou um “very light” verde, para permissão de aterragem e, a luz da aeronave continuava a circular em volta da pista sem se aperceber de qualquer intenção. Intrigado, pensando que pudesse ser algum disco voador, telefonou para o Bar de sargentos a fim de solicitar a ajuda dum outro controlador mais experiente.
Lá vou eu ter com o Rui Silva para indagar da situação.
Conclusão, houve “ilusão de óptica”, “miragem pura”.
A aeronave não existia!
Porém, já tinha sido avisado o oficial de dia, iluminado as pistas com os candeeiros a petróleo e, chamado um bombardeiro B-26, que se encontrava ocasionalmente no Luso, para ajudar no combate…

3 - Noites mortas, difíceis de passar naquela Torre e, para me entreter, sintonizava um dos rádios transmissores para ouvir música.
Outros dias, acendia o holofote para atrair as borboletas e, de madrugada, descia ao edifício anexo à Torre e, pelos corredores, pisando as mal cheirosas formigas cadáveres, injectava com formol, (cedido pelo enfermeiro Correia) certas borboletas lindíssimas, grandes e, de todas as espécies. Coleccionei cerca de 200 e, ainda hoje tenho presente dois quadros na minha sala.
Soube que uns dos fãs destes “hobbies” , era um Sargento Açoreano chamado Flores. Este, dedicava-se com paixão na apanha das borboletas e, por sinal, na altura em que se encontrava em Henrique  de Carvalho, (antes de 1971), e quando os edifícios da Base eram pintados de branco, e, não de verde claro, ele conseguiu caçar a célebre e única borboleta no Mundo - Borboleta Caveira. Por cada quadro que ele elaborava, colocava uma dessas borboletas e, remetia-o para os Açores a fim de ser vendido aos Americanos. Fez bom negócio…
4 - Outras vezes, sem ocupação, dormitava na maca que a Torre possuía porém, era preciso ter um cuidado extremo pois, o célebre Capitão Laurentino andava na nossa perseguição.
Militarista de primeira, não queria que dormíssemos e, as luzes do tecto da Torre deveriam estar sempre acesas.
A nossa sorte era que quem iniciasse a subida à Torre, a fragilidade da estrutura fazia com que estremecesse e, nós, lá em cima, apercebíamos a situação.
Noutra altura, não deu para dormir…

5 - Luanda chamava, chamava…e, alertou para o facto de haver possibilidade da Base de Henrique de Carvalho se tornar alternativa para voos que se destinavam à capital. Luanda estava cercada de nevoeiro e, a pista do AB4 era superior à de Nova Lisboa.
Colocava-se a situação de como albergar os passageiros de alguns aviões pois, Hotel, só havia um!...
A pista não tinha iluminação eléctrica e a nossa cidade ficava no Cu do Mundo…
Passaram-se momentos de indecisões e, eis que o nevoeiro deu indícios de se dissipar. Assim, continuou Luanda a servir o tráfego aéreo. Livra…

6 - No dia 22 de Maio de 1972 em que um Friendship Fokker-27, da DTA, caiu no mar, junto de Lobito, a ansiedade de saber sobre a possível existência de sobreviventes era enorme. O co-piloto Mesquita foi um dos três sobreviventes e, tinha família na cidade de Henrique de Carvalho. Nessa altura, morreram vinte e dois passageiros e, um dos meus amigos de infância, militar no exército e jogador da equipa do Moxico, campeã de Angola em 1972, escapou-se por sorte. Quis o destino determinar-lhe fazer viagem por terra quando, lhe tinham já pago a viagem para seguir nesse avião.
Estava de serviço, no controlo, e recebi uma notícia particular de Luanda em que me solicitaram para dar a informação à família do co-piloto em como ele estava vivo. Foi um alívio para os familiares e, uma grande alegria que lhes dei porquanto, servi de primeira fonte informativa. Para mal do destino, esse piloto viria a falecer, anos mais tarde, num acidente aéreo, comandando um avião ao serviço da Sata, numa das ilhas centrais dos Açores.

7 - Encontro-me na Torre, dou autorização a um T-6 para aterrar mas, nem o vigio a cem por cento. Condições normalíssimas de tempo, pista toda por conta do avião em causa - que ficasse à vontade…
Mas, eis que ao olhar para a pista, vejo uma imensa nuvem de poeira!? Nem disse nada, no momento…
Quando fui almoçar, perguntei ao piloto. Eh.. pá… Andavas ás curvas na pista? Diz-me ele - não digas nada, o mecânico, distraidamente, carregou num dos pedais quando o avião estava mesmo a tocar o asfalto…

8 - Pilotos brincalhões e experientes, conheci muitos porém, num dia de vento moderado, assisti a uma aterragem de um Dornier-27, que mais parecia um helicóptero.
Vejo a DO com boa altitude a fazer-se à pista, dou-lhe autorização para aterrar e começo a avistar-lhe todos os movimentos. Devagarinho, contra o vento, desce-me como se fosse uma pessoa a descer os degraus de uma escada.
Devagarinho, de solavanco em solavanco, cai quase na perpendicular, dá um pulo no chão e, pára. Gozei com o espectáculo - nunca tinha visto coisa semelhante!
Cabo Verdeano de origem; o saudoso Alex…cumulativamente piloto do Governo Provincial.

9 - Fim de ano de 1973, tinha na cidade, família e, uma correspondente, a qual viria a ser minha mulher. Esta, tinha vindo passar o ano a Saurimo e, precisamente, no cinema Chikapa, com festa e bailarico!...
À partida, rumo a Malanje, eis que se encontra por debaixo da Torre para subir para o avião da DTA.
Disse para comigo!... - gostava de lá ir abaixo e, despedir-me dela!...
Chamei o especialista de comunicações, que se encontrava no seu posto e, solicitei-lhe que desse as instruções ao piloto para a descolagem. Não se previa mais movimentação de tráfego e, estes nossos companheiros tinham alguma instrução porque, ajudavam o controlo nos destacamentos.
Desci, esperei uns minutos, despedi-me dela e, voltei à Torre com ansiedade e expectativa.
Entretanto, tinha avistado outro avião a fazer-se à pista e, precisamente no momento da descolagem do F-27 da DTA.
Na Torre, vi o companheiro com aspecto amarelado, que me disse: Ehhh pá… apanhei um cagaço do car…!
Então?! … Ohhh … dar as instruções ao piloto da DTA, lá dei, mas apareceu-me outro a pedir instruções para aterragem e, eu fiquei a ver navios, em vez de aviões…
Vim a saber que os pilotos se entenderam pelas comunicações que travaram e, para nossos agradecimentos, nem o militar,  nem o civil, fizeram participação do acontecimento ao nosso comando militar.
Ainda hoje vivo esta situação como uma falha de responsabilidade que poderia ter dado para o torto…

10 - Parte do Luso um PV-2 com destino a Henrique de Carvalho. Comandava-o um Tenente que dava para o gordinho, meia-idade, e um pouco falador.
No subcomando, acompanhava-o o Gomes da Silva. Registei a hora da sua partida por comunicação com os colegas do Luso e, aguardei pelo contacto da aeronave. Sabíamos qual o tempo de rota para este tipo de aeronave e, não é que já passava do tempo e, a comunicação não saía!…
Chamei, chamei e, eis que me contactam. Informam-me da sua posição e, comunicam-me a hora prevista de aterragem.
Passa o tempo e, só muito mais tarde me pedem autorização para aterrar.
Conclusão, vim a saber por especialistas que, os dois pilotos vinham numa discussão sobre qualquer assunto e, distraidamente, prosseguiram rota sem terem dado conta da emissão do rádio farol de Henrique Carvalho. E, …não é que já se encontravam na fronteira do Congo !?

11 - Trovoada, trovoada que nunca tinha visto com tamanha dimensão!... Na Torre, equipamentos quase todos desligados, encontrava-me deitado na maca a pedir aos Deuses para não levar com um raio na tola. Tirei imensas fotos com o céu varado de raios… Parecia um festival de foguetes…
Um colega, da sala de despacho, receando pela minha vida, chamava-me pela fonia. Eu, ouvia, mas evitava responder-lhe. Mas, tanto chamava que eu carreguei na tecla para emitir-lhe a mensagem. Nesse momento, levei com um coice, que me deitou ao chão. Caraças, coincidência dos raios…
Pior, pior, poderia ter acontecido a um colega Opcart chamado Carrão.
Era mais velhinho do que eu e, o tempo do Leste estava a estragá-lo no vício das bebedeiras. De serviço, passava as noites, na Nocal.
Noite de trovoada, já com os copos, resolveu descer a Torre pela parte que ligava o fio condutor do pára-raios!...Foi um doido de varrer…

12 - Trovoada, trovoada, também surgiam para os lados de Gago Coutinho….
Voz fraquinha, lá longe, com atrapalhação, ouvia eu, um piloto chamar….
H. Carvalho… H. Carvalho… daqui, Do…. A tantos graus de Latitude/longitude, com proveniência de Gago Coutinho e com destino ao Luso. Tenho dificuldades em prosseguir rota. Grande turbulência, trovoada, escuto…
O.K. mensagem recebida. Vou contactar o Luso e informar Luanda da sua posição. Sempre que possa vá transmitindo a sua posição e estado.
As mensagens surgiam cortadas, pausadas, sumidas e interrompidas. Interromperam de vez e, fiquei sem saber se o “zingarelho” tinha caído ou, não…
Chamei o Luso para indagar sobre o acontecido. Tinha o nosso grande amigo Pinheiro conseguido sobreviver a uma tempestade medonha.
Para minha alegria, contactei com ele anos atrás, era piloto militar de carreira e oficial superior.
Grandes aventuras tive com ele de avião, T-6 e DO-27.
Continua "majestosa" ao serviço da Base Aérea de Saurimo - foto do Comandante João Pinto


Enfim, era nesta Torre que escrevia as minhas cartas aos meus pais, irmã, amigos e namorada. Nesses momentos saudosos, aplicam-se com justeza os versos da Balada de Henrique de Carvalho, da autoria do nosso companheiro Rocha Marques (piloto), quando narram o seguinte:

Quando a noite veste de sombras o mundo,
E o silêncio me desperta a solidão,
Verto lágrimas e o meu sofrer é profundo,
Põe-me louco de saudade o coração…

…,     …,”


Por: Vitor Oliveira


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A VISITA DA RAÍNHA NHAKATOLO AO CHILOMBO

Chilombo

Chilombo, Leste de Angola – 1974 

Nhakatola Tchissengo
Nhakatolo Tchissengo, acompanhada pelo príncipe consorte Alberto Candembe, alfaiate de profissão, e por Kakengue, soba do quimbo (aldeia) do Chilombo, deslocava-se em direcção ao aquartelamento do Destacamento nº. 6 de Fuzileiros Especiais instalado no Chilombo, na margem do rio Zambeze, no designado saliente do Cazombo, Leste de Angola, com a altivez, a simplicidade e a segurança de uma rainha.
Vinha em visita oficial, no âmbito da missão habitual de governo do seu povo.

Para organizar a visita ao Destacamento e acompanhar a Rainha, foi nomeado oficial do protocolo o STEN FZE Paiva e Pona.
Era a meio da manhã, quando o calor já começava a apertar. Simpaticamente terá oferecido à Rainha um chá e uns scones. Mas ela, pequenina e viva, sorrindo com um olhinho maroto, pediu: “Ténénté não pode ser antes uma cérveja?” Claro que rapidamente apareceram cervejas para toda a comitiva. De notar que este bem precioso àquela hora de sol e calor era ainda mais valioso, no nosso caso, porque dispúnhamos de geladeira.
O certo é que as relações diplomáticas entre o povo Português (aqui representado modestamente pelos fuzileiros do Chilombo) e o povo dos Luenas, na pessoa da sua Rainha, se estreitaram naquela manhã de calor africano e se fortaleceram à custa de uma boa quantidade de cervejas que, só à sua conta, a senhora bebeu.
Descendia de uma velha linhagem de matriarcas – em África, o poder tribal assente numa liderança feminina e transmitido pela mesma via, por direito próprio e não por contingência sucessória, foi relativamente frequente e, por isso mesmo, diverso da norma vigente das sociedades ocidentais.
Nhakatolo era a rainha dos Luenas, povo também designado por Luvale, tribos residentes no Alto Zambeze, reino cujos contornos geográficos não coincidiam com as fronteiras oficiais do território de Angola, estendia-se por uma vasta região que ia desde uma zona a sul do Congo (de onde provinham os seus antepassados) até à zona da actual Zâmbia, para lá das margens do rio Zambeze.
Na sequência das disputas fronteiriças entre os colonizadores europeus, em finais do século XIX, a fronteira de Angola acabou por ser definida por arbitragem do rei de Itália em 1905, deixando os Luenas repartidos por Belgas, Ingleses e Portugueses, em três colónias (hoje Estados) diferentes. A força de união deste povo, mantido geograficamente disperso, mas culturalmente coeso, é o resultado de uma liderança no feminino, em que sobressai a figura da rainha Nhakatolo Ngambo (falecida em 1914 e cujo túmulo, no Lucusse, é hoje monumento nacional), da neta que lhe sucedeu, Nhakatola Kutemba (falecida em 1956) e sua filha Nhakatolo Tchissengo que nos visitou.

Tumulo da rainha Nhacatolo Kutemba,
no Cavungo
Nhakatola Tchissengo era uma rainha que visitava o seu povo – os Luenas – com a dedicação de uma soberana que tem o dever de acompanhar os problemas dos seus súbditos, manter a coesão no seu Reino e estabelecer parcerias com as autoridades civis ou militares que, exercendo outras formas de poder num mesmo espaço territorial, eram essenciais às boas relações, à paz e ao progresso do seu povo.
A linhagem de rainhas Nhakatolo tinha por tradição prosseguir uma política de diplomacia inteligente, num equilíbrio que era um misto de aceitação interessada das autoridades dominantes e de defesa dos interesses próprios e dos valores fundamentais das suas gentes. A ligação à terra, o lugar fundamental da mulher que é quem dá de comer aos filhos, a preservação da paz e das boas relações com os poderes dominantes como elemento de protecção filial e de garantia de continuidade, tornaram esta cultura tribal diferente do que seria uma liderança masculina mais beligerante.
Cavungo, 2014
Palácio da Raínha Nhakatolo
Talvez tenha sido esta a sua força. O respeito granjeado por estas mulheres educadas para reinar, trazer a paz e prosperidade ao seu povo ao longo dos tempos e em condições políticas inconstantes e adversas, faziam da rainha Nhakatolo que conheci, uma personalidade admirável e admirada.
Tal como aconteceu com a sua mãe Nhakatolo Kutemba e a sua bisavó Nhakatolo Ngambo. Tal como hoje acontece com a neta que lhe sucedeu – a actual rainha Lurdes Tchilombo NhaKatolo, de 38 anos de idade, criada e educada pela sua avó, que tomou posse em 2004, e que é ouvida com respeito pelas autoridades oficiais.

Eduardo Ricou consulta aos leprosos 
na presença da rainha Nhakatolo,
em 1956
Conta-se uma história que muito diz sobre a 
personalidade da Rainha Tchissengo, passada em finais dos anos 50 do século passado.
O médico português especialista em lepra Eduardo Ricou (pai da Tereza Ricou), radicado em Angola, visitou a região habitada pelos Luenas numa campanha de vacinação.
Certo dia em que se deslocou a uma aldeia onde montou uma mesa debaixo de um frondoso embondeiro, com os seus instrumentos médicos e enfermeiros de apoio, só pode começar a tarefa depois de obtida a formal autorização da Rainha.
Esta sentou-se majestosamente numa cadeira ao lado da mesa do médico, mandou içar a bandeira nacional e disse: “agora que já foi içada a bandeira portuguesa, Doutor, pode começar a consulta dos meus súbditos”.
Ou outra, em que interpelou o 
Governador Geral em visita ao distrito do Moxico e se queixou: “Governador, os teus elefantes causam muito prejuízo nas minhas colheitas, manda um caçador dar tiro neles ”. E os ditos bichos terão sido abatidos. A este mesmo Governador terá pedido um automóvel estando disposta a pagá-lo em notas, e que, posteriormente, após obtida autorização de Lisboa, lhe terá sido mesmo oferecido. 
Foi esta a “minha” rainha Nhakatolo, a que conheci em 1974, quando veio de visita a uma parte do seu povo, aquele que habitava a zona leste de Angola e que, por via disso, contactou as autoridades militares aí instaladas. Consta que tinha visitado Portugal, durante a presidência de Craveiro Lopes, numa acção de sensibilização organizada pelo regime, com quem, interesseiramente ou não, pretendia mostrar boas relações. 
Naquela época residia para lá da fronteira de Angola, território da Rodésia (actual Zâmbia) e deslocava-se entre as aldeias onde os Luenas se encontravam.
Raínha Nhakatolo Tchissengo e príncipe Alberto Candembe na sua casa no Cavungo, em 1970 - foto de Álvaro Pelicano

Tinha autorização especial para visitar os seus súbditos em território angolano ao abrigo de um tratado de protectorado celebrado com a Coroa Portuguesa em finais do séc. XIX e que sempre foi respeitado. 
Foi uma das rainhas Nhakatolo que mais marcas deixou, talvez por ter tido uma vida longa e por ter passado por períodos conturbados da história de Angola. 
Chefiou tribos e acompanhou várias aldeias luenas durante toda a sua juventude, exercendo uma aristocracia natural enquanto a mãe reinava – foi nomeada para assumir o sobado de duas localidades autónomas: Lupache e Luvua antes da morte da sua mãe, em 1956. Sucedeu-lhe formalmente, atravessou duas guerras – a guerra do ultramar e a guerra civil – e veio a falecer em Luanda em 22 de Junho de 1992, estando sepultada em Cazombo, na província do Moxico. Em sua homenagem foi inaugurado, em 2012, um lar para a terceira idade que recebeu o nome “Rainha Nhakatolo Tchissengo”.
Raínha Nhakatolo Tchissengo e 
príncipe Alberto Candembe com
Álvaro Pelicano,
no Cavungo em 1970
A minha estória da rainha Nhakatolo é um simples contributo para retratar uma rainha tradicional que era uma mulher poderosa, ciente das responsabilidades de governante da sua gente, que tinha a particularidade de ser um povo que não corresponde ao conceito linear de “Uma Pátria, uma Nação, um Território”.
O território civil do quadrado do Leste de Angola, desenhado a régua e esquadro, não era a pátria dos Luenas, mas apenas um local onde uma parte deles se instalara, em resultado de um processo migratório de tribos de várias etnias, de acordos e protectorados estabelecidos ao longo de séculos com os países colonizadores e com outras tribos e etnias autóctones.
A visita à povoação e a recepção à Rainha foi uma festa especial a que o nosso Comandante, 1º.TEN EMQ (FZE) Correia Graça e restantes oficiais assistiram, mais uma vez, num concílio que debaixo de uma grande árvore reuniu os mais velhos, os mais importantes representantes dos luenas e as autoridades existentes na zona. 
De pé, frente à assistência, a rainha discursou em português para o seu povo, dando bons conselhos, talvez cautelas para com o colonizador… mas acreditamos que fossem no espírito de manter o bom relacionamento, usufruindo dos bens possíveis (saúde e educação que, sendo escassas, sempre havia).
Desse discurso retivemos três notas: “Os caçadores, quando encontrarem pessoas estranhas, nas suas caçadas, devem informar os fuzileiros. Os pescadores, quando também avistarem pessoas estranhas à povoação, devem informar os fuzileiros. E vós p... lembrem-se que os fuzileiros não têm aqui mãe, nem mulher, nem namorada e, por isso, devem tratá-los bem...”.
Depois, houve batuque pela noite fora…
Este ritual tradicional, festa que une os Luvale (Luenas) e é um marco da preservação da sua cultura, realiza-se actualmente no dia do falecimento da rainha Chissengo.
Na era colonial, realizava-se em Chilombo ou em Lumbala, no período da guerra civil passou para a Zâmbia devido às disputas entre o MPLA e a UNITA e, actualmente, regressou ao leste de Angola, saliente do Cazombo, capital Luena.
Numa cerimónia pública em 2009





Por:
José António Ruivo, in O Desembarque