quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A VISITA DA RAÍNHA NHAKATOLO AO CHILOMBO

Chilombo

Chilombo, Leste de Angola – 1974 

Nhakatola Tchissengo
Nhakatolo Tchissengo, acompanhada pelo príncipe consorte Alberto Candembe, alfaiate de profissão, e por Kakengue, soba do quimbo (aldeia) do Chilombo, deslocava-se em direcção ao aquartelamento do Destacamento nº. 6 de Fuzileiros Especiais instalado no Chilombo, na margem do rio Zambeze, no designado saliente do Cazombo, Leste de Angola, com a altivez, a simplicidade e a segurança de uma rainha.
Vinha em visita oficial, no âmbito da missão habitual de governo do seu povo.

Para organizar a visita ao Destacamento e acompanhar a Rainha, foi nomeado oficial do protocolo o STEN FZE Paiva e Pona.
Era a meio da manhã, quando o calor já começava a apertar. Simpaticamente terá oferecido à Rainha um chá e uns scones. Mas ela, pequenina e viva, sorrindo com um olhinho maroto, pediu: “Ténénté não pode ser antes uma cérveja?” Claro que rapidamente apareceram cervejas para toda a comitiva. De notar que este bem precioso àquela hora de sol e calor era ainda mais valioso, no nosso caso, porque dispúnhamos de geladeira.
O certo é que as relações diplomáticas entre o povo Português (aqui representado modestamente pelos fuzileiros do Chilombo) e o povo dos Luenas, na pessoa da sua Rainha, se estreitaram naquela manhã de calor africano e se fortaleceram à custa de uma boa quantidade de cervejas que, só à sua conta, a senhora bebeu.
Descendia de uma velha linhagem de matriarcas – em África, o poder tribal assente numa liderança feminina e transmitido pela mesma via, por direito próprio e não por contingência sucessória, foi relativamente frequente e, por isso mesmo, diverso da norma vigente das sociedades ocidentais.
Nhakatolo era a rainha dos Luenas, povo também designado por Luvale, tribos residentes no Alto Zambeze, reino cujos contornos geográficos não coincidiam com as fronteiras oficiais do território de Angola, estendia-se por uma vasta região que ia desde uma zona a sul do Congo (de onde provinham os seus antepassados) até à zona da actual Zâmbia, para lá das margens do rio Zambeze.
Na sequência das disputas fronteiriças entre os colonizadores europeus, em finais do século XIX, a fronteira de Angola acabou por ser definida por arbitragem do rei de Itália em 1905, deixando os Luenas repartidos por Belgas, Ingleses e Portugueses, em três colónias (hoje Estados) diferentes. A força de união deste povo, mantido geograficamente disperso, mas culturalmente coeso, é o resultado de uma liderança no feminino, em que sobressai a figura da rainha Nhakatolo Ngambo (falecida em 1914 e cujo túmulo, no Lucusse, é hoje monumento nacional), da neta que lhe sucedeu, Nhakatola Kutemba (falecida em 1956) e sua filha Nhakatolo Tchissengo que nos visitou.

Tumulo da rainha Nhacatolo Kutemba,
no Cavungo
Nhakatola Tchissengo era uma rainha que visitava o seu povo – os Luenas – com a dedicação de uma soberana que tem o dever de acompanhar os problemas dos seus súbditos, manter a coesão no seu Reino e estabelecer parcerias com as autoridades civis ou militares que, exercendo outras formas de poder num mesmo espaço territorial, eram essenciais às boas relações, à paz e ao progresso do seu povo.
A linhagem de rainhas Nhakatolo tinha por tradição prosseguir uma política de diplomacia inteligente, num equilíbrio que era um misto de aceitação interessada das autoridades dominantes e de defesa dos interesses próprios e dos valores fundamentais das suas gentes. A ligação à terra, o lugar fundamental da mulher que é quem dá de comer aos filhos, a preservação da paz e das boas relações com os poderes dominantes como elemento de protecção filial e de garantia de continuidade, tornaram esta cultura tribal diferente do que seria uma liderança masculina mais beligerante.
Cavungo, 2014
Palácio da Raínha Nhakatolo
Talvez tenha sido esta a sua força. O respeito granjeado por estas mulheres educadas para reinar, trazer a paz e prosperidade ao seu povo ao longo dos tempos e em condições políticas inconstantes e adversas, faziam da rainha Nhakatolo que conheci, uma personalidade admirável e admirada.
Tal como aconteceu com a sua mãe Nhakatolo Kutemba e a sua bisavó Nhakatolo Ngambo. Tal como hoje acontece com a neta que lhe sucedeu – a actual rainha Lurdes Tchilombo NhaKatolo, de 38 anos de idade, criada e educada pela sua avó, que tomou posse em 2004, e que é ouvida com respeito pelas autoridades oficiais.

Eduardo Ricou consulta aos leprosos 
na presença da rainha Nhakatolo,
em 1956
Conta-se uma história que muito diz sobre a 
personalidade da Rainha Tchissengo, passada em finais dos anos 50 do século passado.
O médico português especialista em lepra Eduardo Ricou (pai da Tereza Ricou), radicado em Angola, visitou a região habitada pelos Luenas numa campanha de vacinação.
Certo dia em que se deslocou a uma aldeia onde montou uma mesa debaixo de um frondoso embondeiro, com os seus instrumentos médicos e enfermeiros de apoio, só pode começar a tarefa depois de obtida a formal autorização da Rainha.
Esta sentou-se majestosamente numa cadeira ao lado da mesa do médico, mandou içar a bandeira nacional e disse: “agora que já foi içada a bandeira portuguesa, Doutor, pode começar a consulta dos meus súbditos”.
Ou outra, em que interpelou o 
Governador Geral em visita ao distrito do Moxico e se queixou: “Governador, os teus elefantes causam muito prejuízo nas minhas colheitas, manda um caçador dar tiro neles ”. E os ditos bichos terão sido abatidos. A este mesmo Governador terá pedido um automóvel estando disposta a pagá-lo em notas, e que, posteriormente, após obtida autorização de Lisboa, lhe terá sido mesmo oferecido. 
Foi esta a “minha” rainha Nhakatolo, a que conheci em 1974, quando veio de visita a uma parte do seu povo, aquele que habitava a zona leste de Angola e que, por via disso, contactou as autoridades militares aí instaladas. Consta que tinha visitado Portugal, durante a presidência de Craveiro Lopes, numa acção de sensibilização organizada pelo regime, com quem, interesseiramente ou não, pretendia mostrar boas relações. 
Naquela época residia para lá da fronteira de Angola, território da Rodésia (actual Zâmbia) e deslocava-se entre as aldeias onde os Luenas se encontravam.
Raínha Nhakatolo Tchissengo e príncipe Alberto Candembe na sua casa no Cavungo, em 1970 - foto de Álvaro Pelicano

Tinha autorização especial para visitar os seus súbditos em território angolano ao abrigo de um tratado de protectorado celebrado com a Coroa Portuguesa em finais do séc. XIX e que sempre foi respeitado. 
Foi uma das rainhas Nhakatolo que mais marcas deixou, talvez por ter tido uma vida longa e por ter passado por períodos conturbados da história de Angola. 
Chefiou tribos e acompanhou várias aldeias luenas durante toda a sua juventude, exercendo uma aristocracia natural enquanto a mãe reinava – foi nomeada para assumir o sobado de duas localidades autónomas: Lupache e Luvua antes da morte da sua mãe, em 1956. Sucedeu-lhe formalmente, atravessou duas guerras – a guerra do ultramar e a guerra civil – e veio a falecer em Luanda em 22 de Junho de 1992, estando sepultada em Cazombo, na província do Moxico. Em sua homenagem foi inaugurado, em 2012, um lar para a terceira idade que recebeu o nome “Rainha Nhakatolo Tchissengo”.
Raínha Nhakatolo Tchissengo e 
príncipe Alberto Candembe com
Álvaro Pelicano,
no Cavungo em 1970
A minha estória da rainha Nhakatolo é um simples contributo para retratar uma rainha tradicional que era uma mulher poderosa, ciente das responsabilidades de governante da sua gente, que tinha a particularidade de ser um povo que não corresponde ao conceito linear de “Uma Pátria, uma Nação, um Território”.
O território civil do quadrado do Leste de Angola, desenhado a régua e esquadro, não era a pátria dos Luenas, mas apenas um local onde uma parte deles se instalara, em resultado de um processo migratório de tribos de várias etnias, de acordos e protectorados estabelecidos ao longo de séculos com os países colonizadores e com outras tribos e etnias autóctones.
A visita à povoação e a recepção à Rainha foi uma festa especial a que o nosso Comandante, 1º.TEN EMQ (FZE) Correia Graça e restantes oficiais assistiram, mais uma vez, num concílio que debaixo de uma grande árvore reuniu os mais velhos, os mais importantes representantes dos luenas e as autoridades existentes na zona. 
De pé, frente à assistência, a rainha discursou em português para o seu povo, dando bons conselhos, talvez cautelas para com o colonizador… mas acreditamos que fossem no espírito de manter o bom relacionamento, usufruindo dos bens possíveis (saúde e educação que, sendo escassas, sempre havia).
Desse discurso retivemos três notas: “Os caçadores, quando encontrarem pessoas estranhas, nas suas caçadas, devem informar os fuzileiros. Os pescadores, quando também avistarem pessoas estranhas à povoação, devem informar os fuzileiros. E vós p... lembrem-se que os fuzileiros não têm aqui mãe, nem mulher, nem namorada e, por isso, devem tratá-los bem...”.
Depois, houve batuque pela noite fora…
Este ritual tradicional, festa que une os Luvale (Luenas) e é um marco da preservação da sua cultura, realiza-se actualmente no dia do falecimento da rainha Chissengo.
Na era colonial, realizava-se em Chilombo ou em Lumbala, no período da guerra civil passou para a Zâmbia devido às disputas entre o MPLA e a UNITA e, actualmente, regressou ao leste de Angola, saliente do Cazombo, capital Luena.
Numa cerimónia pública em 2009





Por:
José António Ruivo, in O Desembarque

2 comentários:

  1. Obrigado, por esta lição de história Angolana.

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  2. Aqui de longe grande abraço e um muito obrigado por este pedaço de História.

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