quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

PERIPÉCIAS VIVIDAS NA "MAJESTOSA"


Memórias de um passado saudoso


Quase três anos de Leste de Angola
- muitas pequenas peripécias aconteceram na Torre de Controlo, onde operei por centenas de horas, noite e dia.
Nos primeiros dias que estive de serviço e, durante o turno da noite, fiquei com receio de permanecer exposto a uma cena de invasão da Base, pelos inimigos. Situava-me num ponto estratégico e que poderia ser um bom e primeiro alvo de ataque. Vinte e cinco metros de altura, edifício de fraca estrutura, gingando por todos os lados e, nos dias de grandes trovoadas, metia respeito !...

1 - Num dos turnos nocturnos, naquelas noites silenciosas em que quase todos os militares dormiam, eu vigiava através dos vidros da cabine hexagonal. Nisto, ouvi um roncar longínquo de um avião que me parecia ser de grande envergadura. Mirei com os binóculos todo o espaço aéreo ao meu alcance e, nem uma luzinha eu avistei - mas, o barulho continuava a ouvir-se e com maior ruído. Algum avião inimigo?
O DC7F rodesiano no Negage
Chamo Luanda, peço informações sobre a possibilidade da rota daquele avião e, eis que me informam tratar-se dum quadrimotor Rodesiano que transportava gado bovino. Curioso!...o piloto não deu sinais de vida aos meus apelos pela rádio e, nem o avião tinha alguma luz visível para assinalar a sua direcção…
Vim a saber mais tarde, que periódicamente fazia voos para o Negage.

2 - Noutra ocasião, encontrava-se um companheiro meu, o Rui Silva, de serviço à Torre. Ao escurecer, notou que havia uma luz que pairava no céu, mas que teimosamente não queria fazer-se à pista!... Tentou contactar com a suposta aeronave, mas esta não dava sinais de vida. Disparou um “very light” verde, para permissão de aterragem e, a luz da aeronave continuava a circular em volta da pista sem se aperceber de qualquer intenção. Intrigado, pensando que pudesse ser algum disco voador, telefonou para o Bar de sargentos a fim de solicitar a ajuda dum outro controlador mais experiente.
Lá vou eu ter com o Rui Silva para indagar da situação.
Conclusão, houve “ilusão de óptica”, “miragem pura”.
A aeronave não existia!
Porém, já tinha sido avisado o oficial de dia, iluminado as pistas com os candeeiros a petróleo e, chamado um bombardeiro B-26, que se encontrava ocasionalmente no Luso, para ajudar no combate…

3 - Noites mortas, difíceis de passar naquela Torre e, para me entreter, sintonizava um dos rádios transmissores para ouvir música.
Outros dias, acendia o holofote para atrair as borboletas e, de madrugada, descia ao edifício anexo à Torre e, pelos corredores, pisando as mal cheirosas formigas cadáveres, injectava com formol, (cedido pelo enfermeiro Correia) certas borboletas lindíssimas, grandes e, de todas as espécies. Coleccionei cerca de 200 e, ainda hoje tenho presente dois quadros na minha sala.
Soube que uns dos fãs destes “hobbies” , era um Sargento Açoreano chamado Flores. Este, dedicava-se com paixão na apanha das borboletas e, por sinal, na altura em que se encontrava em Henrique  de Carvalho, (antes de 1971), e quando os edifícios da Base eram pintados de branco, e, não de verde claro, ele conseguiu caçar a célebre e única borboleta no Mundo - Borboleta Caveira. Por cada quadro que ele elaborava, colocava uma dessas borboletas e, remetia-o para os Açores a fim de ser vendido aos Americanos. Fez bom negócio…
4 - Outras vezes, sem ocupação, dormitava na maca que a Torre possuía porém, era preciso ter um cuidado extremo pois, o célebre Capitão Laurentino andava na nossa perseguição.
Militarista de primeira, não queria que dormíssemos e, as luzes do tecto da Torre deveriam estar sempre acesas.
A nossa sorte era que quem iniciasse a subida à Torre, a fragilidade da estrutura fazia com que estremecesse e, nós, lá em cima, apercebíamos a situação.
Noutra altura, não deu para dormir…

5 - Luanda chamava, chamava…e, alertou para o facto de haver possibilidade da Base de Henrique de Carvalho se tornar alternativa para voos que se destinavam à capital. Luanda estava cercada de nevoeiro e, a pista do AB4 era superior à de Nova Lisboa.
Colocava-se a situação de como albergar os passageiros de alguns aviões pois, Hotel, só havia um!...
A pista não tinha iluminação eléctrica e a nossa cidade ficava no Cu do Mundo…
Passaram-se momentos de indecisões e, eis que o nevoeiro deu indícios de se dissipar. Assim, continuou Luanda a servir o tráfego aéreo. Livra…

6 - No dia 22 de Maio de 1972 em que um Friendship Fokker-27, da DTA, caiu no mar, junto de Lobito, a ansiedade de saber sobre a possível existência de sobreviventes era enorme. O co-piloto Mesquita foi um dos três sobreviventes e, tinha família na cidade de Henrique de Carvalho. Nessa altura, morreram vinte e dois passageiros e, um dos meus amigos de infância, militar no exército e jogador da equipa do Moxico, campeã de Angola em 1972, escapou-se por sorte. Quis o destino determinar-lhe fazer viagem por terra quando, lhe tinham já pago a viagem para seguir nesse avião.
Estava de serviço, no controlo, e recebi uma notícia particular de Luanda em que me solicitaram para dar a informação à família do co-piloto em como ele estava vivo. Foi um alívio para os familiares e, uma grande alegria que lhes dei porquanto, servi de primeira fonte informativa. Para mal do destino, esse piloto viria a falecer, anos mais tarde, num acidente aéreo, comandando um avião ao serviço da Sata, numa das ilhas centrais dos Açores.

7 - Encontro-me na Torre, dou autorização a um T-6 para aterrar mas, nem o vigio a cem por cento. Condições normalíssimas de tempo, pista toda por conta do avião em causa - que ficasse à vontade…
Mas, eis que ao olhar para a pista, vejo uma imensa nuvem de poeira!? Nem disse nada, no momento…
Quando fui almoçar, perguntei ao piloto. Eh.. pá… Andavas ás curvas na pista? Diz-me ele - não digas nada, o mecânico, distraidamente, carregou num dos pedais quando o avião estava mesmo a tocar o asfalto…

8 - Pilotos brincalhões e experientes, conheci muitos porém, num dia de vento moderado, assisti a uma aterragem de um Dornier-27, que mais parecia um helicóptero.
Vejo a DO com boa altitude a fazer-se à pista, dou-lhe autorização para aterrar e começo a avistar-lhe todos os movimentos. Devagarinho, contra o vento, desce-me como se fosse uma pessoa a descer os degraus de uma escada.
Devagarinho, de solavanco em solavanco, cai quase na perpendicular, dá um pulo no chão e, pára. Gozei com o espectáculo - nunca tinha visto coisa semelhante!
Cabo Verdeano de origem; o saudoso Alex…cumulativamente piloto do Governo Provincial.

9 - Fim de ano de 1973, tinha na cidade, família e, uma correspondente, a qual viria a ser minha mulher. Esta, tinha vindo passar o ano a Saurimo e, precisamente, no cinema Chikapa, com festa e bailarico!...
À partida, rumo a Malanje, eis que se encontra por debaixo da Torre para subir para o avião da DTA.
Disse para comigo!... - gostava de lá ir abaixo e, despedir-me dela!...
Chamei o especialista de comunicações, que se encontrava no seu posto e, solicitei-lhe que desse as instruções ao piloto para a descolagem. Não se previa mais movimentação de tráfego e, estes nossos companheiros tinham alguma instrução porque, ajudavam o controlo nos destacamentos.
Desci, esperei uns minutos, despedi-me dela e, voltei à Torre com ansiedade e expectativa.
Entretanto, tinha avistado outro avião a fazer-se à pista e, precisamente no momento da descolagem do F-27 da DTA.
Na Torre, vi o companheiro com aspecto amarelado, que me disse: Ehhh pá… apanhei um cagaço do car…!
Então?! … Ohhh … dar as instruções ao piloto da DTA, lá dei, mas apareceu-me outro a pedir instruções para aterragem e, eu fiquei a ver navios, em vez de aviões…
Vim a saber que os pilotos se entenderam pelas comunicações que travaram e, para nossos agradecimentos, nem o militar,  nem o civil, fizeram participação do acontecimento ao nosso comando militar.
Ainda hoje vivo esta situação como uma falha de responsabilidade que poderia ter dado para o torto…

10 - Parte do Luso um PV-2 com destino a Henrique de Carvalho. Comandava-o um Tenente que dava para o gordinho, meia-idade, e um pouco falador.
No subcomando, acompanhava-o o Gomes da Silva. Registei a hora da sua partida por comunicação com os colegas do Luso e, aguardei pelo contacto da aeronave. Sabíamos qual o tempo de rota para este tipo de aeronave e, não é que já passava do tempo e, a comunicação não saía!…
Chamei, chamei e, eis que me contactam. Informam-me da sua posição e, comunicam-me a hora prevista de aterragem.
Passa o tempo e, só muito mais tarde me pedem autorização para aterrar.
Conclusão, vim a saber por especialistas que, os dois pilotos vinham numa discussão sobre qualquer assunto e, distraidamente, prosseguiram rota sem terem dado conta da emissão do rádio farol de Henrique Carvalho. E, …não é que já se encontravam na fronteira do Congo !?

11 - Trovoada, trovoada que nunca tinha visto com tamanha dimensão!... Na Torre, equipamentos quase todos desligados, encontrava-me deitado na maca a pedir aos Deuses para não levar com um raio na tola. Tirei imensas fotos com o céu varado de raios… Parecia um festival de foguetes…
Um colega, da sala de despacho, receando pela minha vida, chamava-me pela fonia. Eu, ouvia, mas evitava responder-lhe. Mas, tanto chamava que eu carreguei na tecla para emitir-lhe a mensagem. Nesse momento, levei com um coice, que me deitou ao chão. Caraças, coincidência dos raios…
Pior, pior, poderia ter acontecido a um colega Opcart chamado Carrão.
Era mais velhinho do que eu e, o tempo do Leste estava a estragá-lo no vício das bebedeiras. De serviço, passava as noites, na Nocal.
Noite de trovoada, já com os copos, resolveu descer a Torre pela parte que ligava o fio condutor do pára-raios!...Foi um doido de varrer…

12 - Trovoada, trovoada, também surgiam para os lados de Gago Coutinho….
Voz fraquinha, lá longe, com atrapalhação, ouvia eu, um piloto chamar….
H. Carvalho… H. Carvalho… daqui, Do…. A tantos graus de Latitude/longitude, com proveniência de Gago Coutinho e com destino ao Luso. Tenho dificuldades em prosseguir rota. Grande turbulência, trovoada, escuto…
O.K. mensagem recebida. Vou contactar o Luso e informar Luanda da sua posição. Sempre que possa vá transmitindo a sua posição e estado.
As mensagens surgiam cortadas, pausadas, sumidas e interrompidas. Interromperam de vez e, fiquei sem saber se o “zingarelho” tinha caído ou, não…
Chamei o Luso para indagar sobre o acontecido. Tinha o nosso grande amigo Pinheiro conseguido sobreviver a uma tempestade medonha.
Para minha alegria, contactei com ele anos atrás, era piloto militar de carreira e oficial superior.
Grandes aventuras tive com ele de avião, T-6 e DO-27.
Continua "majestosa" ao serviço da Base Aérea de Saurimo - foto do Comandante João Pinto


Enfim, era nesta Torre que escrevia as minhas cartas aos meus pais, irmã, amigos e namorada. Nesses momentos saudosos, aplicam-se com justeza os versos da Balada de Henrique de Carvalho, da autoria do nosso companheiro Rocha Marques (piloto), quando narram o seguinte:

Quando a noite veste de sombras o mundo,
E o silêncio me desperta a solidão,
Verto lágrimas e o meu sofrer é profundo,
Põe-me louco de saudade o coração…

…,     …,”


Por: Vitor Oliveira


1 comentário:

  1. Parabéns camarada.
    Belíssimas recordações que poucos tiveram oportunidade de as ter.
    Abraço com saudações Aeronáuticas

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