quinta-feira, 30 de setembro de 2021

UM MÉTODO POUCO ORTODOXO, MAS EFICAZ!



"Na Força Aérea tinhamos adoptado um método pouco ortodoxo, mas eficaz, de exploração em tempo oportuno tirando partido da rede de informações."

Com dois ou três helicópteros voando a baixa altitude, sobrevoávamos as áreas mais susceptíveis de actividade subversiva para, em golpes inesperados, capturarmos elementos da população ou outros que, transportados para os pontos onde tínhamos estabelecido as nossas bases provisórias, nos forneciam as tão preciosas informações sobre a presença ou passagem de grupos estranhos à região.
Foi numa dessas missões que, nas margens do rio Lweti, nos confins da província do Moxico, quinze páraquedistas foram lançados no terreno sobre um acampamento onde em segredo se realizava o congresso de um dos movimentos de libertação! A sorte esteve do nosso lado, pois o inimigo, julgando tratar-se de um ataque organizado e avaliando mal o ruído que apenas três helicópteros voando baixo faziam, optou pela fuga, como medida de proteção das individualidades e jornalistas estrangeiros presentes.
A confusão foi enorme, tendo os nossos homens se apercebido que caíram sobre um objectivo de importância inesperada, bem protegido e para o qual não tinham nem pessoal nem armamento em número, do outro lado, multiplicavam-se em esforços do que pensavam ser um ataque planeado e integrado numa operação mais vasta.
Foi neste cenário que, de súbito, um jovem páraquedista ficou frente a frente com um vulto que descia o trilho para o rio... Não houve tempo para se olharem ou, se o fizeram, o instinto actuou primeiro e o homem que tombou era mais velho e como menos agilidade do que habitualmente se encontrava nos guerrilheiros!
A documentação que trazia identificou-o como o Dr. Américo Boavida, chefe dos serviços de saúde do movimento e a sua presença nas matas do Leste, a fuga precipitada de outros altos responsáveis e a presença de jornalistas, alguns do sexo feminino e originários dos países do norte da Europa, deixavam subentender que a direção do movimento em causa tentava dar no exterior a imagem de presença efectiva em território "libertado", a tal ponto que, explorando a conjuntura internacional que nos era adversa, se poderia reconhecer um governo provisório, com as inerentes consequências diplomáticas!"


Claro que de seguida foi montada uma grande operação, concentrados os meios terrestres e aéreos durante dois meses e o que ficou foi areia fina escorrendo por entre os dedos de uma mão fechada!
Só uma grande familiaridade entre os pequenos escalões terrestres e aéreos poderão tirar partido de uma flexibilidade própria das suas Unidades...
*Extraído do livro de Carlos Acabado, Major Piloto, "Kinda".

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

DESALOJADOS DE GUERRA EM LUENA-ANGOLA, 1992.

Campo de desalojados de guerra em Luena – foto de Peter Williams


Ao cumprir uma missão para as Nações Unidas em Angola, em 1992, houve uma situação que ficou gravada na minha memória, e na minha pituitária, para sempre: – a visita ao campo de desalojados de guerra, em Luena.
A ida ao Campo de desalojados foi um pedido disfarçado de convite, feito pelo responsável pela delegação de Luena da agência ONU – World Food Program (WFP) – o senhor Carlos S. 
O Carlos era um simpático peruano que geria as instalações do WFP perto da antiga linha férrea. Homem dos seus trinta e poucos anos, estatura mediana e com demasiado peso, vestia-se sempre com calças de ganga e camisa axadrezada. Como não tinha pessoal de apoio em quantidade suficiente, pedia ajuda a quem ia conhecendo, para levar a bom porto todas as iniciativas que conduzia.
Naquele dia Carlos necessitava de ajuda para distribuir géneros alimentícios no campo de desalojados de guerra. Concordei em ajudá-lo enquanto decorriam uns voos de longa distância, que iriam levar cerca três horas a regressar. A minha boa acção, não só respondia a um pedido de um amigo da ONU como me possibilitava ter uma outra perspectiva da sociedade que me rodeava.


Carlos foi buscar-me ao aeródromo de Luena no seu velho jeep descapotável. Afastámo-nos da Cidade e, muito antes de chegarmos ao campo de desalojados, comecei a sentir um desagradável cheiro a azedo no ar. Quanto mais nos aproximávamos, mais intenso aquele desagradável odor ficava. Parecia que cheirava a vomitado. Quando finalmente chegámos à estação de caminho-de-ferro abandonada, o cheiro era tão intenso, que fiquei com a sensação que aquela gente vivia dentro de um contentor do lixo, num dia de muito calor. Tentei disfarçar o meu desconforto e sorrir. Para ser simpático, balbuciei algumas palavras no dialecto local e apertei a mão a quem me queria cumprimentar. Disse, em silêncio, a mim próprio:
– “Aguenta o primeiro embate que daqui a um bocado a tua pituitária já se habituou.” 
O Carlos ia-me explicando o que eu via, enquanto oferecíamos os sacos de farinha que havíamos trazido no jeep. 
Estavam ali entre 7.500 e 8.000 pessoas; ninguém sabia o número exacto. Eram como zombies, num deambular triste pelo recinto sem qualquer ocupação ou destino. Por todo o lado ouviam-se pessoas a tossir. Uma tosse cavernosa indiciadora de maleita. Sempre que tocava em alguém, era assaltado pelo pensamento que, a seguir, teria de tomar um duche de descontaminante. Não era por snobismo ou segregação, mas porque aqueles carentes desalojados estavam imundos e doentes. O risco de ser contagiado por alguma maleita era realmente elevado. 
Contudo, continuei a cumprimentar toda a gente, porque senti que mereciam a minha consideração. Quase senti vergonha de mim próprio por pensar em evitar aquelas pessoas. Ali ninguém tinha optado por aquela vida miserável; todos tinham sido empurrados para aquele local pela força das armas. Dentro do grande edifício fabril, as solas dos sapatos colavam-se ao chão de tão sebento que estava.
A sensação que eu tinha e o ruído que as minhas botas faziam, eram como se estivesse a andar num soalho coberto com papel para agarrar moscas. 
Havia trapos pendurados a servir de parede para separar famílias. O telhado tinha grandes buracos e, devido ao mal estado de conservação da infra-estrutura, chovia em quase todos os compartimentos. Abundavam rolos de plástico com o logotipo do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados –UNHCR – com os quais se tentava colmatar a ausência de vidros nas janelas e telhas na cobertura. Contrariamente ao meu desejo, a minha pituitária recusava-se a habituar-se ao cheiro do local. 
Era um cenário de miséria humana, que me marcou e me faz ter muito respeito pela temática dos refugiados e desalojados de guerra. Seres humanos como nós, que não fizeram nada por merecer tais condições. Só tiveram o azar de nascer, ou estar, no local e altura errada. Fui assaltado por uma vontade estranha de lhes pedir desculpa, por usufruir de melhores condições de vida do que eles. 
O Carlos prescindia quotidianamente do seu bem-estar para ajudar os outros, colocando-se ao serviço do próximo.
Como militar, entendia bem o que era vocação para servir um bem comum; mas os voluntários da ONU, seus programas e agências, passaram a merecer toda a minha admiração e respeito.

Por:







Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, desta vez em missão humanitária da ONU, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

O AVIÃO TEM ESGOTO? (AeroDica)


Questão intrigante tantas vezes colocada: que acontece às nossas fezes e urinas quando usamos o WC durante o voo? Vai tudo borda fora?
Não. Nem pensar.
Tomemos como exemplo um Airbus A320, um dos aviões mais em uso por esse mundo fora.
Para começar é preciso abastecer o avião com água potável a cada paragem. Sem isso não é possível seguir viagem, por razões óbvias. Compete ao pessoal de bordo verificar os respectivos níveis antes da partida.
No caso do A320 existe na parte dianteira do avião um tanque que pode levar até 200 litros de água para servir as galleys* e as casas de banho.
Quando lavamos as mãos, os dentes ou a cara, a água que escorre na bacia é lançada para o exterior através de um pequeno dreno aquecido. O objectivo é evitar o seu congelamento e facilitar a pulverização. Nada chega ao solo.
E o resto?
No caso dos WC a coisa passa-se de forma algo diferente. Quando carregamos no botão de flush e produzimos uma descarga, tudo o que esteja na retrete é sugado por efeito de vácuo para um outro tanque. Este tem uma capacidade até 170 litros o que lhe permite guardar todos os dejectos até que o avião aterre. Durante a escala um veículo especialmente preparado para o efeito remove todo o conteúdo deste tanque e prepara-o para nova viagem. Nada mais simples.
Portanto, caro leitor, quando vir um avião voar sobre a sua cabeça não tem que se preocupar com quaisquer "produtos" indesejados caídos do céu. Preocupe-se antes com os pombos e gaivotas que por aí abundam, que esses não fazem qualquer cerimónia e "disparam" quando menos se espera.
* Galley - Espécie de cozinha onde se guardam as refeições e bebidas que serão servidas durante a viagem.

Artigo de "O Aviador", Comt. José Correia Guedes


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

NANCATARI - O ÚLTIMO VOO DO DAKOTA 6175


Quem presenciou o jantar de 06 de Maio de 1974, que se realizou na boîte "Bagdade", em Nampula, nem sequer suspeitaria de que alguns dos clientes que ali jantavam, estariam a viver uma segunda vida.

Tudo porque, naquele mesmo dia, cerca das 13 horas, um avião DAKOTA, da Força Aérea Portuguesa, com a matrícula 6175, que havia levantado voo de Nangade com destino a Nampula, transportando uma delegação de Adidos; da África do Sul Maj. W. A. Kempeu, da Alemanha Ten.-Cor. Edward Grubbs, da Grã-Bretanha Cmdt. Thomas Binney, dos Estados Unidos da América o Cor. Peter Blackley e o Cmdt. Alexander Thomson e do Brasil Brig. Alfredo Berenguer César e Cor. Roberto França, além do Alferes Alves, dos Comandos, que era o Oficial de Ligação, e tripulado pelo Capitão Pilav José Assunção, piloto da aeronave, o Alferes Costa, co-piloto, 1º. Sargento Roma Pereira e 1ºs. Cabos Pinheiro e Agostinho, tripulantes, tinha sido atingido por um míssil "Strella", que havia sido disparado pela FRELIMO, quando voavam entre Diaca e Mueda, num desvio de rota imposto pelo mau tempo que se fazia sentir.
Dado o estado deplorável da aeronave, que ameaçava "desintegrar-se" a todo o momento, como provava aquela bocadagem de chapa que se ia soltando uma após outra, após o embate do engenho explosivo, o piloto resolveu-se pela utilização de uma pequena pista destinada a aviões ligeiros, que ficava situada em Nancatari, junto ao aquartelamento do Exército, para aí tentar aterrar o DAKOTA em segurança, considerando os VIP que levava a bordo. Em escuta das comunicações entre a Torre de Controlo de Mueda e o Dakota, estavam, em missão de reconhecimento com apoio de fogo, dois helicópteros Alouette III (um deles em configuração de heli-canhão, e outro com 5 paraquedistas), sob comando do Tenente Luís Araújo e o Alferes Palma, que, de imediato, coordenam com o comando rumarem para Nacatari para apoiar o Dakota e os seus homens. Com os dois "hélis" Alouette III, com os 5 paraquedistas a assegurarem protecção acrescida no terreno, solicitaram apoio de mais "hélis", entre os quais um "Puma". Foi possível em menos de meia hora transportar os adidos militares para Mueda, de onde, e já com a melhoria das condições meteorológicas, seriam então transportados a bordo de um Noratlas, comandado pelo Ten. Adelino Cardoso, para o seu destino em Nampula, onde chegariam ainda nesse mesmo dia.
Segundo relatam algumas testemunhas, o Brigadeiro Alfredo César, Adido Brasileiro, terá dito então aos americanos, seus companheiros de aventura: "Aqui é como no Brasil, se corre bem, corre tudo bem, se corre mal, corre tudo mal! Vocês têm a mania de serem os melhores do mundo, que têm uma Força Aérea que é a mais capaz de todas, mas não chegam sequer aos calcanhares dos Portugueses!". "Como assim?" - pergunta um dos americanos, que também falava português.
"É que - prosseguiu o Brigadeiro brasileiro - nós fomos sériamente atingidos quando passámos à vertical de Mueda, o piloto põe-nos no chão, nas condições que pudemos verificar, ainda mal aterrámos e já tinham os helicópteros prontos para nos evacuar. Chegámos a Mueda e já lá encontramos um avião pronto para nos transportar para a base (Nampula). Diga lá como é que vocês alguma vez conseguiriam fazer uma coisa destas?".

Importará dizer que o DAKOTA 6175, tinha o motor direito a arder e "latas" a soltar-se por tudo quanto era lado, mas o Piloto Assunção fez-se à pista - que teria cerca de 350 a 400 metros e estava ocupada por alguns militares que jogavam à bola - , sofre um impacto ao tocar no solo, faz um cavalo de pau sobre a esquerda e... imobilizou-se, depois deste pensamento do Piloto: "Zé... acabou-se! O Zé morre hoje e não há mais nada!". Mas afinal sempre havia!
Na "Bagdade" a festa foi de arromba, e aqueles Adidos estavam mesmo doidos de todo! Pudera! Não era caso para menos. Nota: desconhece-se o autor.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

AM 44 - BEM VINDO AO LUSO !




Março de 1971.
Tal gigantesco escaravelho, o Nord Atlas, também conhecido como o barriga de Jinguba, fez-se à pista e lá tocou com as rodas no chão. 
Já na placa e com os motores parados, os passageiros saíram da sua barriga. Eram um misto de civis e militares. Entre os civis, havia quem transportasse malas elegantes muito à moda, enquanto outros carregavam os seus haveres embrulhados com grandes nós em panos coloridos tão típicos como os seus donos
De entre os militares, saí eu carregando o saco azul regulamentar, “contendo toda a minha vida” para uma nova etapa da minha carreira militar.
No hangar para onde me dirigi, um edifício térreo e de linhas simples, tratei da papelada entregando a minha guia de marcha e depois segui todo o pessoal para a carrinha que nos levava para o almoço, na cidade, distante uns poucos de quilómetros. Não havia instalações de cantina nem alojamento e essa foi a minha primeira surpresa. Dei em falar com um meu camarada especialista, o Ferreirinha, que me foi informando do modo como se vivia a vida nesta parte do mundo como militar da Força Aérea.

Os oficiais tinham alojamento e alimentação no Hotel Luso. Os sargentos e cabos especialistas comiam no restaurante da Pensão Nobre e tinham de encontrar alojamento, alugando um quarto nalguma casa particular ou havia uma casa alugada por especialistas, a República dos Saltimbancos. 
Tínhamos ajudas de custo para compensar as refeições e o alojamento mas a dificuldade era encontrar um lugar. No entanto, o Ferreirinha prometeu falar aos dirigentes da República, para ver se eu poderia ficar ali alojado. Ele pensava que havia uma vaga. Felizmente havia de facto uma cama livre num quarto partilhado com outro especialista, que de momento estava destacado no Cazombo. Tive assim a honra e privilégio de fazer parte do tão afamado Clube dos Saltimbancos. 
“Amanhã é sábado e vamos ter uma festa aqui em casa com meninas e tudo!” disse um dos companheiros. Era já um bom começo
No dia seguinte fizemos uma limpeza geral, fomos buscar cerveja e comida e ao fim da tarde estava tudo pronto para a festa. 

As “meninas” foram entrando e depois de algumas Nocais, a minha cerveja favorita, até eu me juntei na dança, música africana com certeza, a tocar no gira-discos. 
Faz-se noite cedo nestas partes de África e estava definitivamente escuro quando a festa começou a esmorecer. O número de anfitriões e convidadas começou a diminuir quando um dos meus companheiros me disse que, como já passava da hora do recolher obrigatório para os locais, diga-se, uma das raparigas teria de ficar a dormir no meu quarto. Isto suou como um alarme na minha cabeça, mas não perdi a compostura e aceitei a informação como se fosse coisa que eu fazia normalmente... 
Ora, os corpos suados, destilando cerveja e transpiração, num pequeno quarto com a porta fechada, não conduziam a uma cena muito romântica, que se avizinhava. O meu estimado frasco de Old Spice, a água-de-colónia da moda, foi a minha salvação e dentro em pouco o quarto tresandava a perfume. Fora esta a iniciação do rapazito a adulto, do soldado ao interior de África.

Bem-vindo ao Luso!

 

Por: Álvaro Santos Sá