quinta-feira, 23 de setembro de 2021

DESALOJADOS DE GUERRA EM LUENA-ANGOLA, 1992.

Campo de desalojados de guerra em Luena – foto de Peter Williams


Ao cumprir uma missão para as Nações Unidas em Angola, em 1992, houve uma situação que ficou gravada na minha memória, e na minha pituitária, para sempre: – a visita ao campo de desalojados de guerra, em Luena.
A ida ao Campo de desalojados foi um pedido disfarçado de convite, feito pelo responsável pela delegação de Luena da agência ONU – World Food Program (WFP) – o senhor Carlos S. 
O Carlos era um simpático peruano que geria as instalações do WFP perto da antiga linha férrea. Homem dos seus trinta e poucos anos, estatura mediana e com demasiado peso, vestia-se sempre com calças de ganga e camisa axadrezada. Como não tinha pessoal de apoio em quantidade suficiente, pedia ajuda a quem ia conhecendo, para levar a bom porto todas as iniciativas que conduzia.
Naquele dia Carlos necessitava de ajuda para distribuir géneros alimentícios no campo de desalojados de guerra. Concordei em ajudá-lo enquanto decorriam uns voos de longa distância, que iriam levar cerca três horas a regressar. A minha boa acção, não só respondia a um pedido de um amigo da ONU como me possibilitava ter uma outra perspectiva da sociedade que me rodeava.


Carlos foi buscar-me ao aeródromo de Luena no seu velho jeep descapotável. Afastámo-nos da Cidade e, muito antes de chegarmos ao campo de desalojados, comecei a sentir um desagradável cheiro a azedo no ar. Quanto mais nos aproximávamos, mais intenso aquele desagradável odor ficava. Parecia que cheirava a vomitado. Quando finalmente chegámos à estação de caminho-de-ferro abandonada, o cheiro era tão intenso, que fiquei com a sensação que aquela gente vivia dentro de um contentor do lixo, num dia de muito calor. Tentei disfarçar o meu desconforto e sorrir. Para ser simpático, balbuciei algumas palavras no dialecto local e apertei a mão a quem me queria cumprimentar. Disse, em silêncio, a mim próprio:
– “Aguenta o primeiro embate que daqui a um bocado a tua pituitária já se habituou.” 
O Carlos ia-me explicando o que eu via, enquanto oferecíamos os sacos de farinha que havíamos trazido no jeep. 
Estavam ali entre 7.500 e 8.000 pessoas; ninguém sabia o número exacto. Eram como zombies, num deambular triste pelo recinto sem qualquer ocupação ou destino. Por todo o lado ouviam-se pessoas a tossir. Uma tosse cavernosa indiciadora de maleita. Sempre que tocava em alguém, era assaltado pelo pensamento que, a seguir, teria de tomar um duche de descontaminante. Não era por snobismo ou segregação, mas porque aqueles carentes desalojados estavam imundos e doentes. O risco de ser contagiado por alguma maleita era realmente elevado. 
Contudo, continuei a cumprimentar toda a gente, porque senti que mereciam a minha consideração. Quase senti vergonha de mim próprio por pensar em evitar aquelas pessoas. Ali ninguém tinha optado por aquela vida miserável; todos tinham sido empurrados para aquele local pela força das armas. Dentro do grande edifício fabril, as solas dos sapatos colavam-se ao chão de tão sebento que estava.
A sensação que eu tinha e o ruído que as minhas botas faziam, eram como se estivesse a andar num soalho coberto com papel para agarrar moscas. 
Havia trapos pendurados a servir de parede para separar famílias. O telhado tinha grandes buracos e, devido ao mal estado de conservação da infra-estrutura, chovia em quase todos os compartimentos. Abundavam rolos de plástico com o logotipo do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados –UNHCR – com os quais se tentava colmatar a ausência de vidros nas janelas e telhas na cobertura. Contrariamente ao meu desejo, a minha pituitária recusava-se a habituar-se ao cheiro do local. 
Era um cenário de miséria humana, que me marcou e me faz ter muito respeito pela temática dos refugiados e desalojados de guerra. Seres humanos como nós, que não fizeram nada por merecer tais condições. Só tiveram o azar de nascer, ou estar, no local e altura errada. Fui assaltado por uma vontade estranha de lhes pedir desculpa, por usufruir de melhores condições de vida do que eles. 
O Carlos prescindia quotidianamente do seu bem-estar para ajudar os outros, colocando-se ao serviço do próximo.
Como militar, entendia bem o que era vocação para servir um bem comum; mas os voluntários da ONU, seus programas e agências, passaram a merecer toda a minha admiração e respeito.

Por:







Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, desta vez em missão humanitária da ONU, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.

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