sexta-feira, 8 de julho de 2016

AS MEMÓRIAS DE UM LUENA - CANGAMBA









CANGAMBA, SEDE DA ENTÃO CIRCUNSCRIÇÃO DOS LUXAZES.

A minha primeira passagem por esta vila, conhecida em tempos por Vila Aljustrel, deu-se em meados do ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, por aí, a caminho do posto administrativo do Sessa onde o meu pai era comerciante ao serviço do nosso tio/avô, Francisco das Barbas ou o velhote das Barbas de Cangamba. Mais tarde voltarei a falar desta personalidade que muito me marcou.Três anitos depois, em 1957 ou 58, voltei para ali frequentarmos a minha primeira classe. A sua descrição é algo complicada pois, esta era muito dispersa.
Havia edificações, mais conhecidas por lojas, que distavam umas das outras, cinco ou mais kms. Contudo, vou fazer um esforço e, surpreender-vos, passados que estão, mais de cinquenta anos.
Vai levar algum tempo mas, o homem pensa e, logo, a sua obra nasce. É mais ou menos isto.



Irei começar pelo Rio Cubangui que dividia aquela Vila. Não sei se ainda hoje é assim. Era um rio bastante fundo, o seu leito era quase todo coberto por vegetação que ondulava ao sabor da sua forte corrente. Aqui e ali, umas manchas brancas no meio daquela verdura. As suas margens inundavam-se com as chuvas e nelas cresciam imensos nenúfares. A sua margem esquerda era muito escarpada, coberta de mato rasteiro e matunduas, um fruto que se tornava benfiquista, quando maduro, muito ácido mas também muito saboroso.
No cimo desta escarpa, existiam duas lojas.
Para quem viesse do Luso-Cassamba ou do Sessa, encontrava a loja do sr. Almeida Camapunho e, para quem viesse ou fosse para o Muié, a loja do meu tio Ferreira das Barbas. Estas duas lojas, distavam uma da outra, cerca de quinhentos metros e a picada/avenida que as ligava, estava ladeada de eucaliptos adultos e de alguns bambus. Ambas estavam rodeadas de quimbos, lavras e mato rasteiro.
Aqui cabe referir que, em todos os postos administrativos que conheci, estas magnificas árvores marcavam presença e, eram de bastante utilidade já que, serviam de para-raios e de abrigo aos temporais muito presentes por aquela zona. E também de abrigo à passarada que a eles afluíam num chilrear ensurdecedor. Com um bater de palmas, levantavam voo e escureciam ainda mais o entardecer. O tamanho destas, ditava a idade do povoado. 
Sensivelmente, a meio desta avenida/picada, começava a descer uma outra, às curvas, de terra vermelha, em direcção ao dito rio, cuja ligação se fazia através de uma ponte em madeira de mussivi.
A sua margem direita, era mais plana, com pouco mato rasteiro, mais capim e mais arenosa. Uma pequena subida, mais eucaliptos e a loja do nosso querido e saudoso Mué Gunga, de seu nome, Luciano dos Santos Amaral.
Também esta era rodeada de eucaliptos.
Foi nesta casa/loja que eu e as minhas duas irmãs mais velhas, estivemos hospedados, durante parte da nossa instrução primária. E, também foi nela que eu conheci os meus melhores amigos. Também deste assunto, voltarei a falar mais tarde. Isto está tudo esquematizado, tenham lá um pouco de paciência.
Foi também nesta casa que nasceram os meus irmãos Zé e o já falecido Fernando. Era enorme tinha umas nove divisões, com varandas à frente e nas laterias. Atrás desta existiam mais umas duas enormes, cobertas a capim, uma delas servia de internatos aos rapazes e, foi nesta que uma bela noite fomos visitados pelo feiticeiro Mué Tchicunza, que nos deixou a todos baralhados, foi a confusão total, com os lampiões a apagarem-se, enfim, só visto.
Para além destas existiam pelo menos mais duas casotas pequenas.
No quintal havia mangueiras, muitas laranjeiras e tangerineiras, nespereira, goiabeiras, mamoeiros e uma pereira muito alta. Havia um tanque, habitado temporariamente por uma cria de jacaré, que depois foi devolvido ao rio por imposição do administrador, havia um quima e um corvo que sabia o nome de todo o pessoal e, imitava, lindamente a dona da casa, a saudosa D. Leopoldina. Muito gritava o raio do corvo pelo Pedro, engraçou com o seu nome e, lá vinha ele a correr, todo esbaforido, "diga D.Lepoldina... oh rapaz eu não te chamei". Todo o quintal era vedado por umas sebes trepadeira e espinhosa. 
Aqui, a picada bifurcava, uma passava ao lado e por detrás do quintal e ia dar a uma outra que tinha como destinos ao hospital e a firma do Pinto Martins e seguia para o Alto Cuito. A outra, seguia em frente, uma ligeira descida, um pontão sobre o riacho conhecido por Carilongue e, uma subidona larga, com uma curva e, finalmente, uma enorme recta, encimada pelo palácio do administrador. Esta avenida era toda ladeada de eucaliptos adultos e, um pouco depois da curva, do nosso lado esquerdo, aparecia a igreja, sem pároco na altura que servia de sala de aulas aos "indígenas". Custa-me muito dizer isto mas, a verdade é que, havia alguma discriminação racial já que na nossa escola, não havia um único negro. Mas tal situação humilhante, deixou de existir acho que um ano depois, quando eu e muitos de nós, já tínhamos partido para outras paragens.



A residência do administrador era enorme, bem à maneira colonial, era toda murada, com a altura de um homem, como dizia o patrício, e, em tempos idos, tinha sido um forte do nosso exército, aquando da nossa Campanha de penetração no grande sertão africano. Por certo, ali residiu o capitão-mor dos Luchazes, António Augusto Dias Antunes, com os seus cinco graduados e 48 soldados indígenas. É isto mesmo que nos diz o autor René Pélissier, no seu livro - História das Campanhas de Angola I, resistência e revoltas, 1845-1941. 
Dentro daqueles muros, com uma superfície, calculada a olhómetro, de dois hectares, (se errar, vocês não irão conferir, a não ser o Zé Caninga e o seu irmão João, que estão desde já impedidos), existia ao lado do tal palácio, a nossa escola e por detrás desta, um enorme casarão que serviu de residência à família Calheiros e na parte lateral, um conjunto de casas rasteiras e uma parada, julgo eu. Para esses lados, estávamos impedidos de passar.
Voltando à igreja, para quem subia a larga avenida e, sensivelmente, a meio desta, havia um cruzamento de estradas.
A que seguia para o lado esquerdo, ia parar ao Cangombe e, a do lado direito, o destino final era o Alto Cuito. Mas, logo a seguir à igreja, uns metros mais a cima e à esquina desse cruzamento, existia a loja do sr Manuel Lopes, funcionário da firma Pinto Martins e na outra esquina, sempre do mesmo lado esquerdo, um correr de três ou quatro habitações pertencentes à administração. A avenida acabava mesmo em frente ao palácio. Do lado direito, em frente à igreja e à loja do Manuel Lopes, existia só mato. Numa das esquinas do lado direito, ficava a administração e mesmo à entrada do já referido palácio, a cadeia. Na estrada do Cangombe, só existia do seu lado direito mais um casarão que serviu de residência à família Calheiros. Na estrada para o Alto Cuito, do seu lado esquerdo, existia um enorme hospital, duas ou três residências, pertencente à administração, uma delas era a do enfermeiro e logo a seguir, já mesmo no final da povoação, a loja da firma Pinto Martins. Os quimbos que existiam, situavam-se à beira das lojas do meu tio Ferreira, do sr. Almeida Camapunho, do sr. Luciano, e da firma Pinto Martins e ainda atrás do palácio e do hospital. Por todo o lado via-se mato rasteiro, bissapas, capim, matunduas, lavras de milho, jinguba e batata-doce. Com a intensificação da guerrilha, houve um abandono total da população branca e, quase todos aqueles edifícios, foram ocupados pelo nosso exército já que ali fora instalada a sede de um batalhão.

O único que nunca abandonou aquela vila, foi o meu tio/avô Ferreira das Barbas que, só em 1974??, foi forçado a fazê-lo por motivos de saúde, vindo a falecer no Luso. E hoje, como estará aquela Cangamba?
A minha primeira professora, chamava-se Arminda. Era mesmo muito brava. A sua palmatória, não tinha descanso. Ministrava, na mesma sala, aulas da primeira à quarta classe e, chegamos a ser, vinte e dois alunos, agrupados por famílias, saber:- da família dos SANTOS AMARAL, a Gina, a Lurdes e a Ivone; da SOUSA AMARAL, primos destes, a Vitória, a Zé e o Armindo, vindos do Luvuei; da ALMEIDA CAMAPUNHO, a Marlene, o João Cristiano, o Duarte (Neco) e o Zé Carlos( Caninga), residentes naquela vila; da PERESTRELO, o Rui, o Pedro e o falecido Tonito (Bartolomeu), vindos do Cangombe; da GOMES, eu e as minhas irmãs, Isabel e Lurdes, vindos do Sessa; da CALHEIROS, o António, a São e a Eduarda (Dita) e da família LOPES, o Nanel, mais conhecido pelo forno, residentes naquela vila. A minha família, a dos Perestrelos, a dos Sousa Amaral e do Lopes, vivíamos todos em casa da família Santos Amaral, cujo casal, já falecido, o sr. Luciano e a D.Lepoldina, tinha mais três filhos, o Julião já a estudar no Luso e dois kandengues, cassulas, o Nelson e a Mitó.
Como é bom de imaginar, as canseiras que este casal, simpático, e muito querido por nós todos, tiveram para nos aturar. Era mesmo um ambiente familiar que ainda hoje, recordo com muitas saudades, foi nele que, arranjei os melhores amigos da minha vida. Filhos de comerciantes, camionista e funcionário público.
A uns minutos da nossa saída, a professora, tinha o hábito de reunir toda a turma, à volta da sua secretária, para uma revisão da tabuada e, desgraçado daquele que a não soubesse. Entrava logo em funcionamento a terrível palmatória. E lá vínhamos nós com as mãozitas a ferver e com o monco na ponta do nariz. Mas que hábito mais danado.
A escola não possuía casa de banho, de maneiras que, tínhamos que nos aliviar no mato mais próximo que distava ainda uns bons cem metros. Para nossa desgraça, muitas das vezes, já com os calções nas mãos, tínhamos que transpor uma fenda no muro, aí com um metro de altura. E, depois, abrir bem os olhitos, para não tropeçarmos, nos nossos próprios presentes, feitos no dia anterior, espalhados por tudo quanto era sítio. Alguns já feitos em bolinhas e a serem transportados por uns enormes escaravelhos pretos, que os empurravam com as patas traseiras. Era um perigo circular naquela zona. A criança daquele tempo, sofria muito. 
Nesse percurso do alívio, existiam umas mangueiras que, de tão carregadas, estavam derreadas, com as manguinhas ali mesmo ao alcance das nossas boquitas. A tentação era tanta que, zás, uma dentadinha para avaliar o seu estado de maturação e, se estivesse no ponto, era logo ali comida, caso contrário, lá ficava ela dependura com a dentadinha. Um belo dia a professora, resolveu dar por lá uma voltinha e deparou-se com aquele triste espectáculo. Ficou furiosa e procurou saber quem tinham sido os artistas que tinham pintado aquele quadro. Como ninguém se acusou, foi uma geral, apanhamos todos. Isto sim, foi um acto solidário.
Mas à saída, começou a trovejar e o nosso amigo Neco, rogou uma praga inocente às mangueiras e à professora, do género:- era benfeito que ali caísse um raio e deitasse as mangueiras ao chão. Pois, qual não foi o nosso espanto, no dia seguinte, ali estava ela toda rachadinha, no chão. Foi um gozo, estávamos vingados.
Entretanto esta nossa professora, casou-se com o chefe do posto de Cangombe e para lá foi dar aulas ao Pedro. Fomos todos convidados para o seu casamento, foi uma bonita festa, foi ali que pela primeira vez, tive contacto com a coca cola e com a canada dry. Foi uma barrigada.
Finalmente, justiça lhe seja feita, ficamos a saber de cor e salteada a tabuada. Quanto à restante matéria, não ficamos mal servidos e, todo o resto foi esquecido.

Neste conjunto de "lembranças" do Amigo Luena António Gomes, quarenta anos após, muitos de nós podem relembrar um conjunto vasto de factos, vivências e da cultura Luena.
Ficamos gratos António Gomes, por este vosso contributo.




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