sexta-feira, 1 de julho de 2016

DESMOBILIZADOS

ESTÓRIAS DE MISSÃO DE UM OFICIAL DA FORÇA AÉREA: ANGOLA – 1992

Cartoon do autor
Conforme o estipulado nos Acordos de Bicesse, durante o processo eleitoral Angolano de 1992, as duas principais forças em confronto militar (UNITA e MPLA), tiveram de reduzir os seus efetivos e desmobilizar combatentes. Ambos os partidos desmobilizavam os seus combatentes dando-lhes a opção de levarem consigo as armas ligeiras que lhes tinham sido distribuídas. Toda a gente tinha uma AK-47 Kalashnikov e vários carregadores cheios de balas.
A questão dos desmobilizados era, talvez, o maior problema na situação de pós-conflito que Angola vivia. Procurei informar-me sobre a forma como estava a decorrer o processo de desmobilização. Segundo me contavam as fontes internacionais, havia uma notória diferença comportamental entre os dois partidos em conflito.
- “Os desmobilizados da UNITA dão o nome no centro de desmobilização, formavam a três e regressavam à Jamba. Os desmobilizados das FAPLA (forças do Governo MPLA) tentavam vender as suas armas no mercado e vão para o aeroporto à espera de transporte para Luanda.”
Uma pistola militar custava, no mercado local, 8 000 Kwanzas e uma Kalashnikov 12 000 Kwanzas. Um modesto valor que, no caso da AK-47, seria equivalente ao preço de um volume de tabaco com 20 maços de cigarros portugueses. Se a coronha da arma tivesse um trabalho de gravação esculpido, o preço seria um pouco mais caro.
Em Luena, a parte visível do problema dos desmobilizados, estava no aeródromo. Chegaram a vaguear por ali quase 400 ex-militares das FAPLA, alguns acompanhados da respetiva família. Todos aguardavam um avião que os levasse para Luanda. Por definição, em qualquer conflito, as matérias relativas a desmobilizados são um assunto governamental. As entidades internacionais podem ajudar, mas não devem substituir o governo nacional nestas funções. Em resultado disso, as aeronaves ao serviço da ONU, entre elas o avião C-130 Português que nos trouxe para Angola, não tinham autorização para embarcar esta gente, a não ser que recebessem a tarefa específica para o fazer. O que acontecia pontualmente, após um pedido expresso do Governo Angolano à UNAVEM.
C;130 FAP . foto EMFA
Um certo dia o C-130 português apareceu em Luena com a missão de levar 90 desmobilizados para Luanda. Dirigi-me à aeronave, a fim de saudar os meus compatriotas, colocando-me à disposição para os ajudar no que fosse necessário. Quando entrei na cabine de pilotagem - cockpit - a tripulação comentava que algo teria batido na asa esquerda durante a aterragem, mas não se via nada significativo daquele ângulo.
- “Provavelmente foi um birdstrik [colisão com uma ave]” – disse o navegador espreitado pela janela – “quando são pequenos não se conseguem ver bem!”
Depois de muita confusão no exterior da aeronave, lá se conseguiu carregar os 90 passageiros.
Mais tarde soube que o impacto na asa esquerda do Hércules, não tinha sido uma ave, mas sim duas balas de kalashnikov.


(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)



Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.

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