Confesso que tive medo, por vezes muito medo !
MOÇAMBIQUE 19/1/73
AM51 é a linha da frente da Força Aérea Portuguesa no Distrito de Cabo Delgado com a sua azáfama habitual no movimento constante de homens e aviões que começava logo aos primeiros raios do alvorecer.
Eis chegado o momento por mim tão ansiado, estava no meu último dia de comissão, completava dois anos de África, e permanecia em zona de guerra.
A meio da tarde o avião da logística chega ao AM e estaciona na placa.
Com alguma ansiedade espero a saída dos passageiros, quando me apercebo que não trás o meu substituto fico desolado, assim a rendição só poderia acontecer daí a uma semana.Os meus últimos dias no Planalto foram passados sob uma enorme tensão e pressão psicológica, os voos em missão pareciam durar uma eternidade.
Só pensava nos percalços por que passei e de onde sempre saí ileso, mas agora sentia o medo de morrer a poucos dias de volta a casa, temia ser novamente abatido em missão e desta vez acabar por não sobreviver.
Na Esquadra de Helicópteros era um princípio; de após terminados os dois anos, não permanecer-mos mais em zona de guerra.
Cada mecânico tinha o seu Heli distribuído, eu não poderia vir embora sem ser rendido, o que me era difícil de aceitar.
O Furriel Soares (chaparro) chefe de equipa, ofereceu-se para ficar com o meu Heli até vir o substituto, para eu entretanto poder pedir ao Tenente Piloto Aviador Luís Araújo (Ícaro) se me deixava partir.
Faltava pouco tempo para a saída do avião, apressadamente dirigi-me ao seu gabinete e expus-lhe a situação.
Foi compreensivo, justo e humano como um verdadeiro ÍNDIO, deixou-me partir.
Agradeci-lhe e saí correndo fazer o saco com os pertences, dar um abraço de gratidão ao Soares, e fui apanhar o avião.
No meio daquela agitação e movimento habitual na placa do AM, entro no barrigudo Noratlas juntamente com os restantes passageiros, escolho um lugar nos seus típicos assentos laterais, e espero a partida sob um turbilhão de pensamentos e emoções.
Sinto algumas lágrimas que me esforço por suster, invade-me um sentimento de culpa e angústia por saber que vou partir são e salvo, e ali deixo camaradas e amigos de tantos momentos e aventuras entregues á incerteza do dia a dia, dos riscos e perigos nas missões naquele teatro de guerra.
Como que acordo do pensamento em que estava mergulhado com o roncar dos potentes motores do Noratlas, avião tão operacional e eficiente no apoio logístico ás Forças Armadas e populações, aterrando e descolando em pistas de terra batida curtas e mal niveladas, extremamente difíceis de operar.
Por fim rolamos da placa para a pista, posicionando-nos no início, potência máxima para a descolagem, e lá vamos tomando velocidade quase a todo o comprimento até ao fim do Planalto.
Nariz levantado, rodas no ar e ganhamos altitude sobre o Vale de Miteda, lugar sinistro e de perigo constante, que só de pronunciar o nome arrepiava, quatro dias antes ali tinha feito uma dramática evacuação na picada.
Mantive-me em silêncio sem trocar conversa com os restantes passageiros, no meu pensamento passavam imagens de um filme no qual fui personagem durante dois anos naquela terra inesquecível no Planalto dos Macondes.
Após algum tempo de voo espreito através da pequena janela circular, e aprecio a paisagem da selva Africana, cá em baixo o rio Messalo serpenteia por entre a floresta verde procurando o caminho para o mar ao encontro com o Oceano Índico através de uma terra apaixonante de encanto e beleza, martirizada pela guerra.
Mas o avistamento do rio Messalo transmitiu-me uma sensação de alívio, estamos saindo da zona de perigo.
Para trás vai ficando uma terra de morte e destruição, de ataques, de emboscadas, de picadas minadas e armadilhadas, de bombardeamentos, de angústia e incerteza pela vida, de interrogação e procura pelas razões e justificações da guerra, de momentos de dor, de amizade e camaradagem, ali deixava parte de dois anos da minha juventude que valeram por uma vida.
ADEUS MUÉDA TERRA DA GUERRA
Quantas vezes me perguntam porque não te esqueço, como se fosse possível esquecer-te !
Para além das operações de guerra, foram muitas e muitas evacuações, tenho na memória o sofrimento de quem resgatei do inferno das zonas de combate.
Ouço os seus gritos de dor e aflição, gravei os seus olhares que tudo diziam sem precisar de palavras, os seus olhos falavam.
Quantos mesmo em sofrimento exprimiam um leve sorriso como que dizendo: apesar de tudo sem um braço ou uma perna vou sair daqui vivo.
Já alguns devido á gravidade dos ferimentos, o seu olhar era de aflição pedindo que tudo fizéssemos para os salvar.
Por fim outros com uma palidez de morte no rosto desfaleciam dando o último suspiro ficando a olhar no vazio.
É impossível esquecer !
Muéda, que preço tão alto pagámos, quantas vidas cobras-te por pisarmos o teu chão e voarmos no teu Céu.
ADEUS MUÉDA TERRA DA GUERRA
Jamais te esquecerei !
E todos deixámos um pouco de nós
Na África de sonho lá onde estivemos
Momentos intensos de amizade e dor
Tão longe no tempo mas não nos esquecemos
Francisco Serrano
Mecânico de Helicópteros Moçambique 71/72
Gostei de ler,voltei muitos anos atrás.
ResponderEliminar“ Mueda terra de guerra” vivi essa aventura, (mas que experiência de vida) senti a sensação na pele … fui ferido na “curva da morte”(Sagal) com uma explosão de mina! Mesmo vivendo este contratempo, tenho saudades desse tempo! António Bolito
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