quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

FIM DE IMPÉRIO - Descolonizar Angola (PARTE II)



Aproveito a oportunidade para transcrever um emotivo relato de um dos nossos cabos especialistas que, encontrando-se na cidade, foi apanhado naquela turbulência (693)

O 12 de junho de 1975 foi de facto o despertar para um "fim" que se sabia calendarizado, mas não tão rápido e violento. A cidade foi varrida, por quase 30 horas de "guerra civil" e nos dias-semanas seguintes as noites eram escuras, fora da Base, e tracejadas por morteiros e projéteis que, vistos de longe, assustavam. Descolar e aterrar eram, contudo, rotinas sem grandes condicionantes. 
Pessoalmente, a minha noite de 12-13 de junho e todo o resto do dia foram passados deitado numa banheira da casa de banho, pois "fui apanhado" em plena cidade e pude refugiar-me numa das casas que a FA ali tinha (Bairro). Horríveis 30 horas, pois não se adivinhava o que estaria a acontecer em redor. Só uma operação feita por Comandos do ME nos evacuou para o AB 4. 
A destruição, com mortos à mistura (a maioria dos 3 "Movimentos" envolvidos), era imensa e foi aí a debandada dos civis para perto dos "aviões" na ânsia de sair e de ter mais (aparente) proteção. 
A enfermaria da Base parecia um bloco operatório, porque não uma morgue, aonde chegavam também feridos de outras localidades. Era um caos absoluto. Talvez dos locais mais assustadores, quando se olha para trás. Um comandante da FNLA, recordo, apareceu em maca, consciente, com um grande "buraco" num dos ombros, tapado com uma rolha de papel.… imagens que não saem. ...

Transcreve-se ainda parte do depoimento, de outro militar do AB 4 (694)

Os Movimentos de Libertação decidiram "digladiar-se" pela conquista da cidade de Henrique de Carvalho, aliás como o vinham fazendo por outras cidades, nomeadamente em escaramuças em Luanda desde março e em especial em Malange, onde também houve tiroteios.
Além da noite de 12 para 13 de junho referida, em 16 de julho, volta a haver nova disputa pelo território, com violentos tiroteios entre o MPLA e a FNLA durante cerca de 18 a 20 horas e foi de novo redobrada a vigilância em todos os postos da Unidade e Rondas.

A 13 de junho, após a tormenta, as famílias dos militares começaram a ser evacuadas e concentradas nas instalações do AB 4. Mas, perante essa retirada, a população civil (brancos e negros) dirigiu-se para a nossa unidade em busca de abrigo. Tarefa hercúlea, na qual colaborei, a de alojar centenas de pessoas em hangares, armazéns e outros edifícios, distribuir colchões e cobertores, gente dispersa por todo o lado. A enorme cozinha e os refeitórios funcionavam da madrugada ao anoitecer, recorrendo aos géneros que tínhamos em depósitos e câmaras frigoríficas, mesmo assim insuficientes para acudir a todos. 
Edificio do Comando e alojamentos
Mas já não era possível albergar mais gente. Os retardatários, vindos de mais longe, chegando em automóveis, carrinhas de caixa aberta e camionetas, foram-se instalando fora do arame farpado, em redor da porta de armas, em busca de proteção. Nos dois dias seguintes, ainda se ouvia o fragor de combates dispersos. Depois, os civis começaram a abandonar a segurança da manu militari, em busca dos seus espaços e haveres.
E pensávamos que, com a tormenta terminada, o vencedor MPLA seria além de invencível na guerra, magnânimo na vitória e respeitaria o vencido.
Contudo, exigiram ao comandante do AB 4 a entrega dos adversários feridos, que haviam sido recolhidos na cidade e se encontravam a ser tratados na nossa enfermaria, exigência que foi rejeitada. Humanidade e tolerância não existiam no léxico daqueles valentões. Tornava-se imperioso impedir que os pressupostos do anticolonialismo e as razões subjacentes à luta de libertação justificassem todo o tipo de condutas, incluindo as execuções sumárias. Infelizmente, os Movimentos, ávidos de poder, eram pródigos em discursos e promessas, mas, como diz o povo, de promessas está o mundo cheio. Porém, as confrontações e os ajustes de contas entre eles, causaram milhares de vítimas em Angola e indizível sofrimento às populações.
Nos meses seguintes, os militares da Força Aérea em serviço no AB 4 continuaram a ser evacuados para Luanda. Em fins de agosto de 1975, já eram menos de cinquenta. A unidade, entretanto, tinha sido ocupada pelos homens do Batalhão de Cavalaria 8322, que aí se mantiveram até efetuarem a transferência das instalações para o MPLA.
Minha mulher, quando lhe foi pedido, em 2008, ou seja, trinta e três anos depois, para descrever o acontecido em Henrique de Carvalho na noite de Santo António de 1975, escreveu um trecho que foi publicado numa obra coletiva, do qual respigo algumas passagens (696)

Angola, Henrique de Carvalho, 12 de junho de 7975, 18 horas. 
E subitamente a guerra rebentou! Terrível, ensurdecedora, inequívoca, imediata. Por detrás do nosso jardim, fora uma ala do hospital atingida por morteiros. Baixando-me e baixando-as, corremos para a única parte da casa que não tinha vidros, um corredor para onde o meu marido, chegado há pouco tempo, nos puxava e tentava acalmar o choro das duas garotas, estonteadas pelo barulho e pela urgência. 
Depois... foi o escuro, a loucura absoluta, as histórias que eu tentava murmurar para acalmar as miúdas, os clarões repentinos que nos iluminavam, os estrondos do mundo a desfazer-se, as granadas que eu temia caírem-nos em cima, o uivo luminoso das balas tracejantes, os gritos de ordens e desordens da turba em guerra fratricida: MPLA contra UNITA, MPLA contra FNLA, UNITA contra FNLA. E tudo vomitava fogo imprevisível, e o tempo era comprido, as metralhadoras furavam paredes, estilhaçavam vidros e as garotas não adormeciam... 
Tinham fome e medo e uma delas queria a mãe; em determinado momento, o meu marido, a arrastar-se foi buscar alimentos e apagar o fogão que enchera a casa de cheiros e teve também de ir até à parede comum às duas vivendas e bater com força. Esperámos e ouvimos batidas do lado oposto, a miúda acalmou um pouco. 
Depois adormeceram, cansadas de chorar e agarradas a nós que nos agarrávamos à fé. A esperança de que se matassem todos, que o pesadelo terminasse e novamente se ouvissem grilos, se pudesse olhar as estrelas, cheirar a terra nessa África fantástica de noites intensas e misteriosas. 
Eu também queria chorar e não podia e fugir se houvesse um escape. Mas não, eles, todos, não sei quantos, estavam ali à volta, a brincar com a morte, desprezando a vida, carregando ódios, executando vinganças ancestrais de tribos contra tribos, de etnias, concretizando sonhos de autoridade, ilusão resultante do poder das armas. 
Após algumas horas do início (temporário) das tréguas e depois dos militares portugueses haverem recolhido feridos e moribundos, transportando-os para a enfermaria da Base Aérea, a oito quilómetros da cidade, onde no dia seguinte se apresentaram intrépidos e conscientes guerrilheiros, armados até aos dentes, em missão de acerto de contas, exigindo a entrega dos inimigos agonizantes... 
Não pude colher, no jardim, as rosas de porcelana que floriam num canteiro, com violetas africanas, rodeado de ananaseiros e tive pena. E ainda mais me lembrei delas quando, poucos dias decorridos, novamente se viu ao longe, o céu da noite de Henrique de Carvalho fervilhar de explosões, riscado do horror da loucura assassina... por certo espezinharam as minhas rosas!...

Presto aqui as devidas homenagens aos militares com os quais convivi e enfrentaram estes tempos conturbados, sabendo respeitar valores e tomar decisões equilibradas, apesar da emergência das situações (697)
Uma referência muito especial para o alferes Victor Nunes que serviu como meu adjunto e em todas as circunstâncias manifestou lealdade e cooperação exemplares
(698)
À minha geração haviam sido pedidos dois esforços hercúleos, o de aguentar com a defesa do império, nos anos sessenta e setenta, e o de superintender às sequelas do seu abandono. 

4. Paraíso Perdido

Em junho de 1975, fui colocado em Luanda, na Base Aérea n°. 9, tendo os meus familiares regressado a Lisboa. Aí tive a prerrogativa de continuar a trabalhar e a conviver com outros camaradas, num período de confrontações e instabilidade permanente (700)

Nota dos Editores: o nosso reconhecido agradecimento ao Sr. Major-General ADMAER da FAP Manuel de Campos Almeida, por nos ter permitido publicar este excerto da sua obra.








Adendas:
693 e 694 - Relato recolhido no Blog
696 - Maria Teresa de Campos Almeida. In A mulher Portuguesa na Guerra e nas Forças Armadas. Ed. Liga dos Combatentes, 2008, pp 81 e seguintes.
697 - Entre eles, os majores João Carlos Oliveira e Fausto Cruz, os capitães José Bernardo Fermeiro e António Várzea, o tenente Pereira e o sargento Fartura.
698 - Natural de Alviobeira, concelho de Tomar. Recordo também a sua mulher, Maria Teresa Nunes, com quem mantivemos fortes relações de amizade.
700 - Destes destaco os tenentes-coronéis Velho da Costa e Feliciano Gomes, os capitães Mendonça Carvalho, Manuel António Melo, Mendes Barbas, Vitor Costa, Tavares de Lima e Vale de Gato, os alferes Antunes Moreira e Joaquim Rodrigues e o sargento Rafael Meireles.

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