quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

FIM DE IMPÉRIO - Descolonizar Angola (PARTE I de II)


No primeiro trimestre de 1975 entrou em execução o Plano Secreto de Operações da 2ª. Região Aérea, designado Luz Verde, conforme o que havia sido estipulado nos conciliatórios Acordos de Alvor de 15 de janeiro de 1975.
O AB4 em 1970. O aeródromo, rodeado de savana, 
ocupava um rectângulo com mais de 2Km de 
comprimento
Para o AB 4, estabelecia a extinção de todos os seus Aeródromos de Manobra e de Recurso, a redução progressiva dos seus efetivos e a manutenção de uma Esquadra de Voo com 6 DO-27, 1 C-47 e 3 AL III. A desativação da Base de Henrique de Carvalho estava prevista para 30 de agosto, sendo instalações, materiais e equipamentos entregues às Forças Militares Angolanas.
AB4 2/2/1975. Vindo da Zâmbia e recebido pelo
Gov. da Lunda Cor. Leandro, Maj. João Oliveira
do AB4 e elementos do MPPLA
Agostinho Neto regressou a Angola, através do AB 4, num domingo, 2 de fevereiro de 1975. Foi recebido com as deferências devidas, prestadas pelo MPLA e seus apoiantes. Todavia, o comandante não autorizou cerimónias no interior da unidade. De facto, num dos topos da pista, estava instalada a aerogare destinada ao trânsito de aviões civis, respetivos serviços de apoio e placa de estacionamento. E foi aí que foi recebido Agostinho Neto, pelos seus homens. 
Posteriormente, foi convidado a visitar o Clube de Oficiais, tendo sido acompanhado pelos seus seguranças e por militares portugueses, transparecendo, contudo, algum nervosismo na sua comitiva. A sua entrada oficial em Luanda deu-se na manhã de 4 de fevereiro (678). O simbolismo da data escolhida é por demais evidente. De facto, foi na madrugada desse dia, em 1961, que nacionalistas angolanos desencadearam uma série de emboscadas e assaltos na cidade (679)
O processo de desativação de todo o leste desenvolveu-se conforme o planeado, com a retirada do material e pessoal da F Aérea e sua concentração no AB 4, seguindo, depois, para Luanda. Nos fins de março de 1975, no dispositivo da F Aérea do leste de Angola, estavam totalmente desativados os Aeródromos de Camaxilo, Cazombo, Gago Coutinho, N’Riquinha, Cuito Cuanavale e a entrega das instalações do Luso já se encontrava em fase bastante adiantada (681)
Na Lunda, começaram a aparecer membros dos três Movimentos de Libertação, conforme o estipulado nos Acordos de Alvor. Nesses documentos, ficaram expressos os parâmetros para a partilha progressiva do poder, durante o processo de descolonização, até à data da independência.


Permito-me transcrever alguns articulados dos Acordos de Alvor, com mais incidência na área militar (682).

Artigo 6° - O Estado Português e os três Movimentos de Libertação formalizam, pelo presente acordo, um cessar-fogo geral, já observado, de facto, pelas respetivas Forças Armadas em todo o território de Angola. A partir desta data, será considerado ilícito qualquer ato de recurso à força, que não seja determinado pelas autoridades competentes com vista a impedir a violência interna ou a agressão externa. 
Artigo 8° -O Estado Português obriga-se a transferir, progressivamente, até ao termo do período transitório, para os órgãos de soberania angolana todos os poderes que detém e exerce em Angola. 
Artigo 32°.- Forças Armadas dos três Movimentos de Libertação serão integradas em paridade com Forças Armadas Portuguesas nas Forças Militares Mistas, em contingentes assim distribuídos:

- 8.000 combatentes da FNLA, 
- 8.000 combatentes do MPLA, 
- 8.000 combatentes da UNITA, 
- 24.000 militares das Forças Armadas Portuguesas.

Artigo 33° - Cabe à Comissão Nacional de Defesa proceder à integração progressiva das Forças Armadas nas Forças Militares Mistas, referidas no artigo anterior, devendo em princípio respeitar o calendário seguinte: 
- De fevereiro a maio inclusive, serão integrados por mês 500
combatentes de cada um dos Movimentos de Libertação e 1.500 militares portugueses; 
- De junho a setembro inclusive, serão integrados por mês 1.500 combatentes de cada um dos Movimentos de Libertação e 4.500 militares portugueses.

No ano anterior, havia sido necessário nomear um oficial para representar O AB 4 nas reuniões gerais do MFA. Embora sem ter manifestado interesse ou apresentado qualquer candidatura, fui escolhido no primeiro escrutínio e, a partir daí, viajava frequentemente para Luanda, no Noratlas, a fim de participar nos conturbados e pouco produtivos encontros, próprios de uma democracia nascente e ainda não sedimentada. 
Foi nesta conformidade que me coube receber, acompanhar e integrar três jovens, representando o MPLA, a FNLA e a UNITA, que se apresentaram no AB 4, no mês de março de 1975. Foram fardados com os nossos uniformes e graduados no posto de tenente. Sem experiência militar, com a arrogância e o atrevimento próprio do desconhecimento das coisas, tudo sabiam, queriam começar a controlar e sobretudo alvitrar. A minha tarefa requeria paciência infinita, em face da sua pouca cultura, da sobranceria de algumas das suas posições, exigências e afirmações, sobretudo, quando avançavam com sentenças obsoletas e primárias do marxismo-leninismo, recentemente aprendidas, mas não compreendidas. 
Mas a maçada não foi muito duradoura, porque as tensões e a confrontação entre os Movimentos levou à desagregação do plano geral de integração e à retirada dos angolanos do AB 4, para se juntarem às suas gentes. 
De facto, pouco tempo após os Acordos de Alvor, os independentistas começaram a digladiar-se por toda a parte, para controlar espaços, pessoas e instituições, em especial em Luanda e arredores (683). O que deu origem a uma competição, para incorporarem nas suas fileiras os desmobilizados das Forças Armadas Portuguesas-FAP (684), que eram recebidos de forma amigável e sem lugar a retaliações (685)
Cangumbe Jul1974. Fernando Castelo
Branco, Diamantino Mafaldo,
Dr. Jonas Savimbi e Luis Faria Costa
Os antagonismos geraram uma guerra civil duradoura, sangrenta e fratricida. Mas, é bem verdade, que quase todos os Estados nasceram de atos da violência e os pais fundadores tiveram de saber lidar com ela.
Infelizmente, os três Movimentos trucidaram-se, os mortos foram inúmeros, muitas infraestruturas físicas, escolas, hospitais e pontes acabaram danificadas ou destruídas, sem grande inquietação, pois tinham aprendido que era preciso destruir para construir, sem entenderem que, necessário era tomar conta do aparelho ideológico, político e administrativo, dominado pelo colonizador. Não haviam assimilado o essencial do dinâmico princípio da creative destruction (687). E, é sabido, que o grande adversário do conhecimento não é a ignorância, mas sim a ilusão do conhecimento (688).
No distrito da Lunda, em particular na cidade de Henrique de Carvalho, os antagonismos começaram a agudizar-se, em maio e junho. Os comandantes do AB 4 (689) e do Batalhão do Exército desdobravam-se em reuniões conjuntas, no sentido de impedirem confrontações e de superarem os incidentes, que iam acontecendo. 
Mas estas manifestações de boa vontade não foram suficientes para travar ódios e rivalidades (690)
Henrique Carvalho 12/6/1975
A confrontação mais violenta e duradoura aconteceu, na tarde de 12 de junho de 1975, véspera de Sto. António. Os combates ocorreram no centro de Henrique de Carvalho, incidindo em especial na zona dos bairros residenciais de oficiais e sargentos da F. Aérea, situados junto ao hospital da cidade. Com o início dos disparos de armas ligeiras e pesadas, as ruas ficaram desertas em segundos. Famílias desencontradas, combatentes a movimentarem-se junto às casas e quintais, inferno sem fim, apocalipse now, situação que perdurou até ao dia seguinte, quando foi possível o cessar-fogo. 
A nossa moradia, só com rés do chão, era geminada e tinha um pequeno jardim e quintal. Ao lado, habitava o tenente Pereira. Umadas suas meninas estava connosco e já não foi possível fazê-la transpor o muro rasteiro, que nos separava. Minha mulher, apanhada pelo violento tiroteio, nem conseguiu apagar o gás do fogão da cozinha, onde preparava o jantar. 
Meti-as num corredor interior, junto à casa de banho, porque era o local mais protegido. Depois de escurecer, sempre sem luz, rastejei para desligar o fogão, pois o cheiro a esturro já se espalhava em redor e recolhi pão, água, fruta e agasalhos. Consegui também alcançar a pistola Walther e as munições que me estavam distribuídas. 
Ao longo das horas continuámos a ouvir os passos, brados, gritos e movimentações dos combatentes, envolvendo as nossas residências, rua e quarteirão. Noite escura e medonha, luta ininterrupta, clarões e estrondos contínuos, tempo de incerteza e apropriado para se fazer um rápido balanço de vida. Como é lógico, as nossas forças militares não poderiam envolver-se em conflito alheio e aguardaram o silêncio das armas para, mais uma vez, tentarem a conciliação. Tarefa impossível, porque, em 13 de junho, após os combates, Henrique Carvalho ficava nas mãos do vencedor MPLA. 
As vítimas eram recolhidas na via pública. Os vitoriosos capturavam os adversários feridos e abatiam-nos. Do AB 4, chegaram o capitão médico Pedro Barreiros, os enfermeiros e os maqueiros, que começaram a recolher os que jaziam junto ao muro da nossa casa, paredes meias com o hospital. 
Foi-me pedida ajuda e colaborei na remoção de corpos ensanguentados, colocados em macas, que depois seguiram para a nossa enfermaria. 
Efeitos dos confrontos entre os Movimentos
Alguns dos edifícios envolventes da minha habitação estavam danificados e crivados de projéteis, mas o mais atingido tinha sido o hospital, com vidros, janelas e algumas paredes danificadas. O burlesco aconteceu com um camarada que vivia perto de nós. Quando acabou o tiroteio e foi avaliar os danos, verificou que o armário roupeiro havia sido atingido por rajadas de metralha e o vestuário ficara esburacado. 
Mas, apesar de tudo, os eventos descritos não eram comparáveis aos intensos ataques aos aquartelamentos portugueses da Guiné, atrás referidos.

CONTINUA

Nota dos Editores: o nosso reconhecido agradecimento ao Sr. Major-General ADMAER da FAP Manuel de Campos Almeida, por nos ter permitido publicar este excerto da sua obra.






Adendas:

678 - Ver Acácio Barradas, Agostinho Neto, Uma vida sem tréguas, 1922-1979, Lisboa-Luanda 2005. No 30° aniversário da independência de Angola. Biografia do Presidente António Agostinho Neto (1922-1979), completado por testemunhos inéditos de familiares e amigos. 
679 - Angola considera esta data como o início da luta armada, passando a ser feriado nacional. Foi ainda designado com este nome o aeroporto internacional da capital e a bela avenida marginal. 
681 - AHFA. Comando da 2." Região Aérea. Relatórios do Comando de 1975 
682 - In Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra. 
683 - A FNLA e a UNITA lançaram suspeitas sobre a governação portuguesa, pois não estaria a ser imparcial, apoiando o MPLA na sua corrida pelo poder em Angola, nomeadamente através da entrega de armas. Embora, desde os primeiros incidentes em Luanda, tenha declarado a sua neutralidade, a nossa administração não terá deixado de privilegiar o apoio a Agostinho Neto, que apresentava um programa político mais próximo daquele que se vivia em Lisboa, em pleno PREC, no chamado verão quente. Entretanto, os Acordos de Alvor foram suspensos em ago1975 (Decreto-Lei n.° 458-A/75 de 22ago). 
684 - Aos combatentes naturais de Angola, que pertenciam aos quadros permanentes das FAP, foi dada a possibilidade de continuarem nas fileiras, de acordo com o estatuído na legislação portuguesa, inclusive o direito de passagem à reserva ou à reforma. Já os do SMO e das Tropas Especiais e Flechas (criados em 1966), foram desmobilizados e receberam indemnizações do Estado Português, tendo muitos deles passado, posteriormente, a integrar as forças dos 3 Movimentos, em especial do MPLA. 
685 - Porque, ao contrário do PAIGC e FRELIMO, os 3 movimentos de Angola tinham estruturas militares menos robustas e organizadas. Por isso, entraram em competição para incorporar os desmobilizados. 
687 - Reduzir ou alterar a orgânica de instituições ou empresas, por forma a aumentar a sua eficiência e dinamismo. Na sua ingenuidade, apenas anteviam um futuro glorioso e de facilidades. 
688 - The greatest enemy of knowledge is not ignorance: it is the illusion of knowledge. Stephen Hawking, físico britânico (1942-2018). 
689 - Major piloto aviador João Carlos Oliveira, que enfrentou as dificuldades com coragem e determinação. 
690 - O processo de descolonização de Angola tornou-se o mais difícil de todos. Os 3 Movimentos entraram em confrontação e, em março de 1975, já estilhaçados os Acordos de Alvor, passou-se a uma fase de internacionalização do conflito, com interferências da África do Sul, EUA, URSS, Cuba e Zaire.




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