Um dos episódios de guerra que mais me
marcou passei-o na segunda comissão, em Moçambique, por finais de 1973.
Em Mueda, no coração do Planalto
dos Macondes, distrito de Cabo Delgado, onde as nossas tropas tinham um
importante dispositivo. Esta região do extremo Norte de Moçambique, separada da
vizinha Tanzânia pelo Rio Rovuma, era um santuário da guerrilha. O Rovuma
dividia os territórios, mas não separava o povo Maconde. O trânsito dos
guerrilheiros vindos da segurança da Tanzânia era relativamente fácil. Essa
facilidade e o temperamento guerreiro dos macondes fizeram com que a guerrilha
nos tivesse provocado, ao longo dos anos, fortes dores de cabeça.
O aeródromo de Mueda, que servia o destacamento
de helicópteros, era frequentemente flagelado pela artilharia da Frelimo –
quase sempre ao entardecer. Um dia, lembro-me que imediatamente a seguir ao
almoço, dirigia-me para a sala de operações quando um ‘jeep’ pára perto de mim
com os pneus a chiarem no asfalto. Salta um jovem alferes do Batalhão de Mueda.
Vi logo, pela pressa, que tinha acontecido alguma desgraça. A maior parte das
operações que os helicópteros faziam eram evacuações – de mortos ou feridos –
ou de transporte de material de apoio a colunas em dificuldades.
– Meu capitão, dá licença?
– diz-me o alferes
E, sem
me dar tempo para responder, acrescentou:
– A coluna de Mocímboa do Rovuma foi
atingida por uma mina. Uma viatura pesada ficou inoperacional, mas é
recuperável. Precisamos de fazer chegar lá o material o mais rapidamente
possível.
Compreendi a pressa do alferes. Não podíamos
abandonar uma viatura recuperável no terreno – e obrigar a coluna a passar uma
noite naquele local à espera do material significava expor os soldados a
ataques dos guerrilheiros com consequências imprevisíveis. Era a zona onde
actuava o Destacamento 25 da Frelimo
Eu era o comandante do destacamento de
helicópteros de Mueda. Tinha seis pilotos em permanência. Éramos seis pilotos
em permanência. Perante um pedido de apoio aéreo deste tipo, aparentemente sem grande dificuldade, normalmente teria chamado um dos pilotos mais jovens. Mas, considerada a urgência da missão e porque já estava na pista, decidi que eu fazia a missão. Não precisava de chamar mais ninguém, a não ser o mecânico de voo, e avisar o comandante do aeródromo, major Vaz Afonso. A missão não duraria mais do que 45 minutos. Mas
ia ser executada numa área onde os aviadores não gostavam de voar. A nudez da
mata expunha o helicóptero a atiradores no solo. O voo a baixa altitude
minimizava este inconveniente. Mas nesta zona o voo envolvia outro perigo. Voar
a baixa altitude sobre árvores totalmente despidas de folhagem fazia-nos perder
a noção da altitude e da distância aos ramos. Um voo nestas condições podia
provocar facilmente a colisão com um tronco de árvore. A velocidade era da
ordem dos 180 quilómetros por hora.Decidi voar ao lado da picada – ora de um lado
ora do outro, serpenteando-a, sem nunca perdê-la de vista. Com estas mudanças
de posição evitava estar demasiado tempo em exposição no mesmo rumo. As
manobras repentinas no ar dificultavam a missão de atiradores da guerrilha que
muito naturalmente esperavam pela passagem de um helicóptero em socorro
da coluna. Não iria fazer o mesmo trajecto na volta de regresso.Passados alguns minutos, já estava em contacto
pelo rádio com a escolta da coluna. Atingi o objectivo sem incidentes. A coluna
estava parada numa zona larga e desmatada do planalto, relativamente perto da
base dos guerrilheiros do Destacamento 25.Quando fiquei à vertical da coluna, um militar
em cima da viatura avariada indicava-me um local ao lado para eu deixar a peça.
Mas a sugestão não me agradou, uma vez que não conseguia manter, com toda a
segurança, as pás do helicóptero afastadas das árvores. A peça que transportava
era pesada. Decidi largá-la uns metros ao lado da picada, perto da viatura
acidentada, mas sem obstáculos à volta e a razoável distância das bermas da mata.
Aterrei envolto por uma nuvem de poeira. O mecânico fê-la deslizar rapidamente
para o solo:– Pronto, já está! – diz o mecânico.
Não demorou sequer um minuto entre a largada da
peça e o início do regresso ao aeródromo. Perguntei se precisavam de mais alguma
coisa. Disseram-me que não. Despedi-me:
– Boa sorte e até breve em Mike Delta –
disse-lhes pelo rádio.
O indicativo do rádio farol de Mueda era MD,
pelo que usávamos o alfabeto fonético (Mike Delta) para designar a base.
Como já tinha decidido utilizar uma rota
diferente no regresso, inflecti para Sul de modo a apanhar o rebordo do
planalto e, ao longo dele, rumar a Mueda. Tinha acabado de deixar para trás as
primeiras viaturas da coluna, em direcção a Mueda, quando ouvi no rádio o
indicativo genérico que o Exército usava para chamar os helicópteros:
– Mosca, mosca, aqui terra!
Sabia que não havia mais helicópteros na zona. A
chamada só podia ser para mim:
– Transmita.
Respondi à espera de ouvir alguma coisa que não
me tinha sido dita momentos antes. Mas não. O que ouvi deixou-me transtornado:
– Mosca, mosca, aqui terra. Temos um ferido
grave.
Nem queria acreditar que era a coluna que
acabara de deixar. Pedi confirmação:
– Terra, aqui mosca. Confirma que é no local
onde deixei a peça?
– Correcto e afirmativo. Foi outra mina. É um
ferido grave.
Inverti o rumo, em direcção ao local. Ainda pairava sobre a coluna uma nuvem de fumo esbranquiçado. Lá estava, na picada, entre duas viaturas, a enorme cratera do rebentamento. Uns tantos militares ainda estavam deitados, aparentemente aturdidos com a violência da explosão ou com ferimentos ligeiros. Feridos graves não havia. A vítima estava feita em pedaços. Os restos carbonizados do corpo foram recolhidos em panos de tenda e embarcados no helicóptero.
Senti-me culpado daquela morte. Acabei por colocar a peça num local perigoso. Obriguei um homem a deslocar-se num terreno suspeito. Este soldado acabou por accionar uma mina anti-pessoal que, por simpatia, fez explodir uma outra, de fósforo, anticarro. Um soldado que estava entre duas viaturas ficou feito em pedaços. Os seus restos mortais estavam agora no meu helicóptero, rumo a Mueda.
'SÓ
FIZ DUAS COMISSÕES. NÃO TIVE TEMPO PARA MAIS'
Algures no leste de Angola |
O major-general Queiroga recorda, com orgulho, a longa folha de serviços e as condecorações com que foi distinguido – mas resta-lhe uma certa mágoa por nunca ter recebido a Medalha de Mérito. Terminou o curso de piloto em 1967 e, como alferes, embarcou para Angola.
“Fui colocado na Esquadra 94 da Base Aérea de Luanda” – recorda José Queiroga. A comissão terminou em Dezembro de 1970, já tinha sido promovido a tenente. Regressa à Metrópole. É instrutor de voo, em Tancos. Ganha as divisas de capitão. Vai para Moçambique – de onde regressa em Maio de 1975. “Só fiz duas comissões. Não tive tempo para mais. A guerra terminou.” Passa pelas bases do Montijo, Tancos, Lajes e Sintra (como comandante). Passa pelo Comando Operacional da Força Aérea. Terminou o serviço activo como chefe de Operações do Estado-Maior-General das Forças Armadas. José Queiroga tem dois filhos: um é piloto da TAP. “Tenho uma Medalha de Ouro de Valor Militar, duas de Ouro de Serviços Distintos e duas de Prata com Palma. Até parece que não sou aviador” - diz José Queiroga com um sorriso. Fez cerca de cinco mil horas ao comando de helicópteros Alouette III, em Angola e Moçambique, em Tancos, onde foi instrutor, e na Base Aérea do Montijo.
Por:Major-general Queiroga, Piloto
de helicópteros, Angola (1967-1970) e Moçambique (1973-1975)
Publicado no Jornal Correio da Manhã de 23-o3-2008
Vou folhear. Compreendo o lamento do Senhor General.
ResponderEliminarO Sr. Gen Pil.Av. Queiroga é um Homem do seu tempo.Respeito.
ResponderEliminarTive o grato prazer de voar com este grande senhor durante bastantes horas em ocasiões diversas, durante a minha passagem como mecânico de helicópteros ( MMA ) pela linha da frente na BA 3 em TANCOS.
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