De Luanda a S.Tomé, correu tudo "na batata", ficámos lá uma tarde e uma noite, noite essa inesquecível, porque nos levaram a uma roça (de cujo nome já não recordo porque o sacana do Alzeimar anda a fazer das dele...hihihihi), onde fomos brindados com um lauto jantar e onde assistimos a danças das SãoTomenses, muito giras!!! (Parabens ao Miguel Sousa Tavares que escreveu o Romance EQUADOR que, embora seja uma obra fictícia, está muito próxima da realidade!)
A tripulação era composta por uma catrefa de "malandros" a saber: Comandante de bordo Cap. Pil.Av. Álvaro Mendes, Chefe da missão Cap.Pil.Nav. Orvalho; Copilotos Silvestre e Aníbal Pinho, Mecânicos de voo: Rendas e Alfaro, Radio-Telegrafistas: Caixinha Ramos e Neto e mais uns dois electricistas de cujo nome já não me recordo. Como Navegadores, o Alf. Ivo (filho do Gen. Ivo Ferreira) e o Cap. Pinheiro (paraquedas psicológico...mais adiante digo porquê.)
Descolámos à tardinha de S.Tomé, com destino ao Sal. Horas depois, anoiteceu e o Alf. Ivo começou a traçar as cartas de navegação para que pudéssemos seguir uma rota oceânica, evitando entrar, por erro de navegação, em águas territoriais que nos pudessem trazer problemas, dado que estávamos em guerra (embora não declarada) com países de África. E, aqui, a porca começou a torcer o rabo.
S.Tomé |
Descolou o Cap. Mendes e o Silvestre, com o mecânico Alfaro, estando o Neto encarregue das comunicações HF! A restante tripulação estava tentando "passar pelas brasas", no meio do ruído dos motores e do cheiro a gasosa dos vários depósitos, cheios e entre-ligados entre si, que nos permitiam fazer a viagem de longa distância, porque disso se tratava. A páginas tantas, o ambiente no cockpit começou a ficar complicado, a tripulação não se entendia e o Com. Mendes mandou chamar o Mec. Rendas. Tempos depois, o Com. mandou-me chamar, sentou-me no lugar dele, dizendo que "já não aguento estes dois, pá!!!" Apertei os cintos, rapei de um SG Gigante, acendi-o e comecei a deixar correr o tempo, calado, observando as reacções dos outros dois, Silvestre e Rendas...O Cmd. foi lá para trás dormir!
E é aqui que começa a "festa"; o Nord não tinha piloto automático operativo, de modo que tinha que ser pilotado à mão, coisa fácil, visto que isso era o "pão-nosso" de cada dia....mas o nosso amigo Silvestre, começa a lamentar-se, dizendo "estou farto disto", metem-me nestas m+++as, etc, etc, o Rendas também a mandar vir ( o Rendas "respigava" com o Cap. Álvaro Mendes, já desde os Açores!!! hihihihihi) e a navegação, tanto quanto me fui apercebendo, não estava a agradar-me. Cada vez que o Silvestre, que estava com a "palanca nas mãos" se dirigia e olhava para mim, o avião vinha para a esquerda; "ó pá, deixa-te de merdas e endireita a máquina"! Tantas vezes o gajo fez aquilo que lhe dei um berro, embora ele fosse mais antigo que eu, e tomei eu conta dos acontecimentos. Disse-lhe, o mal dele era sono, mandei-o lá para trás e disse-lhe que chamasse o Cap. Orvalho para o lugar dele!!!
O Orvalho chegou, sentou-se, apertou os cintos e eu ofereci-lhe logo um cigarro.
Cockpit do Nord |
Cap. disse-lhe, o ambiente está péssimo, por isso pedi que viesse para aqui pois, com as coisas estavam não iam dar bom resultado; logo de seguida, mandei o Navegador "dar uma curva" e que chamasse o Cap. Nav. Pinheiro. Assim foi: o Alf. Nav. Ivo foi dormir e o cockpit ficou "limpo"!!! Continuei a pilotar, direitinho, sem mexer (para não estragar), nem subir nem descer, nem andar às "voltas do Marão", tudo para não aumentar desnecessariamente o consumo e reduzir a autonomia.
Às tantas, já com o Cap. Nav. no cockpit, verifico, do meu lado esquerdo, através de buracos nas nuvens, uma quantidade enorme de "carneirinhos" no mar" ( ondulação curta e baixa, com muita espuma branca, indicando que estamos sobre relevo marinho junto à superfície e, por conseguinte, sinal de que estávamos junto à costa e, assim, MUITO FORA DA ROTA!!! Eu já tinha observado isso, no cockpit de um DC6, numa viagem de Lisboa para Luanda, via Guiné-Bissau, pouco depois de termos descolado de Bissau e guardei isso na memória!!!).
Falo para o navegador, dizendo o que se estava a passar, e ele diz-me que aquilo não era nada, blá,blá,blá, eu não gostei, respondi-lhe que estávamos fora de rota e porquê e o "marquês" teve a distinta lata de me dizer que ele é que sabia?! Ao que eu lhe respondi que, naquele momento, eu era o Comandante do avião, que tínhamos X horas de gasolina e que ele devia, rapidamente saber a nossa posição para corrigir a rota!!! Logo a seguir, sobrevoámos uma cidade, toda iluminada, volto-me para ele e disse, então sr Cap. estamos ou não fora de rota? E eu é que sou nabo e não percebo nada disto? Se o gajo tivesse um buraco enfiava-se por ele abaixo....e o Cap. Orvalho, muito calado e sorridente, a "apreciar o prato"...hihihihihihi!
"Volte já para a esquerda, para o rumo"....já não me lembro. Não volto nada, só volto para um novo rumo que me faça juntar à rota mais lá adiante, evitando que eu volte muito à esquerda e queime mais gasolina !!! Lá conseguiu rever a navegação, retomámos a rota muito mais adiante e, "por causa das moscas", resolvemos ir para Bissau (em vez do Sal); aí, já o Cap. Mendes ocupou os comandos, eu fui bater uma mini-soneca e o Orvalho aterrou com o cmt. Mendes.
BA12 Bissau |
Na Guiné havia uma invasão de mosquitos perigosos e toda a gente que lá aterrasse tinha que levar uma "enchofradela" de um químico qualquer para combater os efeitos da mosquitada...o Cap. Álvaro Mendes negou terminantemente, alegando que íamos para Lisboa, fechou as portas do Nord, reabasteceu e partiu para as Canárias, com o Silvestre a copiloto.
Las Palmas, Gran Canária. Clima quente! Turistas por todo lado, em especial alemães e holandeses. Grande importação de todas as novidade eletrónicas "dernier cri" (último grito) daquela época! O Caixinha Ramos, o Neto e outros, já "velhos habitués", trataram logo de arranjar alojamento para a tripulação e eu, maçarico, alinhei com eles, que remédio !!! Fiz umas compritas - o dinheiro em escudos de Portugal também não era muito - e eles compraram à fartazana, pois iam bem recheados e porque já eram, de há muito, conhecidos dos fornecedores. Estivemos lá 2 dias, o avião ficou na Base Aérea de Gando, da Força Aérea Espanhola (Ejército d'El Aire español), do lado direito da pista 03/21, mesmo em frente à aerogare civil, que ficava do lado esquerdo da mesma pista! Mal sabia eu que, anos mais tarde, iria aterrar lá centenas de vezes, (nessa mesma pista e na outra, paralela, que entretanto foi feita), em Boeing 737 !?
Compras feitas, avião com depósitos cheios, fusos do avião cheios de caixas de whisky e aparelhagens estereofónicas (estas para o Gen. Ivo Ferreira - estava em Alverca à espera do avião.....) e lá vamos nós para Gando, dispostos a descolar, rumo à terra lusitana....nunca pensando no pior......motores a trabalhar, rolagem até à pista 03, avião carregadíssimo e bastante inclinado para trás (pudera!!!), Cap. Mendes aos comandos e cá o "Je " à direta: regulação de entrada de ar do filtro de óleo dos motores em funcionamento mas, o do motor 1(esquerdo), queimou, ficando na posição fechada! Bronca, motor cortado, "flaps" em baixo, reactores ligados, descolagem abortada e... novamente na Base da Gando.
Outra vez na cidade, já com os tostões muito reduzidos (tinhamos andado a comer em bons restaurantes) mas, desta vez, passamos a comer tapas...hihihihihihihi...nos 2 primeiros dias fomos almoçar todos ao Restaurante El Raio. Veio o cardápio e aparece lá "fabada portuguesa" !? "Malta, diz o Cap. Mendes, favas à Portuguesa !!!!! Escusado será dizer que alinhámos todos nas "favas"...o pior veio depois: estava uma mesa ao nosso lado, cheia de alemães a enfardar uns bons petiscos. Minutos depois, aparece o criado de mesa com uma enorme travessa - assim tipo "barco do amor" - cheia de feijocas brancas, com cerca de 3cm de tamanho, tendo, à laia de embelezamento, uma catrefa de rodelas de um chouriço manhoso, cortado enviesado, que o jovem coloca em cima da mesa ?! À minha queixa dizendo-lhe que aquela coisa não era favada, o magarefe não foi de intrigas e responde "si, si, esso és como se hace ayá en Portugal"...dei-me vontade de o comer vivo logo ali !!!
Mais 3 dias de espera para que a FAP nos enviasse um motor novo; seguiu via TAP, em B727 e foi necessário o bom ofício do Coronel comandante da Base de Gando para que a Alfândega liberasse o dito motor !!!
No dia seguinte, eram 8 horas locais e já tínhamos o motor montado!!! "Fogo à peça", tudo OK, rolagem até à pista, alinhar, motores em potência de descolagem e lá vamos nó: uau,uau,uau,uau,uau,uau,uau,ua, pista a chegar ao fim e, a cerca de 100m aí vai ele para o ar !!!!!
Que alívio !!! Aquele velho "paquiderme", lá se elevou no ar, a muito custo, sempre com o "cú" traseiro, até eu aterrar em Alverca; foi a minha última vez que pilotei aquela máquina fabulosa!!! Acho que era o 6403 !!!
Na TAP |
Quero aqui deixar umas palavras de agradecimento a toda a tripulação, que participou comigo nesta minha última aventura ao serviço da FAP e relembrar aqui, com profunda saudade, aqueles que..."por obras valerosas, se foram da Lei da Morte libertando", como disse o Grande Camões: Maj.Pil.Av. Álvaro Mendes, falecido na USA, quando era Adido Aeronáutico, em Washington; Cor. Pil Nav. João Orvalho (o homem que desenhava aquela figura que era o "Zé Voador" na revista da FAP "MAIS ALTO"; o R/T Neto, cujos restos mortais acompanhei à última morada em Queluz; Cap. Pil. Nav Silvestre; Mec. Alfaro e, por desconhecimento, fico na dúvida se algum outro camarada daquele grupo já terá falecido.
A todos vós, que acabastes de ler-me, tenho a dizer que toda a minha prosa aqui apresentada é verdadeira, faltando, quiçá aqui e ali, um ou outro pormenor digno de registo mas, como podereis imaginar, a memória perde-se no debandar do tempo.
Por: Aníbal Pinho
Piloto 60/70, na FAP; de 71 a 2000 na TAP (em 97 reintegrado na FAP)
Gostei bastante. O "je" e os "hihihihihihi" são uma delícia, bem como o facto de a restauração escolhida, no segundo dia, ser muito semelhante à de centenas de milhar de portugueses, no hoje. Obrigado. Soube bem.
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