quinta-feira, 7 de maio de 2020

A ATERRAGEM NO MILHEIRAL E O SOBA CAXITO


Certa ocasião, voando do Luso para Teixeira de Sousa, o motor do avião, um DO 27 
começou a aquecer demasiado e o mecânico Isidro, mais conhecido por "Meirim", que me acompanhava, diagnosticou uma fuga de óleo que nos forçou a aterrar de emergência no mato, algures para os lados de Lumege.
Seria o que Deus nosso Senhor 
quisesse! Escolhemos um milheiral com a plantação ainda rasa, a aterragem correu bem e até conseguimos comunicar ao AB4 a respectiva localização.
O problema era que estávamos no meio de nenhures e naquela altura 
ainda não havia helicópteros a operarem na região, logo o mais provável seria termos de nos aguentar por nossa conta e risco durante uns dias até que uma companhia do Exército nos fosse resgatar.
Não sabendo se estavam em território amigável ou hostil, decidimos afastar-nos do avião transportando o kit de sobrevivência, as rações de combate e os cantis da água. Foi nessa altura que vimos vir ao nosso encontro um grupo de locais com ar amistoso e sorridente: representavam o soba local, que convidava os homens do ar a aceitarem a sua hospitalidade na sanzala ali próxima.
Aliviados, aceitámos o convite e 
fomos agradavelmente surpreendidos pela hospitalidade do soba Caxito, que era um homem cheio de dignidade e de histórias.
Ancião fiel ao regime, ostentava mesmo orgulhosamente uma bandeira portuguesa que lhe 
tinha sido oferecida pelo anterior Presidente da República Craveiro Lopes num encontro atestado por uma fotografia em que o chefe de Estado posava com o velho soba, na altura bastante mais jovem.
Enquanto trocávamos palavras cordiais com o homem grande daquela povoação, as mulheres preparavam com esmero uma refeição de moamba com dendém que seria acompanhada com hidromel, que circulava numa cabaça partilhada por todos.
Aparentemente em nossa honra
, seguiu-se um impressionante batuque pela noite dentro, num terreiro ao ar livre iluminado pelo calor das fogueiras: uma incursão ao que África tem de mais profundo e autêntico.
Para mim, 
foi uma das experiências mais intensas de sempre. O impacto do bater dos pés no solo e a dança dos corpos ao ritmo frenético dos batuques em aparentes transes que ficaram por explicar (seriam ervas?) emanavam um poder quase hipnótico que a todos embalava, e que se foi esbatendo já altas horas quase sem darem conta, à medida que os dançarinos se iam cansando e recolhendo. Todos beneficiaram então do contrastante silêncio da noite, e piloto e mecânico compensaram então as emoções do dia num merecido descanso, lado a lado em duas enxergas de verga numa cubata que gentilmente lhes havia sido destinada.
No dia seguinte, era altura de agir com pragmatismo: a forma mais fácil de sairmos dali era aproveitar o facto de o avião estar incólume, mandar vir por «encomenda aérea» o material necessário para reparar a avaria, limpar a "pista" para conseguirem descolar e seguir viagem sem precisar de esperar por ninguém.
E assim foi: contactada 
a Base, lá apareceram caídos dos céus uma lata de óleo e um novo tubo, as mulheres da aldeia foram mobilizadas para alisarem a pista e a dupla de homens do ar despediu-se com carinho e amizade daquela gente boa que os tinha recebido de maneira exemplar.
Dois anos mais tarde, voando um DO, estava em escala no Jimbe, onde se interceptavam as fronteiras de Angola, Congo e Zâmbia, quando fui abordado por um DGS que precisava de transportar um prisioneiro para o Luso, para ser interrogado. O inspector acabou por ficar no Cazombo e eu retomei o voo rumo ao Luso com o prisioneiro que continuava sentado algures lá atrás.
Ainda mal tinha levantado voo e sobrevoava 
a povoação quando senti a pressão provocada pela abertura da porta do avião: depois de uma alarmada troca de olhares com o mecânico que ia a meu lado, pela primeira vez olho para trás e o que vi deixou-me estarrecido, o prisioneiro estava sentado à porta do avião, de costas para o vazio que se abria no exterior, com as mãos amarradas atrás das costas, e reconheci-o de imediato: era o soba Caxito, que tão bem nos recebera na sequência da aterragem de emergência no mato, dois anos antes.
O homem 
reconhecera-me também, mas não quisera pedir-me ajuda e, com um misto de resignação e dignidade no olhar, perante o meu olhar horrorizado a prever o desenlace a que não consegui obstar, deixou-se cair.

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4 comentários:

  1. Mais uma bela estória, contada com a graça e leveza do nosso sempre Cap. (Major) Acabado.

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    1. Momentos destes nunca serão apagados da nossa historia. Com a devida vénia vou partilhar em OUTROS TEMOS. josé Manuel Leite Sá

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  2. A história do Comandante é triste. O amigo que o ajudou deixou-se matar e não foi ajudado. Que pena...
    Albertino Silva
    Foi Piloto em SerpaPinto 1968/1971.
    albertino.nj@gmail.com

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  3. Passagens na guerra que para quem lá não esteve dificies de acreditar e que marcam com muito pesar para toda a vida o ser humano.

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