quinta-feira, 25 de julho de 2019

A QUEDA DA REPÚBLICA DO BIAFRA



Contados cinquenta e dois anos desde a queda da República do Biafra, o dia 15 de janeiro de 1970 marca indelevelmente o fim de um sonho de um pequeno enclave entrincheirado na República Federal da Nigéria que um dia ambicionou ser independente. 
A 30 de maio de 1967, o Biafra decretou unilateralmente a sua independência pela voz de um jovem oficial do exército nigeriano, que fruto da sua superior educação académica e militar soube inteligentemente manipular um nicho da população nigeriana através de uma retórica ideológica centrada em disputas étnicas ancestrais. 
Não demorou muito para que as sangrentas disputas internas entre as forças militares federais e as forças armadas biafrenses angariassem apoios e manobras silenciosas e secretas de alguns países da região e das potências colonizadoras, que muito contribuíram para o massacre de centenas de milhares de cristãos que queriam forçosamente ficar independentes dos maioritariamente muçulmanos do norte do país. 
Portugal teve um papel discreto nesta efémera existência do Biafra, a contrabalançar com a acção bastante activa e inteligente da França, a par com um conjunto de organizações humanitárias de todo o mundo e do próprio Vaticano. 
Do lado oposto da barricada, em apoio à República Federal da Nigéria, encontrava-se a antiga potência colonizadora, o Reino Unido, o Egito e a União Soviética, que num quadro geoestratégico e geopolítico não podiam abdicar dos seus superiores interesses naquela importante região de África. 
O nível de conflitualidade entre uma facção representada pelo terceiro maior grupo étnico, os Igbos, que povoava a parte leste do país, e os maioritariamente muçulmanos Haussa do norte, com o apoio dos Yoruba do oeste, traduziu-se na morte de largas centenas de milhares de idosos, crianças e mulheres que pereciam pela fome imposta pelo bloqueio militar ou pelos bombardeamentos das tropas nigerianas. O bloqueio naval e terrestre por parte das tropas federais foi extramente fácil de consumar, pois as forças armadas biafrenses não possuíam nem dimensão nem capacidades adequadas e em número para fazer face a este constrangimento. 
A catástrofe humanitária começou rapidamente a alastrar-se por entre a jovem república, onde a falta de alimentos e medicamentos atingiu uma dimensão tal que se não fosse mitigada a breve trecho o fim estaria para breve. 
A única solução, conforme gizou o líder do Biafra, o tenente-coronel Chukwuemeka Odumegwu Ojukwu, era contornar o bloqueio do seu arquirival e presidente da República Federal da Nigéria, o tenente-coronel Yakubu Gowon, por via aérea. Quer através da edificação e sustentação de uma força aérea que pudesse desequilibrar o ascendente naval e terrestre dos nigerianos, quer pela operacionalização e financiamento de voos regulares de aeronaves com abastecimentos provenientes de São Tomé e Príncipe. 

E foi neste capítulo que eu entrei em cena, ao emprestar as minhas perícias e capacidades à Força Aérea do Biafra para conduzir missões de ataque às tropas federais que teimavam em tomar de assalto a cada vez menor implantação territorial biafrense, e por outro lado, para garantir que as aeronaves nigerianas não perigassem os voos humanitários e as infraestruturas aeroportuárias de interesse estratégico. A força da adrenalina e, por inúmeras vezes, a estranha sensação de medo que rapidamente se convertia em bravura permitia que as missões fossem cumpridas mesmo com os escassos meios e condições bastante adversas na área de operações. A forte convicção que aquelas crianças indefesas e esfomeadas mereciam um país que zelasse pelo seu futuro era o elemento motivador em todas as missões aos comandos das diversas aeronaves que tripulei nos céus do Biafra e da Nigéria. 
A ampla cobertura mediática do conflito à escala global, conjuntamente com o apertadíssimo escrutínio das principais organizações internacionais, constituiu também uma novidade sem procedentes à época. 
Na fase final do conflito, em finais de 1969 e início de 1970, a catástrofe humanitária no Biafra assumia dimensões sem procedentes, estimando-se que cerca de três milhões de pessoas perderam a vida, e outros tantos deambulavam doentes e famintos em campos de refugiados improvisados. Nesta triste e desumana condição contavam-se milhares de crianças, muitas delas órfãs, em condição famélica, doente e pesarosa. Eu tive oportunidade de as ver e fotografar. E, ao recuar no tempo, é como se ainda hoje mesmo estivesse a ver os seus olhos esbugalhados, expressões atónitas e aturdidas pela fome e pelo rebentamento das bombas ao seu lado, evidenciando um ar de uma infinita tristeza e desengano, incapazes até de chorar e exteriorizar o seu sofrimento. Os braços delgadíssimos e as pernitas, quase como as das aves, da grossura do próprio osso, os ventres ostensivamente dilatados e a destacarem-se como barrigas de vento. 
No verão de 1969 estávamos reduzidos a duas pistas, Uli e Uga. Para voos a chegar, Uli operava apenas de noite, oficialmente entre as 17h00 e as 5h00. Uga ficava 27 kms a nordeste de Uli e era usada somente para fins militares. Tanto uma como outra eram estradas larguitas, mas pistas muito estreitas. Uga era a base da nossa parelha de T6. Era dali que saíamos para ataques em objectivos militares. Se as aeronaves MiG andassem por perto, podíamos usar uma pista de terra batida em Mbawsi, a sul de Umuahia. Éramos bombardeados muitas vezes, mas sempre sem sucesso, pois tínhamos os aviões bem camuflados dentro da floresta. Como costumávamos dizer, as bombas não eram para nós. «O di naka Chukwo.»

Artur Alves Pereira

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