quinta-feira, 18 de julho de 2019

O RÁDIO FAROL E ARREDORES.

Localização do Rádio Farol assinalado na foto.

O Rádio Farol era pretensamente um sistema de ajuda electrónica de orientação de aeronaves para a pista, posicionando-se no seu enfiamento. Foi um posto colocado em local ermo com antena exterior dotado de sinalização luminosa quando em funcionamento. Estava situado a cerca de 6 kms da Base.
O edifício do Rádio Farol
O edifício era construído em alvenaria muito rudimentar, comportava uma área de cerca de 5x5mts, dividida em duas partes; uma onde estava instalado o gerador Dorman e os bidões de combustível e no outro o equipamento electrónico de alta frequência, uma cama tropeira, um lavatório, uma sanita, uma mesa metálica com tampo em fórmica de cor verde/jade e um telefone que nos ligava à Base e à Cidade. Nessa mesa processavam-se as refeições, leituras e escritas.
A implantação do soalho era sobre-elevado para permitir o acesso aos cabos de ligação dos terminais de terra, distribuídos no solo em "aranha" circular num diâmetro de cerca de 40 metros.
O funcionamento do Rádio Farol começava ao alvorecer do dia e acabava no ocaso, mas em termos práticos resumia-se entre as 7:00 e as 19:00 horas. Por vezes a torre de controle contrariava essas rotinas por motivos operacionais.
Durante a noite a luz possível era uma lanterna. Quando se pensava que a noite dava lugar á calmaria, tal era um puro engano; começavam as loucas correrias dos ratos "kileiros" que chiavam toda a noite, penduravam-se em tudo, desde o equipamento ao fio telefónico, e caiam em cima da cama onde só tínhamos a protecção da famosa manta azul. Com o tempo habituá-mo-nos, mas tínhamos de esconder objectos pequenos, como por exemplo as meias, senão desapareciam. Também existiam outros animais nojentos, percevejos, osgas, melgas, mosquitos e rastejantes. Enfim, parecia uma câmara de castigo medieval.
A escala de serviço era praticamente de dez em dez dias, mas em Julho e Agosto tínhamos de alinhar mais amiúde, devido aos camaradas que  entravam de férias.
Quem desempenhava este serviço eram os Especialistas MELEC, tanto de centrais como de equipamentos.
Estrada de ligação da cidade à Base

Durante o dia a actividade era escassa, para além da escuta
ou leituras limitava-mo-nos a observar o movimento dos carros de e para a Base. A via passava a uns 50/60 mts do rádio farol. Como tinha sido implantado, desde o inicio, um furo artesiano, fornecíamos água aos nativos da sanzala próxima.
O fornecimento da água

Havia muita tranquilidade, o que originava baixarmos a guarda do equipamento e de nós próprios. Agora com a devida distância temporal, podemos afirmar que a guerra na Lunda era a do "alecrim e mangerona" (liamba !). Eles, IN, se quisessem apanhavam-nos à mão...mas não era só ali ! 

Em Tete, mais ou menos na mesma altura, foram mortos em duas emboscadas dois camaradas da FAP. O assassino do Savimbi era natural de Henrique de Carvalho e o pessoal do MPLA movimentava-se pelas sanzalas e pela cidade...nós sabíamos isso.
Uma vez estava de serviço o Filipe Raimundo, que após ter jantado e fechado as portas metálicas, uma orda de miúdos, ou não, deram em bater nas portas no intuito de assustar quem lá estivesse, fizeram-no mesmo sabendo que tínhamos uma FBP !
Havia duas rotinas diárias; uma a mudança do Melec de serviço e a das refeições. No começo tudo era servido com fartura, desde o pequeno almoço, em que exageravam no pão e manteiga, assim como ao almoço e jantar, mas com uma qualidade lastimável. Esta situação só mudou quando saiu de gerente das messes o Ten. MAEQ e sargento paraquedista, nomeados pelo 2º. comandante Major Ladeiras, que controlava as messes, os combustíveis, a cerâmica e a agro-pecuária, era um habilidoso profissional, maningante, que nasceu para a a "arte" nos anos 50 em S. Jacinto.
O comandante Ladeiras participando num churrasco promovido pela Esqª. de Abastecimento.


Em meados de 1971, teve um erro crasso, ao nomear para a gerência das messes o Cap. Amarino, um senhor em classe e de um profissionalismo a toda a prova. Apesar de segundo dizia não perceber nada do assunto, era de Abastecimento mas a chefia da Esquadrilha estava ocupada pelo Cap. Maia, aceitou a missão. Adquiriu equipamentos novos para a cozinha, comprou louças, mandou fazer mesas e cadeiras para os refeitórios, mudou os procedimentos, tanto na confecção da alimentação como do serviço, chegando perante a admiração geral a publicar as ementas para o próprio dia e para o seguinte. Como exemplo:
Sopa Juliana, Carne à Ville Roi, Frango à indiana, Ragu de vitela, as messes pareciam restaurantes concorrentes com os melhores da cidade.
As noites no Rádio Farol não eram sempre monótonas. Por vezes quando estava de serviço nocturno a telefonista da cidade, a filha do Firmino, mestre de obras "rateira", que era mais conhecido por ser avaliador e receptador de diamantes (kamangas). A pequena telefonista teria muito tempo livre na actividade de tira e mete cavilhas, já que a central era manual. Assim, o tédio apoderava-se dela e tinha a boa lembrança de nos ligar, com aquela voz langorosa e sabida explorava a solidão do cabo especialista, com conversas atrevidas incentivando e controlando o movimento das mãos, e só parava quando se ouvia de ambos os lados um som cavo de satisfação. Posso afirmar, seguramente, este foi o início das linhas eróticas, que muito mais tarde, nos anos 90, tanto dinheiro levaram aos paspalhos, que se queixavam que as contas do  telefone subiram exponencialmente sem razão aparente.
Na mesma linha, os TS, com a manteiga sobrante do pequeno almoço, inventaram actividades inspiradas no kamasutra; o Gil Lemos e o D.R. untavam o tampo de fórmica da mesa de serviço para provocar movimentos de vai-vem sem atrito.
Sanzala do Rádio Farol, mulher preparando a fuba

Na orla do Rádio Farol havia uma grande sanzala, que se estendia para a cidade em direcção a norte. A etnia principal era o Kioko, povo de origem guerreira, originário do Zaire e Zambia, que á custa de constantes guerras fratricidas se instalaram na Lunda, por esse motivo o dialecto local era o kioko. As casas, mais propriamente ditas as cubatas, eram feitas de blocos de adobe com capim e algumas pedras para lhes dar maior solidez. Os habitantes viviam ainda num estado semi-primitivo, eles ainda caçavam com arco e flecha, elas tratavam das lavras e moíam a fuba, sempre com os filhos ás costas. Algumas dedicavam-se à "prostituição", outras davam o seu corpo de livre vontade, e outras eram aquilo a que chamávamos sérias.
Batuque

Tive a felicidade de assistir a uma batucada daquelas que começam quando o sol se põe e acaba pela manhã. O som dos tambores era emitido a quilómetros e ao pé dos "tocadores" não se apercebia de tanto ruído. Os tambores, alguns grandes, tinham músicos dos dois lados com fogueiras a aquecerem as peles. No meio, os dançarinos ataviados com motivos desconhecidos evoluíam descalços, parando para beber uma bebida fermentada mal cheirosa que os deixava em êxtase.
EPILOGO
O Rádio Farol e as actividades que o delimitavam suscitaram-me reflexões positivas, mas também negativas. Fiquei com a certeza que o homem não é só um animal social, como disse Platão, é também um bicho com muitas atitudes irracionais. Tem hábitos diferenciados que vão de posições diametralmente opostas, até à ignorância programada.
Reparei nos conquistadores baratos, que por 20 "falancas" experimentavam os seus dotes dominadores nas nativas, e não era raro chegarem-lhe a roupa ao pelo, que coitadas, porque roupa quase não existia, sofriam mais. Dormiam nas cubatas, cheiravam horrivelmente. Haviam os normais, que apenas queriam satisfazer o seu desejo carnal porque o corpo assim o pedia, com a sofreguidão esqueciam-se da protecção e sem licença apareciam as gonorreias e outras indecências que eram remediadas com Hipopen de 1 milhão de unidades.
A última classe era composta por aqueles que não se atreviam a quaisquer práticas sexuais, quer por abstinência premeditada, quer por nojo, quer por imperativo de consciência.
Admito que era difícil abstrair da situação real. As nativas que mais visitavam o Rádio Farol eram a Rosa e a Genoveva, ambas vítimas da situação criada. A primeira tinha dois filhos mulatos, um deles rapaz chamado Jorge, com as barrigas muito dilatadas e olhos tristes. Ambas precisavam de dar de comer aos filhos, que quando homens não poderiam ser felizes.
O nosso Filipe Raimundo resume este drama nos seus dois poemas. 




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