quinta-feira, 4 de outubro de 2018

A PRAXE DE DOIS JOVENS FURRIÉIS PILOTOS

Edifício do Comando Operacional

Não resisto a contar um episódio engraçado, revelador da boa camaradagem e espírito de corpo que é apanágio da Força Aérea, que tive a feliz oportunidade de assistir ao fim de poucos dias de ter chegado ao AB 4. Foi assim:
- Um dia de manhã dirigi-me ao Grupo Operacional (este órgão coordenava e determinava as operações aéreas para o esforço da guerra em colaboração com as forças terrestres), a fim de consultar os mapas geográficos da região para apoiar o meu trabalho topográfico.
O comandante do Grupo era o então capitão piloto-aviador Neto Portugal, irmão da esposa do general Ramalho Eanes.
Naquela manhã, ao chegar à entrada principal do edifício, encaro com o capitão Neto Portugal com uma vassoura na mão a fazer que varria o átrio. Ao passar por ele, pois conhecia-o bem, fiz a respectiva continência cumprimentando-o sem ligar à vassoura que tinha na mão. Em vez de me corresponder à continência põe o indicador da mão direita no nariz a mandar-me calar e seguir o meu caminho. Surpreendido, reparo então que, em vez de ter os galões de capitão nos ombros, tinhas as divisas de 1.° cabo. Logo desconfiei que estava para haver ali alguma praxe. Segui e, ao entrar na secretaria, deparo com os oficiais e sargentos, todos meus conhecidos, com os galões e as divisas trocados! No meio deles estavam dois furriéis pilotos imberbes, tímidos, de uniforme n.° 1, a fazer a apresentação formal. Tinham chegado na véspera da Metrópole onde concluíram o curso de pilotagem. À entrada já tinham passado pelo cabo (capitão) que logo se pôs em sentido ao mesmo tempo que ia resmungando mal da tropa. Lá dentro o meu colega 1.° sargento Sousa com os galões de Capitão e o brevet de piloto aviador ao peito: os dois sargentos com galões de tenente e os oficiais e o cabo com divisas de sargento.
Perante aquele cenário deu-me vontade de rir, mas para não estragar a praxe, aguentei e até colaborei tratando os sargentos com galões por tenentes. Entretanto, os dois furriéis, um por um, com todo o rigor, em sentido foram fazendo a apresentação aos "oficiais" como manda o Regulamento.
Concluída a apresentação formal, o capitão (1º.sargento) chama os dois furriéis para a sala de operações onde, perante um grande mapa da zona de guerra, lhes explica o ponto da situação, extremamente complicada por falta de pilotos e que, por isso, ao outro dia de manhã cedo, tinham já uma missão de ataque aéreo, cada um pilotando um avião T-6.
Os furriéis ficaram da cor da cera, quase entraram em pânico, lamentando-se que mal tinham acabado de chegar da Metrópole onde fizeram o curso de piloto à pressa e logo são informados para entrar em combate ao outro dia da chegada!
O "capitão" peremptoriamente respondeu:
- Meus senhores, aqui estamos em guerra e não há tempo a perder! Ordens superiores.
Terminado o briefing o capitão mandou os furriéis mudar de farda e, depois do almoço, apresentarem-se no Grupo Operacional com o fato de voo.
Durante toda esta encenação o cabo (capitão Neto Portugal) andava por ali a queixar-se da tropa e a resmungar da sua situação ajudando a conferir ainda mais credibilidade à.praxe preparada.
O acaso tinha-me levado àquele Comando do Grupo Operacional e, por isso, tive a ocasião de assistir e até ajudar à brincadeira que, embora se tratasse duma apresentação séria e formal dos jovens furriéis, tratava-se tão somente de uma simples praxe. Já não vi o que se passou da parte da tarde quando os furriéis voltaram ao Grupo Operacional e encontraram os galões e as divisas nos ombros dos militares correctamente.
Contaram-me mais tarde.
Neto Portugal, numa sessão de fados
no Clube dos Especialistas
Os atarantados furriéis pilotos, primeiro ficaram baralhados e confusos, olhando para uns e para outros, o capitão parecia-se com o cabo, o 1°. sargento com o capitão, etc.. Depois, passados uns longos minutos desta estupefacção, é que se aperceberam que tinham levado uma valente praxadela.
A reacção foi espontânea: rebentaram todos numa gargalhada geral com os furriéis a serem abraçados pelos oficiais e sargentos numa grande manifestação de camaradagem, amizade e espírito de corpo como, aliás se cultiva na Força Aérea Portuguesa.
Nesse dia, à noite, para comemorar a chegada ao AB 4, os dois furriéis pilotos custearam uma caixa de camarões e umas grades de cerveja para todo o pessoal do Grupo Operacional, para onde eu também fui convidado. Petiscou-se, bebeu-se e conversou-se animadamente, em franca e aberta confraternização, finda a qual todos ficamos amigos e unidos no mesmo espírito de missão que nos tinha levado àquela Base situada nos confins do nordeste de Angola em pleno distrito da Lunda.

Por:











Agradecemos ao Sr. Major Serafim Esteves, nos ter permitido transcrever este texto do seu livro "As Memórias do Major".


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