quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O LEVANTAMENTO TOPOGRÁFICO DAS UNIDADES AÉREAS DO LESTE DE ANGOLA

Trabalho de topografia no Luso


A 10 de Março de 1971, pelas seis horas, marchei, por via aérea, no avião Noratlas - conhecido por barriga de ginguba derivado ao seu formato bojudo - para a Zona Militar Leste (ZML), concretamente, para o Aeródromo de Recurso do Luso. Acompanhou-me um técnico serralheiro civil das oficinas da Base a fim de, com o teodolito ir fazer a correcção do alinhamento e nivelamento dos portões do hangar, pois estes funcionavam mal ao deslizar nas calhas e nos guiamentos. Com as minhas observações topográficas foi possível detectar os desvios da estrutura metálica e depois consertá-la.
Entretanto o Director da Delegação das Infra-estruturas decidiu, finalmente, enviar-me, como topógrafo, para o leste de Angola a fim de ali efectuar o levantamento topográfico das unidades aéreas.
Recebida a ordem através do capitão eng.° Escarduça, chefe da Repartição da Topografia, preparei todo o material necessário desde teodolito, nível, tripé, miras, fitas métricas, papel vegetal transparente, réguas, escalímetros, transferidor, caderneta de taqueómetro, caderneta de nivelamento, estirador, mapa geográfico de Angola, etc..
Tudo em ordem de marcha, no dia 16 de Agosto de 1971, pelas seis horas da manhã, com armas e bagagens, meto-me no avião Noratlas e descolo da Base de Luanda para fazer cerca de três horas de voo até ao Aeródromo Base n.° 4 (AB4) de Henrique Carvalho, hoje Saurimo.
Objectivo fazer o levantamento topográfico da Base e dar apoio aos trabalhos das obras ali em curso.
Aterrei pela primeira vez no AB4 com todo o material topográfico necessário a minha missão.
O Aeródromo Base N.°4 situa-se algures no Distrito da Lunda, também conhecido pela região dos diamantes, numa planície imensa e deserta, uma zona isolada distante da cidade de Henrique Carvalho cerca de 7 quilómetros. Foi implantada em 1963 e dela dependiam os seguintes Aeródromos de Manobra:
- Aeródromo de Manobra n.° 41, em Portugália
- Aeródromo de Manobra n.° 42, no Camaxilo
- Aeródromo de Manobra n.° 43, no Cazombo.
Em 1971, os meios aéreos destacados no AB4 para fazer face à guerra que se travava, eram os seguintes:
- PV-2, avião de bombardeamento e de apoio às forças terrestres
- T-6, avião de apoio próximo e ataque ao solo
- DC-3 - Dakota, aeronave de transporte e de ligação
- DO-27, avião ligeiro de reconhecimento aéreo e observação
- Allouette III, helicóptero utilizado em operações heli-tanportadas e no transporte de feridos.
Após a minha chegada fiz a apresentação formal no Comando da Base entregando a guia de marcha na Secretaria. Disponibilizaram uma habitação nos alojamentos de sargentos com quarto de dormir e gabinete de trabalho. Foi neste amplo espaço que guardei todo o material topográfico e montei o estirador destinado ao desenho da planta da Base. A minha actividade era totalmente independente do Comando e não tinha prazo para apresentar o meu trabalho na Delegação de Infraestruturas em Luanda.
O AB4

Depois de instalado, comecei por fazer um reconhecimento cuidadoso da área do aquartelamento e espaços envolventes. O terreno, sensivelmente plano, formava um rectângulo com de arame farpado vigiada dia e noite pelo militares da Polícia Aérea. Dentro desta zona vedada trabalhavam e viviam cerca de 800 militares e civis. O aquartelamento englobava instalações do Comando, operações aéreas, hangares e placas de estacionamento das aeronaves, oficinas de manutenção, armazéns do material, camaratas dos soldados, cozinhas e messes, alojamentos de oficiais e de sargentos, central geradora de electricidade, depósito de água, capela, campos de futebol, parada e arruamentos. Ainda dentro da Base funcionava também um terminal da aviação civil. Somente a pista de descolagem e aterragem das aeronaves ficava fora da zona vedada. Afastada cerca de um quilómetro da Base ficava a área dos paióis fortemente vedada e guardada e que também tive de fazer o levantamento topográfico.
Para cobrir toda a área da Base com uma rede trigonométrica foi necessário implantar 34 estações assinaladas com estacas correspondentes aos vértices dos triângulos da rede poligonal para abranger todo o terreno. Um trabalho complexo e de grande envergadura que levou mais de quatro meses, com o inconveniente de os três soldados meus ajudantes terem de ser preparados e instruídos por mim.
Normalmente de mês a mês, à quarta-feira, voava para Luanda visitar a mulher e filhos, estes ainda crianças e regressava a Henrique Carvalho passada uma semana.
O AM42 - Camaxilo

A partir desta Base voei num avião Dakota para o Aeródromo de Manobra n.°. 42 (AM 42) - Camaxilo a fim de fazer o levantamento topográfico. 
Este aeródromo fica em pleno mato a cerca de oito quilómetros duma sanzala denominada Camaxilo, a noroeste de Henrique de Carvalho próximo da fronteira com o Zaire. 
Junto àquela sanzala estava destacada uma companhia do Exército.
No AM 42 estavam colocados 38 militares da Força Aérea, a maioria Polícia Aérea (PA) comandados por um Alferes Miliciano de nome Fernandes. Quando aqui cheguei passei a ser o segundo militar mais graduado, como primeiro-sargento. Os outros graduados eram dois sargentos da PA, um Especialista de Comunicações e outro Meteorologista.
O aquartelamento vedado com arame farpado, uma área de 350 por 280 metros, compunha-se dos seguintes edifícios pré-fabricados:
- Comando e dormitório do oficial e sargentos
- Camarata da Polícia Aérea e arrecadação de material de guerra
- Cozinha, refeitório e bar
- Central geradora de electricidade
- Armazém de combustíveis.
Estive aqui quatro semanas para executar o trabalho topográfico. Tenho em meu poder uma cópia em papel vegetal da planta que então desenhei. É uma recordação que muito estimo pois, foi uma missão cumprida em circunstâncias adversas como passo a relatar:
- Na segunda semana, após a minha chegada, esgotaram-se os géneros alimentícios na dispensa. Como consequência passamos a ser alimentados, durante duas semanas, apenas de atum com batatas cozidas e... água, visto que as bebidas - vinho e cerveja - também se tinham esgotado.
Não obstante as mensagens, via rádio, que o Alferes mandava para o AB 4, pedindo abastecimento de comida, esta não aparecia. O AB 4 respondia que não havia aeronaves disponíveis em virtude de estarem envolvidas nas operações aéreas no teatro de guerra.
Esclareço que, dado o nosso isolamento, só tinha-mos contacto com o exterior por via aérea.
Os militares andavam descontentes, passávamos fome e o Alferes andava desesperado, sentindo-se abandonado. Conversava muitas vezes comigo sobre esta situação difícil. Um dia de manhã vem ter comigo e pede-me para o acompanhar numa viatura, escoltados por três Soldados PA armados de G-3, para irmos à sanzala de Camaxilo procurar galinhas ou porcos para comprarmos e trazer para nos alimentarmos.
Quando chegamos à sanzala, procuramos pelo Soba que nos recebeu com uma aprumada e perfeita continência militar, ao que nós correspondemos e se colocou à disposição do "meu alferes", para o atender. Logo que o Alferes apresentou o que queria, o Soba ficou muito triste e disse que ali não tinham o que pedíamos e pediu muita desculpa por nada poder fazer.
Desiludidos, regressámos ao Aeródromo e a única solução era "bombardear" o AB 4, via rádio, com pedidos dramáticos de comida.
PV2 no Camaxilo
Até que um dia, por volta das dez horas, aterra um avião bombardeiro PV-2 carregado com géneros alimentícios. Assim que o avião aterrou e se dirigiu para a placa de estacionamento, com todo o pessoal ansioso e eufórico à espera, os géneros logo foram descarregados e levados para a cozinha. Fomos abastecidos de carne, peixe, legumes, arroz e massa, fruta e bebidas: vinho e cerveja.
O cozinheiro entrou logo em acção. Os militares sentaram-se nas mesas do refeitório, que era ao mesmo tempo o bar, começaram a comer e a beber, desde aquela hora até às duas da manhã!
Com este "ataque cerrado" para vingar a fome de duas semanas, quase que íamos ficando outra vez sem comida.
Eu, pessoalmente, emagreci cerca de quatro quilos e mais tarde, quando fui visitar a minha família a Luanda, a minha mulher até ficou preocupada com o meu emagrecimento.
Concluído o levantamento topográfico, peguei no material e regressei ao AB 4, num avião PV-2. Tinha vivido no Aeródromo de Manobra n.° 42, do Camaxilo, uma experiência difícil e marcante que não irei esquecer tão depressa.

Por:









Agradecemos ao Sr. Major Serafim Esteves, nos ter permitido transcrever este texto do seu livro "As Memórias do Major".

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