O dia estava sufocante.
A temperatura oscilava os 42 graus, com uma percentagem
de humidade que afligia os pulmões daquele grupo de homens que avançavam de
nervos tensos através do emaranhado da floresta tropical da Guiné.
Tinha por missão o grupo de “Comandos” fazer a ligação com outro grupo de
combate, o 7 º. Destacamento de Fuzileiros Especiais. Deste grupo fazia parte um
rijo ribatejano “borda de água,” de seu nome António Manuel Vassalo Miranda, com o posto de Furriel Miliciano e que
tinha por incumbência o comando da primeira
secção de assalto e choque. Homem destemido, nunca levara a sério os horrores
da guerra ou se importara com as vicissitudes de uma vida errante, em que se
sabe que se parte para a fogueira mas não se tem a certeza do regresso. Para
ele, morrer e viver era-lhe indiferente.
No mais aceso da refrega reagia friamente: começava por
acender um cigarro, ajeitava o “boné à
legionário”, molhava o polegar na língua e acariciava docemente a G-3; depois ,
era um autentico leão, nem o ribombar das granadas, os silvos das balas os
gritos dos moribundos o desviavam do sua determinação: MATAR.
Arrepiados, os companheiros e até homens sobre o seu comando diziam que o
Furriel era “afilhado de Deus”. No entanto este homem afirmava-se ateu
convicto.
Interpretara a Bíblia a seu modo e não havia argumentos, por mais válidos, que
o fizessem abalar quanto às suas teses. Contestava, blasfemava e ironizava
palavra de DEUS...”Ainda um dia engolirás tudo o que dizes”, ter-lhe-á dito um
amigo, ao que ele retorquía, “Estás louco homem. Como posso eu acreditar em
milagres em pleno século XX”- respondia com tom sarcástico.
Qualquer
doutrina ou acção que revelasse opressão, falta de civismo ou injustiça era
para ele era suficiente para proclamar bem alto todo o seu protesto e houve até
alturas em que entrou em rixas na defesa de oprimidos. Mas este “Cavaleiro
Andante” nunca era molestado pelos organismos que defendiam mais ou menos os opressores.
Inclusivamente numa altura em que a disciplina militar era rígida, ele que, foi
tão bom combatente como mau militar, nunca teve problemas. Nem quando o
sentaram no banco dos réus de onde saiu ilibado de qualquer culpa e com
passagem marcada no primeiro avião da FAP para um bem merecido repouso junto às
margens do seu adorado Tejo.
Que estranho poder parecia olhar para esta alma tão contraditória?
E naquele dia algo sucedeu, terrifico, grandioso. Só ele viveu este
segundo...essa eternidade!
Pelo meio-dia o Grupo de “Comandos” chegou perto de uma clareira onde se
travava renhido combate entre os terroristas e o 7º. Destacamento de Fuzileiros.
Miranda desde a noite anterior que vinha sofrendo de crises palustre. Nessa
manhã durante um desses ataques havia desmaiado. Recusava-se a ser evacuado.
Queria estar presente para acompanhar aqueles que nele confiavam, além disso,
ele tinha sem saber um encontro marcado. E não podia faltar.
À aproximação dos reforços que acudiam aos sitiados
Fuzileiros os inimigos manobraram de forma a deixarem-nos penetrar no círculo.
Porém perante o perigo o espírito combativo do furriel sobrepôs-se às sezões e ei-lo de novo à frente explorando o caminho, atento ao capim partido, ao
avançar tranquilo ou aflito das aves, ao movimento desusado dos macacos, enfim,
indícios que de um verdadeiro guerrilheiro não deve menosprezar, para a
localização de forças inimigas.
O caminho estendia-se sob uma abóbada de vegetação que projectava uma
convidativa sombra fresca para aqueles pobres antes desidratados até aos ossos.
Mas estranhamente no subconsciente do furriel Miranda acudiu-lhe um frio de
morte. Algo lhe dizia que naquele túnel ameaça de mortal o aguardava. Parou.
O
comandante reuniu-se-lhe. O semblante do furriel estava estranhamente sombrio,-
“ porque paramos?” - “Vejo a morte à entrada do túnel, meu alferes”.
-Estranhou o comandante semelhante resposta, vindo de quem vinha.
Não era
natural. “Morte?”- pensou o alferes “Deve ser das sezões. Vou substitui-lo.”
Tentou fazê-lo mas o furriel opôs-se, ele via, mesmo no meio do túnel sombrio,
uma figura negra pesada, duas mãos descarnadas abertas em cruz, e uma caveira
branca de onde saia um sorriso tétrico: por entre os amarelados dentes uma voz
melodiosa sussurrava...”Venham, meus filhos...Venham”.
O ambiente estava
silencioso, denso. Miranda julga ouvir as respirações, não sabia se da morte ou
dos inimigos emboscados ao longo do túnel. Lá no céu dois abutres voavam em
círculo. De súbito algo faz desviar os olhos cansados e doentios do furriel para
um objecto que por uma fracção de segundos brilhou a alguns metros, sobre o
lado direito. O cérebro, até aí paralisado pela febre ou pela estranha imagem
começou a trabalhar. Aproximou-se, era um invólucro de uma “G3”. Pegou-lhe.Ainda
estava quente. Olhou em frente. Mais cápsulas. Segui-lhes o rasto até
desembocar numa clareira.
Não havia dúvidas. Os fuzileiros deviam estar algures do outro lado. Voltou à
picada. Olhou para o túnel. Lá estava a mesma figura, o mesmo mistério.
Transmitiu rapidamente a sua descoberta ao alferes. Todos decidiram sair da
Estrada. Miranda tornou a olhar para o “ fantasma”. Um riso macabro, e a
estranha visão desapareceu “Devo estar louco”!
Quando uma pequena força chegou junto à orla foi decidido atravessa-la. Formando um losango de 15 homens encetaram a travessia.
Ainda não haviam decorridos uns 40 metros quando rebenta a fuzilaria endemoninhada.
Apanhados de surpresa os "Comandos" precipitaram-se em todas as direcções na ânsia de fugirem aquele diluvio de morte. À frente do Furriel Miranda surgiu uma pequena vala que não tinha mais e 30 cm de profundidade. Mergulhou por ela, e decididamente abriu fogo na esperança de poder cobrir a fuga dos seus camaradas. Primeiro os outros, depois ele.
Sendo o único que respondia aos ataques dos terroristas, estes tomaram-no por alvo e concentraram todo o seu fogo sobre ele. Depressa os cinco carregadores se esgotaram. Mais de duas horas ficou para ali perdido. Os companheiros na ânsia de o poderem salvar lançaram fogo rasteiro ao capim que por acção do vento correu célere para ele. Sentindo o crepitar das chamas, voltou a cabeça. A hora de sair do buraco chegara. Olhou novamente para a floresta e sua respiração ficou suspensa. Mesmo no eixo da vala avançava inexoravelmente e arrepiante uma rajada.Sabe-se que é praticamente impossível manter uma longa rajada de arma pesada no enfiamento do cano e esta rajada vinha simetricamente pelo centro da vala, mais de 40 metros. As balas ricocheteavam e explodiam. A valeta era demasiadamente estreita para poder desviar o corpo. As balas aproximavam-se vitoriosas. Iriam cortar a meio o corpo do soldado?
Dez, cinco metros.....Miranda olhava hipnotizado. De repente estendeu os braços como que a defender a cabeça. Contraiu-se e gritou: MEU DEUS , SALVA-ME...MÃEEE
E então perante os olhos cerrados, ouviu uma VOZ em tom inefável : NÃO TENHAS MEDO MEU FILHO.
Uma paz imensa invadiu-o. Descontraiu-se. Abriu os olhos. O suor queimou-os. Reabriu-os olhou em volta. Estava terrivelmente esgotado. A escassos centímetros da sua cabeça a rajada desviara-se e rasgara-lhe o camuflado ao longo do tronco e das pernas. Nem uma única arranhadela. E eram balas explosivas! Ergueu os olhos ao céu. Nunca o céu lhe parecera tão limpo e azul:"Obrigado meu Deus. Eu não to mereci.Só hoje compreendo. Obrigado"
Vassalo Miranda |
Especial agradecimento a Vassalo Miranda em autorizar este relato e na cedência das fotos.
Compilado, redigido e montado por:
Aníbal de Oliveira
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