sexta-feira, 12 de maio de 2017

O COMBATENTE

O dia estava sufocante.
A temperatura oscilava os 42 graus, com uma percentagem de humidade que afligia os pulmões daquele grupo de homens que avançavam de nervos tensos através do emaranhado da floresta tropical da Guiné.

Tinha por missão o grupo de “Comandos” fazer a ligação com outro grupo de combate, o 7 º. Destacamento de Fuzileiros Especiais. Deste grupo fazia parte um rijo ribatejano “borda de água,” de seu nome António Manuel Vassalo Miranda, com o posto de Furriel Miliciano e que tinha por incumbência o comando da primeira secção de assalto e choque. Homem destemido, nunca levara a sério os horrores da guerra ou se importara com as vicissitudes de uma vida errante, em que se sabe que se parte para a fogueira mas não se tem a certeza do regresso. Para ele, morrer e viver era-lhe indiferente.

No mais aceso da refrega reagia friamente: começava por acender um cigarro, ajeitava  o “boné à legionário”, molhava o polegar na língua e acariciava docemente a G-3; depois , era um autentico leão, nem o ribombar das granadas, os silvos das balas os gritos dos moribundos o desviavam do sua determinação: MATAR.
Arrepiados, os companheiros e até homens sobre o seu comando diziam que o Furriel era “afilhado de Deus”. No entanto este homem afirmava-se ateu convicto.
Interpretara a Bíblia a seu modo e não havia argumentos, por mais válidos, que o fizessem abalar quanto às suas teses. Contestava, blasfemava e ironizava palavra de DEUS...”Ainda um dia engolirás tudo o que dizes”, ter-lhe-á dito um amigo, ao que ele retorquía, “Estás louco homem. Como posso eu acreditar em milagres em pleno século XX”- respondia com tom sarcástico.
Qualquer doutrina ou acção que revelasse opressão, falta de civismo ou injustiça era para ele era suficiente para proclamar bem alto todo o seu protesto e houve até alturas em que entrou em rixas na defesa de oprimidos. Mas este “Cavaleiro Andante” nunca era molestado pelos organismos que defendiam mais ou menos os opressores. Inclusivamente numa altura em que a disciplina militar era rígida, ele que, foi tão bom combatente como mau militar, nunca teve problemas. Nem quando o sentaram no banco dos réus de onde saiu ilibado de qualquer culpa e com passagem marcada no primeiro avião da FAP para um bem merecido repouso junto às margens do seu adorado Tejo.

Que estranho poder parecia olhar para esta alma tão contraditória?
E naquele dia algo sucedeu, terrifico, grandioso. Só ele viveu este segundo...essa eternidade!
Pelo meio-dia o Grupo de “Comandos” chegou perto de uma clareira onde se travava renhido combate entre os terroristas e o 7º. Destacamento de Fuzileiros. Miranda desde a noite anterior que vinha sofrendo de crises palustre. Nessa manhã durante um desses ataques havia desmaiado. Recusava-se a ser evacuado. Queria estar presente para acompanhar aqueles que nele confiavam, além disso, ele tinha sem saber um encontro marcado. E não podia faltar.

À aproximação dos reforços que acudiam aos sitiados Fuzileiros os inimigos manobraram de forma a deixarem-nos penetrar no círculo. Porém perante o perigo o espírito combativo do furriel sobrepôs-se às sezões e ei-lo de novo à frente explorando o caminho, atento ao capim partido, ao avançar tranquilo ou aflito das aves, ao movimento desusado dos macacos, enfim, indícios que de um verdadeiro guerrilheiro não deve menosprezar, para a localização de forças inimigas.
O caminho estendia-se sob uma abóbada de vegetação que projectava uma convidativa sombra fresca para aqueles pobres antes desidratados até aos ossos. Mas estranhamente no subconsciente do furriel Miranda acudiu-lhe um frio de morte. Algo lhe dizia que naquele túnel ameaça de mortal o aguardava. Parou.

O comandante reuniu-se-lhe. O semblante do furriel estava estranhamente sombrio,- “ porque paramos?” - “Vejo a morte à entrada do túnel, meu alferes”.
-Estranhou o comandante semelhante resposta, vindo de quem vinha.
Não era natural. “Morte?”- pensou o alferes “Deve ser das sezões. Vou substitui-lo.”

Tentou fazê-lo mas o furriel opôs-se, ele via, mesmo no meio do túnel sombrio, uma figura negra pesada, duas mãos descarnadas abertas em cruz, e uma caveira branca de onde saia um sorriso tétrico: por entre os amarelados dentes uma voz melodiosa sussurrava...”Venham, meus filhos...Venham”.
O ambiente estava silencioso, denso. Miranda julga ouvir as respirações, não sabia se da morte ou dos inimigos emboscados ao longo do túnel. Lá no céu dois abutres voavam em círculo. De súbito algo faz desviar os olhos cansados e doentios do furriel para um objecto que por uma fracção de segundos brilhou a alguns metros, sobre o lado direito. O cérebro, até aí paralisado pela febre ou pela estranha imagem começou a trabalhar. Aproximou-se, era um invólucro de uma “G3”. Pegou-lhe.Ainda estava quente. Olhou em frente. Mais cápsulas. Segui-lhes o rasto até desembocar numa clareira.

Não havia dúvidas. Os fuzileiros deviam estar algures do outro lado. Voltou à picada. Olhou para o túnel. Lá estava a mesma figura, o mesmo mistério. Transmitiu rapidamente a sua descoberta ao alferes. Todos decidiram sair da Estrada. Miranda tornou a olhar para o “ fantasma”. Um riso macabro, e a estranha visão desapareceu “Devo estar louco”!

Quando uma pequena força chegou junto à orla foi decidido atravessa-la. Formando um losango de 15 homens encetaram a travessia.
Ainda não haviam decorridos uns 40 metros quando rebenta a fuzilaria endemoninhada.
Apanhados de surpresa os "Comandos" precipitaram-se em todas as direcções na ânsia de fugirem aquele diluvio de morte. À frente do Furriel Miranda surgiu uma pequena vala que não tinha mais e 30 cm de profundidade. Mergulhou por ela, e decididamente abriu fogo na esperança de poder cobrir a fuga dos seus camaradas. Primeiro os outros, depois ele.

Sendo o único que respondia aos ataques dos terroristas, estes tomaram-no por alvo e concentraram todo o seu  fogo sobre ele. Depressa os cinco carregadores se esgotaram. Mais de duas horas ficou para ali perdido. Os companheiros na ânsia de o poderem salvar lançaram fogo rasteiro ao capim que por acção do vento correu célere para ele. Sentindo o crepitar das chamas, voltou a cabeça. A hora de sair do buraco chegara. Olhou novamente para a floresta e sua respiração ficou suspensa. Mesmo no eixo da vala avançava inexoravelmente  e arrepiante uma rajada.Sabe-se que é praticamente impossível manter uma longa  rajada de arma pesada no enfiamento do cano e esta rajada vinha simetricamente pelo centro da vala, mais de 40 metros. As balas ricocheteavam e explodiam. A valeta era demasiadamente estreita para poder desviar o corpo. As balas aproximavam-se vitoriosas. Iriam cortar a meio o corpo do soldado?

Dez, cinco metros.....Miranda olhava hipnotizado. De repente estendeu os braços como que a defender a cabeça. Contraiu-se e gritou: MEU DEUS , SALVA-ME...MÃEEE

E então perante os olhos cerrados, ouviu uma VOZ em tom inefável : NÃO TENHAS MEDO MEU FILHO.

Uma paz imensa invadiu-o. Descontraiu-se. Abriu os olhos. O suor queimou-os. Reabriu-os olhou em volta. Estava terrivelmente esgotado. A escassos centímetros da sua cabeça a rajada desviara-se e rasgara-lhe o camuflado ao longo do tronco e das pernas. Nem uma única arranhadela. E eram balas explosivas! Ergueu os olhos ao céu. Nunca o céu lhe parecera tão limpo e azul:"Obrigado meu Deus. Eu não to mereci.Só hoje compreendo. Obrigado"

Vassalo Miranda
Por mais estranho que pareça, neste mesmo dia em Vila Franca de Xira, a mãe deste combatente teve a sensação angustiante do milagre que a milhares de quilómetros se havia dado.


Especial agradecimento a Vassalo Miranda em autorizar este relato e na cedência das fotos.







Compilado, redigido e montado por:
Aníbal de Oliveira

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