quinta-feira, 30 de março de 2023

AB4 – A BIBLIOTECA, O BIBLIOTECÁRIO E EU (1ª. Parte)

Em primeiro plano o edifício do Comando onde se localizava a biblioteca


AB4 – HENRIQUE DE CARVALHO
Infelizmente a Força Aérea nunca teve uma tradição de gerir com o mínimo de acerto os meios e os homens que dispunha para o funcionamento de todo o sistema, dava mais importância à quantidade de profissionais, expediente que abre caminho a promoções dos sargentos e oficiais que podem estes atingir em maior número o generalato e com menor idade. 
Nos meios aéreos a velhice era galopante, com a falta de sobresselentes e as grandes avarias. 
A Base de Henrique Carvalho não fugia à regra.
As instalações e infraestruturas eram boas, quer ao nível de camaratas, clubes e messes, enfermaria, hangares, pocilga, aviário, carpintaria, capela, etc.
Os aviões existentes não seriam mais do que 25 dos modelos PV2, Dakota, T6 e DO27 e um Beechcraft, mas que ao nível de prontidão não seriam mais do que 15, distribuídos pela Base principal, Aeródromos de Manobra e Recurso. 
Na secção de que fazia parte MELEC de Aviões e Instrumentos, pertenciam 10 sargentos e 11 cabos especialistas numa área de 25 m 2 com prateleiras, bancadas e uma secretária do chefe.
Não podiam estar todos os elementos nem o trabalho dava para 1/3, situação que dava origem a que os homens estavam na maioria pirados. Nas especialidades de MMA, Abastecimento e outros os exageros eram iguais.
No AR Luso com 8 Alouette III só havia um sargento e um cabo-especialista eletricista.
Na especialidade de Operador de Comunicações os nossos camaradas não eram substituídos a tempo e “lerpavam” de 8 a 12 meses, alguns a experimentar a demência.
Como era tradição haverem louvores, víamos às vezes na ordem do dia elogios que eram uma perfeita mentira, redigidos em termos mais ou menos assim.
Com levado sentido de dever, não regateando esforços no trabalho quotidiano, com a manifesta falta de mais profissionais qualificados, conseguiam com sabedoria resolver as tarefas que lhes foram confiadas.
Com tanto tempo livre, era necessário fazer qualquer coisa para não darmos em malucos, mas alguns ficaram com marcas definitivas. Uns jogavam à bola, outros dormiam de tarde, haviam diversos bares abertos a todas as horas.
Eu optei por ler e para tal era assíduo utilizador da biblioteca. Tive também uma ajuda, do 1º.sargento Mota Chefe de Secção, tinha a família em Luanda e mês a mês deslocava-se à Sexta-Feira até Segunda de fim-de-semana a viajar no Nord Atlas. Por motivos que desconheço, mas talvez pela simpatia e respeito que sentíamos um pelo outro e sabendo que tinha alguém à minha espera na capital, indicava-me para meter o pedido à Quinta-Feira, um procedimento sigiloso que me beneficiou e acabei também por ser um privilegiado, e quando tinha dinheiro ficava mais uma semana na praia.

A BIBLIOTECA
Na Biblioteca os mais utilizadores eram o Simão Cabral, o Raimundo, o Jaime Abi, Eu, Vítor Faria (Pilas), Mendes Martins, Sargento Mota e soldados do SG e PA, não me recordo de ver algum oficial.
A moldura de livros era estupenda, os mesmos eram na maioria novos, havia sempre o cuidado de estar ao corrente das novidades e tivemos até direito a best-sellers.
Da OS nº. 239 de 13/10/1971

Eu já tinha o hábito de leitura, observei os grandes autores portugueses, Fernando Namora, Alves Redol, José Cardoso Pires, Eça de Queiroz e outros. Já conhecia alguma coisa de Hemingway, Scott Fitzgerald, Irving Wallace, Leon Uris.
Quis continuar a saborear a obra de Ernest Hemingway. O Raimundo acabou de ler um livro do William Faulkner que se chamava “O mundo não Perdoa”, acabei por ler também e ficar apaixonado pela escrita deste grande escritor Norte-Americano. Depois seguiu-se John dos Passos, Erskine Caldwell e John Steinbeck.
Apenas por um pequeno apontamento, o nosso "Pilas" só gostava de poesia, recitava Cesário Verde e António Boto. Nós riamos!

O BIBLIOTECÁRIO
Este homem, um soldado do SG, parecia que era o único que trabalhava na base. Abria às 8h30, fechava ao meio-dia, reabria às 14h e fechava às 16h30. Era extremamente simpático e informava-nos das novidades. Ele próprio lia muito, nunca tive a curiosidade de saber de onde era originário. Hoje, passados tantos anos considero que foi uma falha minha já que passados mais de 50 anos ainda me lembro do nome de maior parte dos camaradas e desse homem, de quem era amigo, nem o primeiro nome.

ERNEST HEMINGWAY
Este grande senhor que nasceu nos EUA na cidade de Oak Park, Illinois em 1899 pela sua qualidade, irreverência e espírito aventureiro, tornou-se um cidadão do mundo.

Tomei conhecimento da sua obra quando fiz 18 anos. Uma moça ligeiramente mais velha ofereceu-me um livro, que me iria introduzir na leitura deste famoso escritor. Esse livro chamava-se “O Adeus às Armas” cujo o ambiente se passava na Primeira Guerra Mundial onde o autor era condutor de ambulâncias, em Caporetto (Itália) e teve também os primeiros amores e dissabores com uma enfermeira inglesa que iriam continuar o resto da sua vida, até ao seu suicídio em 1961. A minha amiga natural de Cortegaça já tinha concluído o Curso Geral de Comércio e eu o de Montador Eletricista na conhecida Escola Infante D. Henrique, estava a tirar um curso no Porto de dactilografia para ingressar no mercado de trabalho. Conheci-a no Verão anterior quando estive acampado em Esmoriz.
Li na OTA o segundo livro do Hemngway “Por Quem os Sinos Dobram”. A ação passa-se em 1936/39 na Guerra Civil de Espanha, mais propriamente nas montanhas junto a Miranda Del Ebro. Trata-se do quotidiano de um grupo de guerrilheiros republicanos que perpetravam ataques às tropas nacionalistas comandadas pelos Gen. Mola e Franco. Há um relato de uma emboscada a uma coluna de blindados tripulados por mancebos da mesma aldeia, por si só já é terrível, mas na passagem para o cinema teve outra dimensão. No ecrã é realçado o desempenho de um americano das brigadas internacionais (Gary Cooper) que se apaixona por Maria (Ingrid Bergman) filha de um casal de guerrilheiros que liderava o acampamento, Pilar (Katina Paxinou) e o Pablo (Akim Taniroff) um falso que negociava com os dois lados da guerra.
A classe da obra fez-me sentir que devia conhecer mais.
No AB4 a biblioteca tinha 5 a 6 livros do autor e todos da editora Livros do Brasil. Li “O Velho e o Mar” que só tem 120 páginas, mas que é um espanto pela forma de sentir o prazer da vida do Hemingway. Trata-se de uma pescaria em Havana em que o autor sai da baia e vai num caíque com o seu amigo pescador à procura do merlim. Situa-se ao largo da baía e daí se vê somente muito ao longe as luzes da cidade e entre dois dias e uma noite pescaram um grande peixe, amarraram-no à traseira do barco e com muito custo arrastaram-no até terra. Quando chegaram apenas traziam a cabeça, a parte anterior foi comida pelos tubarões.
Em Cuba com Hemingway


Numa das minhas viagens fui a Cuba, percorri os bares onde o Hemingway deixou a patente das bebidas Daiquiri e Mojito, cocktails de referência em todo o mundo. Estive também no quarto onde dizem que o escritor, já meio senil, passou tempos maus.
Li “As Verdes Colinas de Africa”, não está alinhado com a essência e mensagem do autor, é mais uma viagem a explorar os pensamentos filosóficos dos escritores contemporâneos do autor.
“As Neves do Kilimanjaro” e os “Contos de Nick Adams” tratam das suas andanças e vivências, caça na Africa Oriental, mais propriamente Tanzânia e Quênia.
Como todo o intelectual, tinha um propósito, passar por Paris e viver a vida mundana de Montparnasse e Sacre Coeur a exemplo de Cummings, Picasso, Scott Fitzgerald, Amadeo de Souza-Cardoso e muitos outros que ao longo dessa geração foram cultivar as novidades e correntes das artes, aí escreveu “Fiesta” uma grande referência da sua obra.
Hemingway em Pamplona

A paixão por Espanha foi tão grande que contagiou os habitantes de Pamplona. A largada de touros era uma festa local e passou a ter um eco mundial. Existe uma escultura em bronze na praça principal em tamanho real com 4 touros desgovernados. É obrigatório a visita assim como a largada no dia 5 de Julho, San Fermín que não deixa dormir ninguém na noite anterior para assistir a 7 a 10 minutos de largada. A festa tem uma semana, mas no dia 5 é o ponto alto.
A vida amorosa do meu ídolo foi muito concorrida. Casou 4 vezes e teve inúmeros relacionamentos, escreveu dois livros sobre a sua quarta mulher com quem viveu na Suiça, foi um relacionamento tumultuoso que o autor não queria lembrar nem publicar, mas os herdeiros na procura de dinheiro fizeram-no. Fez-me lembrar um caso idêntico com José Saramago, que haviam obras que o escritor não queria que se divulgasse, mas a viúva a interesseira Pilar, esqueceu-se das vontades do defunto.

Fim da primeira parte.

Por: Toneta


2 comentários:

  1. A verdade é que comparando com o AB4 de 67/68/69, vocês desfrutaram o uso de uma fantástica Estância de Férias.
    Não é inveja, simplesmente não se esqueçam dos alicerces.
    Abraços para todos os que deram um pouco e muito do melhor das nossas vidas.

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  2. Caro Ferreira ( Toneta)!
    Só uma memória de elefante como a tua amigo Toneta, se recordaria destas nossas vivências “ culturais”
    Bons velhos tempos e estás certíssimo!!
    Abraço e sff põe -te bom e depressa!!

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