quinta-feira, 23 de março de 2023

OS PRIMOS (SAAF)


Durante a guerra colonial, em Angola, as partes beligerantes contavam com apoios vizinhos. No Sul, o exército português tinha o apoio quase incondicional da África do Sul, enquanto o MPLA contava com a Zâmbia.
A ajuda sul-africana tinha várias vertentes. Na Neriquinha víamo-la nos rótulos da ração de combate e de forma intensa na participação da sua força aérea, sempre que uma qualquer operação implicasse o envolvimento de helicópteros.
Mesmo não se estando por dentro dos meandros das negociações ou do pedido de apoio, a ideia que ficava é que não olhavam a meios. Sempre que fosse preciso, uma esquadrilha de Alouette III surgia com os aparelhos que fossem considerados necessários. Nós só entrávamos com o combustível. JP1 era coisa que não faltava na Neriquinha, e a logística militar encarregava-se de não descurar o abastecimento.
Chamávamo-los de “os primos”. Da origem do nome não conheço pormenores. Aliás, penso que o baptismo não foi da autoria da 3441. A designação já vinha de trás e era a forma como todos se referiam aos vizinhos do Sul.
- Prá semana temos cá os primos! Dizia-se sempre que se avizinhava uma operação em maior escala ou a ser levada a cabo em zonas mais afastadas e inacessíveis por terra.
Eram sempre bem-vindos. Traziam animação e quebravam a monotonia doentia do ram-ram estupidificante.
Parqueavam na pista, para lá do arame farpado, obrigando a um reforço adicional das sentinelas com mais dois ou três homens posicionados estrategicamente dia e noite, zelando pela segurança dos aparelhos. Fosse quem fosse o escalonado, barafustava sempre.
- Porra! Calha-me sempre a fava!
Para mim eram dias fantásticos. Perdia a noção do tempo seguindo todos os passos da criteriosa e quase religiosa sequência dos cuidados com a manutenção, autênticos mimos que dispensavam àquelas máquinas extraordinárias.
Deliciava-me a tentar entender como funcionavam. Acessoriamente, desenferrujava o mal sabido inglês escolar.
É claro que isso só acontecia quando eu não participava na operação em curso. Nessa altura apenas os via à chegada, durante o voo e à partida. Não acompanhava o frenesim em terra mas, sendo um dos transportados, dava para ver como manobravam aquelas coisas, para além de desfrutar da sensação de um voo que não se assemelhava ao de qualquer avião. Pairava-se no ar, podia-se voar alto ou baixinho e pousar onde se quisesse. Até dava para ir à caça. Já imaginaram caçar de helicópetro? Normalmente apanhavam-se duas peças que se transportavam dependuradas, uma em cada estribo. Assim garantiam o equilíbrio do voo.
A tripulação era sui generis. Embora simpáticos e de certa forma, compinchas, o seu comportamento denunciava os tiques da realidade política da África do Sul onde então vigorava um regime de apartheide com uma segregação racial levada a sério. A facilidade com que os portugueses conviviam com os negros era coisa estranha para o seu entendimento.
- you do like negros! Indeed.
Esta espécie de desprezo racial ficou demonstrada quando, certa noite, após o jantar, na sequência de um quase ritual alcoólico, ofereceram uma cerveja ao rapaz negro que ajudava na messe. O que a princípio parecia simpatia, não era mais do que uma atitude deliberada de o embebedar. Com a ajuda de um funil que lhe colocaram à força na boca, foram despejando cerveja após cerveja, directamente para a garganta do infeliz. Só a nossa intervenção livrou a horrorizada vítima das mãos dos três militares que o seguravam.
- Just Joking. Justificaram-se no meio das risadas.
A relação destes homens com o álcool era uma das suas imagens de marca. Durante todo o dia e enquanto durasse a sua actividade, nunca ingeriam uma simples gota de álcool. Apenas bebiam refrigerantes desde a gasosa à laranjada, mesmo às refeições, o que nos parecia estranho, já que, sendo o vinho, zurrapa, duas cervejas era o mínimo que qualquer um bebia ao almoço, com a devida excepção de um ou outro abstémico. Mas os Sul-Africanos, nem isso. Nem água bebiam. Apenas laranjadas e coisas assim, revelando a disciplina rígida de quem tinha a responsabilidade de pilotar helicópteros ou fazer a sua manutenção.
Mas, ao fim do dia, arrumados os aparelhos, feita a sua criteriosa manutenção, cobertas com lona todas as suas partes sensíveis e concluídas as tarefas de que estavam incumbidos, recolhiam aos balneários, substituam os fatos-de-macaco camuflados por roupa civil e apareciam um após outro na messe. Faziam-se acompanhar invariavelmente por garrafas de um brandy produzido na África do Sul.
O intragável brandy Richelieu deveria ser a sua bebida preferida. Traziam sempre caixas daquilo e bebiam-no desalmadamente.
Aliás, era impressionante a quantidade de álcool que aqueles odres ingeriam no bocado de noite que mediava entre o fim do jantar e a hora de recolher. Numa autêntica bagunça feita orgia alcoólica, bebiam o Richelieu puro ou misturado com cerveja em proporções iguais. Confesso que nunca pensei que se pudesse misturar brandy com cerveja e menos ainda naquelas quantidades.Tinham técnicas eficazes para se embebedarem depressa e bem. Uma delas era a referida mistura. Outra passava por uma espécie de prova de habilidade e concentração onde também alinhávamos. Um grupo, de seis ou sete, sentava-se à roda de um mesa, cada um com uma garrafa de cerveja vazia. O objectivo era passar a garrafa ao seguinte, recolher a que nos era deixada pelo anterior e passá-la de novo ao seguinte, tudo ao ritmo de uma canção sem letra, comandada pelas batidas do fundo da garrafa na mesa. Importava ter atenção ao ritmo e ao facto de, a cada duas passagens de garrafa, não a largar, voltar atrás e depois à frente e só então largá-la para o seguinte. Quem se enganasse teria de beber uma cerveja.
Claro que, quanto mais nos enganávamos, mais se bebia e quanto mais se bebia mais nos enganávamos, num ciclo vicioso de onde só se saía caindo para o lado.
Por volta da meia-noite estavam todos tão bebidos que chegávamos a duvidar que no dia seguinte os helicópteros levantassem. Uns cambaleavam até à cama e outros eram levados pelos mais resistentes. Mas o facto é que se levantavam cedo, frescos, lúcidos e prontos para a tarefa de transportar tropas para os locais da operação, em segurança e com um sentido de responsabilidade e disciplina notáveis, como se nada tivesse acontecido no dia anterior. É que nem falavam nisso.
Na noite seguinte voltavam ao mesmo, repondo o stock de Richelieu e infligindo baixas significativas no nosso stock de cerveja.


Tudo acabava quando, cumprida a missão, carregavam tudo nos helicópteros e voavam em formação rumo a sul, prometendo voltar. Na operação seguinte voltavam. Alguns eram os mesmos, outros não. Contudo o comportamento não se alterava: refrigerantes durante o dia e excesso de álcool à noite. Até as caixas de Richelieu pareciam as mesmas.

Publicada por Egidio Cardoso no Blog Caçadores 3441
http://angola3441.blogspot.com/2009/10/os-primos.html

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