quinta-feira, 16 de julho de 2020

HENRIQUE DE CARVALHO, OS POETAS E PROSADORES


CARLOS ACABADO
Este nosso aviador, apaixonou-se por Henrique de Carvalho, e o Leste de Angola. Fez no total três comissões de 1963 a 1974, pode dizer-se que assistiu ao nascimento do AB4 em 1963 e a entrega da Base ao MPLA. Há um exemplo parecido, foi o saudoso Neto Portugal que fez duas comissões, na primeira teve um acidente no Cazombo e foi salvo de morrer queimado pelo Manuel das Pedras, comerciante transmontano radicado no centro da vila. 
Carlos Acabado foi autor de 5 Livros sobre Henrique de Carvalho, Força Aérea e África, mas vou enunciar somente um, que me pareceu o melhor concebido e espicaça a nostalgia daqueles como nós aprendemos a conhecer e adorar esta terra e estas gentes. 
O livro "Kinda e outras histórias de uma guerra esquecida" é composto por muitas histórias, mas só vou referir três.

A AVÓ DO CABO DINIS
O Cabo Dinis foi um especialista que cedo emoldurou os seus pensamentos com o intuito de servir na FAP. Aos 16 anos informou a avó dos seus propósitos e conseguiu ingressar aos 17 anos na recruta e concluir o curso de Mecânico de Material Aéreo. A avó era a sua tutora já que a mãe tinha falecido quando ele nasceu e por dificuldades várias não lhe proporcionou um curso na Universidade de Coimbra como pretendia quando tomou a cargo a sua educação.
Quando foi mobilizado para Angola a avó escreveu uma carta muito simples, mas sentida ao Comandante da Base, solicitando-lhe a atenção devida á sua tenra idade. 
O Comandante que era de Aveiro teve a curiosidade e o empenho de satisfazer o desejo daquela avó preocupada. Natural como o Dinis da Vila de Cucujães do mesmo distrito, indigitou o Cap. Acabado no sentido de ser o “guarda-sol“ do rapaz.
Depressa o jovem MMA aprendeu o ofício e começou a fazer parte da linha da frente e destacamentos, sendo visível a facilidade de resolver, sem grandes condições pequenas avarias.
Um dia em Gago Coutinho o DORMAN, gerador que fornecia energia elétrica ao AR e Batalhão do Exército avariou, ele e o cabo MELEC, ao tentarem repará-lo provocaram uma explosão, que os deixou com queimaduras graves em todo o corpo.
O médico do Batalhão não tinha meios para qualquer assistência e indicou a evacuação para o Luso, só que era quase noite, preocupado, pois a evacuação não era viável por o DO 27 não estar dotado de meios de navegação noturna, mesmo assim, o Cap. Carlos Acabado e o Ten. Joaquim Cóias arriscaram fazer um voo de quase duas horas para o Luso, contra todas as normas de segurança em vigor, mas por acaso eram os dois pilotos mais referenciados da esquadrilha e estavam no AR.
Ao aterrarem, já noite, na placa do AM-Luso estavam dois médicos do Hospital , que quiseram ver o estado dos feridos, e verificaram que o mesmo era muito mau, tendo recomendado a sua evacuação para o Hospital Militar de Luanda.  
Mais uma vez houve incapacidade de assistir com sucesso aos acidentados. 
Joaquim Cóias e Carlos Acabado
Novamente, o Cap. Acabado e o Ten. Cóias formaram a tripulação e pediram para ser preparado o Beechcraft, bimotor de apoio ao comando da ZML e embarcaram os dois feridos, um médico e um enfermeiro para lhes ministrarem soro e morfina durante o voo. O tempo estimado do voo era de 2:30h, se houvesse bom tempo e ser de dia. Embora este avião de tecnologia  americana e mais evoluído, não estava preparado para romper cumulonimbos, trovoada de granizo ou descargas eléctricas. 
Beechcraft 
Ao passarem ao sul de Malange, na baixa de Cassange,  sentiram as trovoadas ao longe, desviaram a rota e encaminharam o avião para uma aproximação a Luanda vinda do Sul, junto á orla marítima. Sem que contassem, a chuva e o granizo rapidamente fustigaram o avião, causando pânico ao médico e enfermeiro. A torre de Luanda perdeu o contacto com o avião. O ter de contornar a tempestade, originou um gasto suplementar de combustível, só muito perto de Luanda conseguiram ter comunicações e o controle seguro. Quando aterraram, ao serem recebidos na placa pelo oficial dia ao aeródromo, visivelmente satisfeito, o motor esquerdo parou por falta de combustível.
O cabo Dinis e o companheiro foram para o Hospital Militar. O Dinis ainda teve a companhia da avó em Luanda, que  falou com o Cap. Acabado e despediu-se da vida ao fim de um mês. O camarada MELEC foi evacuado para a metrópole…
O Cap. Acabado cumpriu, protegeu-o até ao fim.


SOBA CAXITO
O Sargento Isidro que carinhosamente era conhecido por "Meirim" deixou um legado de competência e camaradagem, que trespassou todos os anos de guerra no Leste, já que comparativamente com o Cap. Carlos Acabado fizeram algumas comissões juntos. Tive a sorte de trabalhar e  confraternizar com ele em Gago Coutinho.
Meirim era chefe dos mecânicos e numa das viagens de Ninda para o Luso com o Cap. Acabado, reparou que a temperatura do motor Lycomming do DO 27 subia perigosamente e tentou o expediente de abrir umas alhetas suplementares de entrada de ar e o abaixamento do regime do motor, mas não foi suficiente, ouviu-se um estrondo e uma nuvem de óleo foi libertada. 
Imediatamente procederam á aterragem de emergência, na xana no meio do nada, sem problemas de maior. A povoação mais perto era Lumege. Depois de verificada a causa da avaria descobriram que tinha rebentado um tubo do circuito de lubrificação. Pensaram que estariam pelo menos três dias retidos, pois o tubo teria de vir do Luso para o Lumege por avião e daí por coluna para a zona acidentada. 
Entretanto começaram a chegar nativos ao avião vindos da mata, que não falavam português, a curiosidade dos autóctones era grande e pelo Soba foram convidados a  visitar a aldeia, o que a medo aceitaram. Entretanto, o Cap. Acabado conseguiu esticar a antena de comunicação e por indicação do Isidro pediu para ser efectuado o lançamento da peça de substituição sobre a zona acidentada, tarefa efectuada por uma DO 27, pois ainda não havia helis no Leste.
Na presença do Soba, cujo nome era Caxito, houve recepção calorosa ficando o mesmo num trono trabalhado ladeado pelas mulheres. O Soba contou com um sobrinho que era o único que sabia português e funcionou como intérprete. Houve batuque, comida e “hidromel“. Numa arca estavam depositados os utensílios gentílicos, uma bandeira portuguesa muito gasta e uma fotografia do régulo com o marechal Craveiro Lopes numa visita deste ao Luso, em 1954. O pessoal dormiu na Sanzala. O Isidro pediu ao Soba para lhe abrirem uma clareira para o avião poder descolar, trabalho que foi feito pelas mulheres, à catanada.
Dormiram na sanzala, e de manhã com a substituição do tubo e o óleo efectuada, mais a improvisação da pista concluída, foi possível levantar voo e saudar aquela boa gente.

Passados dois anos numa missão para ir buscar um prisioneiro do Lumege para o Luso, foi colocado um negro com as mãos atadas na traseira do DO 27, como ele estava dominado não causou preocupações. Depois de levantar voo ouve-se um estrondo provocado pelo encontrão e a abertura da porta basculante que pelo efeito vácuo fica encostada à asa. De imediato o Cap. Acabado olhou para traz e viu uns olhos fixos olharem para ele como a despedir-se do outrora amigo que o não reconheceu antes, e atirou-se para o solo num voo de queda livre. Era o soba Caxito.
O sobrinho do Soba era agora dirigente dum movimento dito de libertação e o Soba Caxito aderiu a novos ares, que não fizeram nada bem aqueles que os aceitaram.
 
KINDA
Esta ultima narrativa, foi a que deu o nome ao livro, considero-a um monumento ao amor, tem um simbolismo que me fez acreditar que as asneiras por maior que elas sejam podem ser suavizadas, mas nunca esquecidas.
Numa operação de comandos, junto do rio Quembo na Luiana, para fazer uma abordagem a uma sanzala onde se sabia que se acoitava o inimigo, os comandos foram designados e transportados até 10kms do objectivo. O Cap. Acabado, foi destacado para orientar os Alouette III e gerir os tempos de desembarque e reembarque. Após os nossos militares serem colocados no solo, comandados por um Capitão amigo de Academia do nosso Cap. Acabado, caminharam toda a noite a pé para lançarem a acção ofensiva ao raiar do dia. Decorria a invasão e ouve-se um tiro único, que não era previsto dado o grau de disciplina de uma  tropa especial. Pouco depois sai da mata o Capitão com uma criança de cerca de dois anos nos braços, com a cabeça ensanguentada.
No rescaldo da missão veio a saber-se que o tiro que o Capitão disparou acertou na mãe do bebé, que caiu redonda no solo com a filha a tira-colo, que embora ensanguentada não teve qualquer ferimento. A mãe a única atitude que fez e que confundiu o Capitão foi movimentar o pilão de moer a fuba, o que ao lusco-fusco da madrugada lhe pareceu uma arma. Soube-se, que a falecida se chamava Kinda e em homenagem á mãe, passou a chamar-se esse nome à bebé.
O Cap. Acabado levou a Kinda para junto da família no sentido de arranjar um tecto de acolhimento, mas com o arrastar do tempo acabou por ser o elemento mais novo da sua família. 
Finda a comissão foi também para a metrópole e foi tratada de igual modo com os “irmãos“. Foi adoptada e foi baptizada com o nome Maria Adelaide, que era derivado do nome da mulher e da mãe. Aos 6 anos perguntou aos pais, porque lhe chamavam escura e o Pai disse-lhe que ela nascera em África e era oriunda de um povo muito antigo chamado Bosquímanos, embora escura era muito mais clara de pele e olhos amendoados. Tinha sido recolhida, porque ela tinha sido única. Mais tarde explicaram-lhe as circunstâncias que rodearam e provocaram a sua vinda de África, ela sentada nos joelhos e afagando-o com meiguice, disse-lhe: eu sabia que eras um homem bom.
A Maria Adelaide cresceu, foi muito boa aluna e com facilidade conseguiu uma Licenciatura. Já na reserva o Major Acabado presenciou a alegria do fim do curso e o concluir desta história real.
A apresentação do livro Kinda foi feita no Porto, em 13 de Março de 2014, na Messe de Oficias na Batalha, na mesma altura foram também conhecidas as obras de outros autores que não tinham nada de Henrique de Carvalho, mas tinham em comum a passagem dos autores por África. A este evento assistiram o Ribeiro da Silva, eu próprio, o  Jorge Patrício, o Adriano Rui, o João Esteves e o A. Neves. Foi patrocinado pela Liga dos Combatentes representado pelo General Xito, o mesmo que promoveu através do organismo a que preside a transladação de corpos de para quedistas falecidos em Guidage-Guiné.
Após o evento, convidamos o Cap. Acabado para jantar connosco no restaurante Girassol, tendo aceite preferiu a nossa companhia á dos outros pensadores. À noite tivemos uma sessão de fados memorial na famosa Livraria Lello com fadistas coimbrões, e o nosso Fernando João um fadista raçudo, que nasceu e sempre viveu no Porto.
Diz-se, mas não vi! Parece, que o Cap. Acabado tem uma fabulosa colecção de arte indígena que não fica atrás da colecção Berardo presente nas caves Aliança, em Sangalhos.

ROCHA MARQUES
(Balada de Henrique de Carvalho)
Este nosso companheiro sargento piloto não passou incólume no AB4 a leste de Angola, a sua irreverência e dinamismo, chegou a todos nós com uma mensagem meiga e perseverante.
Esteve no Leste nos últimos anos da década de 60 muito antes do AB4 ter atingido o máximo de efervescência humana, com a esquadrilha dos PV2 deslocados em definitivo em 1971 e trouxe tanto pessoal adstrito que praticamente dobrou os efectivos da Base. Rocha Marques em ambiente mais calmo e nostálgico produziu poemas que o expoente máximo deu a balada nossa conhecida.
Como é sabido pouco depois de acabar a comissão, no Leste de Angola num voo de rotina, despenhou-se numa mata junto do Furadouro já bem perto da BA7 o T6 caiu, roubando a vida ao nosso piloto.
Em Outubro de 2010 um grupo de especialistas liderados pelo Mendanha Arriscado, deslocou-se á sua terra natal, bem no Minho, Ribeira - Terras do Bouro, para contactar a sua família no sentido de preparar uma pequena homenagem á memória de um homem que nos dizia tanto.
Falamos com um irmão, ao tempo coronel do Exército na reserva, piloto civil, advogado e escritor, que nos recebeu na sua casa, e relatou-nos a sua última viagem que recomeçou exactamente naquela vila encravada na serra do Gerês. Depois de sobrevoar a sua casa despediu-se com uma acrobacia área e passados 20 minutos teve a queda que conhecemos.
A família Rocha Marques é uma lenda na advocacia, repartida por Braga e Felgueiras. O irmão advogado, o primo Artur o causídiaco que defendeu a Fátima Felgueiras no processo da Câmara de Felgueiras e o sucateiro de Ovar no processo onde foi condenado Armando Vara.
Uma das razões da visita do grupo constituído por Mendanha, Adriano, Jesus, Toneta e Neves, era de recolher novos elementos, documentos, fotografias, junto da filha do nosso piloto, e o tio seria privilegiado para o conseguir. Nada feito, esta não mostrou interesse e soube-se mais tarde que a mesma era filha de um primeiro relacionamento que não acabou bem. Mesmo assim respeitamos a decisão, mas com esta atitude não beliscou as melhores recordações que temos do pai.

Toneta, Julho 2020




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