quinta-feira, 23 de abril de 2020

POVO QUIÔCO - CONVERSAS COM SÁ MOÇO

Carlos Alberto Santos com Sá Moço

PRELIMINARES

Aqueles que leram o meu trabalho, Tchicapa, o final da viagem, certamente deram conta de algumas críticas e comentários.
Independentemente do juízo feito, procurei ser justo, e evitei a ficção.
Neste segundo trabalho, Conversas, com Sá Moço, elas vão voltar a aparecer, aqui e acolá, sempre sem intenções políticas ou de rancor.
As reflexões, deixo-as a outros mais doutos.
Como no primeiro trabalho, apresento-me tal como sou, com defeitos e a virtude de ser sincero e interessado com quanto se passou na nossa passagem por África, por vezes com desgraçados dias.
Os meus próximos textos, evitando a fixação psico-traumática, vão abordar a singeleza da vida, não esquecendo que sou, somente, um dos muitos militares milicianos que passaram por Angola e que a tais memórias dedica um olhar calmo e enternecido.
Sá Moço
Em consequência, tratarei, a partir de hoje, de rebuscar recordações e conversas com um homem natural da região do Tchicapa, para, ao mesmo tempo que as partilho, lhes devolver alguma da antiga e perdida clareza.
Nas minhas muitas vidas (não de nascimento), entre sonhadas e verdadeiras, nos distantes anos da década de 1970, encontrei o Sá Moço, um homem katchokwe (quiôco) com cerca de 40 anos de idade. Um ser humano, auto-suficiente, que tinha falta de tudo, mas não sentia falta de nada
Recordo-o com admiração.
Sem o ser, era engenheiro, médico, psicólogo, pisteiro, e… na maior das calmas e com muita inocência lá ia dizendo que o IN (inimigo) também precisava de ajuda, quando aparecia na aldeia. Quem, algum dia, foi militar, costuma ser um pródigo contador de histórias, umas ligadas à guerrilha e outras, de coisas mais singelas, no entanto, nos textos que se seguem, vou escrever sobre a vida de um povo que foi importante na minha formação e me transformou num eterno enamorado da natureza e das coisas belas e boas que ela nos proporciona.
Enfim, vou escrever sobre, as minhas vivências com o Sá Moço, a vida no quimbo, as festas, os modos de vida e de figuras típicas que por lá encontrei, das muitas pessoas, boas e interessantes que conheci, e ainda, só um pouco, dos seres francamente racistas, grosseiros, brutos e porcos, que também os havia, e… que hoje, em 2009, à sombra da democracia e aproveitando a ingenuidade de muitos, aparecem, ora disfarçados de rambos ora de defensores da verdade, que lhes convém.
Termino com a seguinte frase: Em Portugal, cada ex-combatente que morre é uma biblioteca que se queima.
Carlos Alberto Santos

Capítulos:
1.-Coisas e sensações do leste de Angola
2.-Formação do povo Quiôco
3.-Contador de histórias
4.-Batuque do Samunge
5.-Mulheres de fogo
6.-Batuque dos Muquixes
7.-Medos e feitiços
8.-A doença
9.-A Mahamba
10.-A morte
11.-O fim do luto
12.-As núpcias
     -A iniciação das raparigas
13.-O nascimento
14.-A poligamia
15.-Adultério
16.-A mulher quiôca
17.-A alimentação
18.-Afrodisíacos
19.-O homem
     -A iniciação dos rapazes
20.-O Pensador
21.-Notas soltas
22.-Sá Moço

1.- COISAS E SENSAÇÕES DO LESTE DE ANGOLA
Foram coisas fantásticas e sensações inesquecíveis, embora algo estranhas!
No seu verdadeiro ambiente, sobre tudo, com muita curiosidade, me envolvi. Tive tempo, para compreender, interpretar, colaborar, e…receber.
Vivendo, quase três anos no Leste de Angola (1972/74), no isolamento e na solidão, longe, muito longe mesmo, da família, dos amigos e das ditas civilizações evoluídas, refugiei-me na observação de tudo e daquele mundo de homens, mulheres e crianças, que sofrem e riem como nós.
Andei pelo mato e por locais onde poucos seres humanos passaram, selva a cem por cento!
Parei em quimbos, atravessei pontes improvisadas, percorri rudimentares picadas e muitos quilómetros a pé por trilhos abertos na floresta.
À luz misteriosa da noite, sob um enorme manto de estrelas, vi danças, homens e graciosas mulheres em batuques desconcertantes, sensuais e cheios de vida, entre costumes estranhos e impenetráveis.
Fui a cerimónias de nascimentos, da iniciação dos jovens, de feiticeiros, às mahambas (cerimónias de espíritos e feiticeiros), falei com os quimbandas (homens que curam doenças), os tai (adivinhadores)… e, guardei tudo o que senti, desde os cheiros às imagens.
Depois de tudo isto, fiquei com impressões inapagáveis, mais rico, mais forte e diferente, um novo homem.
Estávamos no Alto Chicapa, uma região isolada e longínqua com o seu quê de misteriosa, a 10º 56´02. 78” de Latitude Sul e a 19º 08´ 46. 36” de Longitude Este, a 1260 metros de altitude e a cerca de 350 quilómetros da Vila de Henrique de Carvalho, hoje cidade de Saurimo, capital da Lunda Sul, o mais próximo e acessível centro da vida civilizada.
É a terra que me traz à memória momentos gratificantes e pessoas por quem tenho o mais profundo e agradecido respeito!

2.- FORMAÇÃO DO POVO QUIÔCO
Nos anos 70 a história de muitos povos africanos, ou não era conhecida, ou então, não a divulgavam.
Durante a minha passagem pela região do Alto Chicapa, tive a sorte de ouvir um pouco dessa história. A ausência de documentos era evidente e inquestionável, no entanto era sempre possível chegar à transmissão oral, passada de geração em geração, onde a palavra, a honra e a figura dos chefes (muatas) faziam fé.
No final de uns rotineiros cinco dias nas matas da margem direita do rio Cuílo, a que uns chamavam de patrulha e outros de operação militar, convidei o Sá Moço para beber uma cerveja na “loja do Capela”.
É em tempo de guerra que se limpam as armas, era… o que eu costumava dizer, mas por outro lado adorava os momentos de paz e uma boa conversa.
Enquanto as garrafas de cerveja se amontoavam numa mesa improvisada, com alguns convidados de ocasião a aparecerem, uns pela bebida, e não só, e outros para mais tarde relatarem toda a conversa ao Sr. Chefe de Posto, um jovem de borbulhas na cara como eu, ouvia coisas interessantes e os muitos modos de vida, o primo que estava na Jamba e costumava visitar as duas mulheres no quimbo, o sexo que era praticado obrigatoriamente de lado, a quase aceitação do adultério…
Sabia que estava entre um povo tradicionalmente muito reservado, mas era nestes momentos, um bocadinho antes de os olhos ficarem vermelhos, que todos eles se soltavam, nas conversas e… no rancor, se conheciam as suas intenções, o que tinham de bom, as muitas tradições e a imensa história.
Sem estar premeditado, perguntei ao Sá Moço se sabia quem eram os seus antepassados, quiôcos.
- Quiôcos não! Tutchokwe!
Depois de um pequeno silêncio, lá começou por dizer:
- Noutros tempos, o rio Congo (o nosso conhecido rio Zaire) era atravessado por povos vindos das montanhas, umas montanhas geladas, lá para norte, onde há um grande mar (a região dos grandes lagos).
- Os mais velhos também contam que as primeiras tribos a chegarem à Lunda, foram os Bungos, um povo de agricultores, pescadores e caçadores, e os Balubas, um povo errante de caçadores.
- Sá Moço! E o povo que já vivia na Lunda?
- Esses, são os filhos de Nzambi (Deus)!
- Continua! É muito interessante o que estás a contar.
- Então, a tribo dos Bungos, organizada em aldeias de famílias, cada uma com o seu chefe, obedeciam ainda a um chefe superior, o conhecido Xacala.
- Xacala, era um grande chefe! Dizem, que foi espancado pelos filhos! Antes de morrer, pediu a todos os chefes das aldeias para se manterem unidos e formarem um estado, reconhecendo como sua única herdeira e senhora das terras a sua filha Luégi, a quem deixava o Lucano, uma bracelete de braço, símbolo dos grandes chefes de sangue real.
- Luégi, que tudo indicava viesse a casar-se com um dos chefes, encontrou-se um dia com o caçador Ilunga, filho do chefe dos Balubas, com quem veio a casar. Da união nasceu o filho Noeji a quem foi dado o título de chefe Muatchianvua (senhor de todas as terras).
- Após o casamento de Luégi com Ilunga, os Bungos desuniram-se. Criaram-se muitas desordens tribais e aconteceram muitas dissidências.
- Muambumba, primo de Luégi, um dos descontentes, partiu com a sua comitiva para a região do Alto Chicapa, onde, próximo da nascente do rio Cassai, formou e tornou-se chefe de um novo reino, Tchiboco ou Tchokwe (quiôco).
Tudo o que ouvi e aqui contei diz respeito à tradição oral transmitida de geração em geração, tal como as nossas lendas. Como é óbvio, tudo isto é falível e talvez de informações incorrectas, mas foi assim que as ouvi, portanto é assim que as conto.
Ainda me lembro, muito bem, daquele fim de tarde, daquela mesa e ainda, de alguém acrescentar que os antigos eram guerreiros cruéis, dominavam e atacavam as outras tribos, assaltavam e saqueavam os povoados de onde traziam, como espólio, os haveres, e as mulheres e as crianças que reduziam a escravos. Aos homens vencidos cortavam-lhe a cabeça.

3.- CONTADOR DE HISTÓRIAS
Uma das facetas mais curiosas é a que é dada, como no texto anterior, pela chamada literatura oral e o modo como a contam, aqueles que a sabem contar.
É geralmente ao cair da noite, junto a uma fogueira e num jango ou tchota (penso que é este o nome), que se contam as melhores histórias, muitas nunca ouvidas, sobre homens, aventuras, animais, seres… e muita, muita invenção
Quando contam, acompanham toda a narração com mil gestos e trejeitos como se estivesse a acontecer algo. O contador levanta-se, deita-se, salta, grita, emita animais e muitos outros sons.
É uma autêntica representação viva que acaba por envolver todos.
Foi neste jango que ouvi, da boca dos mais idosos, mais uma lenda oral Tchokwe sobre a sua ascendência divina.
Nzambi ou Calunga (Deus), depois de ter criado o Mundo mandou Samuto (homem) e Namuto (mulher) povoar a terra com os seus descendentes.
Entregou a Samuto uma enorme cabaça e um pequeno embrulho, com a recomendação de só os abrirem quando encontrassem uma grande serra.
Desconhecendo os seus sexos, Samuto e Namuto caminharam na Terra até ao Congo, onde encontraram a tal montanha indicada por Nzambi.
Samuto, abriu a cabaça e dela saíram todos os animais que deveriam povoar a Terra. O embrulho como cheirava muito mal lançou-o fora.
Namuto, ao saber o que tinha acontecido ao embrulho, censurou-o e exigiu-lhe que o fosse buscar.
Samuto, depois de várias tentativas, sem sucesso, foi ter com Nzambi, contou-lhe o que tinha acontecido e que estava muito arrependido. Nzambi, disse-lhe que voltasse à Terra, onde tinha deixado Namuto e levasse o cão até ao local onde tinha abandonado o embrulho, e aí o soltasse.
Samuto, assim o fez. Passado pouco tempo o cão apareceu com o embrulho na boca.
Samuto, ao mostrar o embrulho a Namuto, esta manifestou-se muito contente batendo-lhe no baixo-ventre. Como este se queixou com muitas dores, Namuto examinou-o, chegando à conclusão que eram diferentes.
Acabaram por ter uma filha de nome Naconde, a qual veio a unir-se com um homem chamado Cassai, vindo não sei de onde, e cujos cinco filhos e três filhas deram origem aos actuais povos da Lunda.

Adormeci muitas vezes na região Luatamba / Canage, em Angola, ao som dos “tambores” tocados num batuque lá longe, a realizar-se algures. É claro que um batuque é o oposto de uma canção, os seus ritmos são nervosos, um pouco bárbaros e não nos deixam dormir. Ficava a ouvi-los pela noite fora, trazidos pelo vento à mistura com os sons da selva, até que o sono me vencia.
Assisti a alguns, e não é sem uma ponta de saudade que os recordo a todos.
Era uma vez um batuque que se realizava na sanzala de Samunge, perto do Alto Chicapa, e cujo rufar dos tambores me impeliam a ir até lá. Já na tarde anterior eu tinha lá estado, a assistir ao batuque dos mais novos.
Desta vez, era o batuque dos adultos, a noite da Tchisela, um batuque "a sério".
Um batuque, é mais do que uma dança, são cânticos, movimentos e atitudes, que se projectam intensamente em todos os momentos da vida deste povo. Está presente em cerimónias de simples diversão, de magia e em diversos rituais, como a iniciação dos jovens ou o casamento. É pobre, na coreografia das danças e na letra das músicas, mas em contrapartida, há muita vida, um ambiente misterioso, muita sensualidade e intensos momentos de emoção, beleza e alegria.
Sá Moço, com ar de quem sabe, dizia-me para ir até lá, que há muitos mistérios escondidos na noite do batuque, nas fogueiras e na projecção das enormes sombras dos corpos dos dançarinos.
Muito antes de chegar, lá ao longe… Puum, Puum, Puum… no silêncio de uma noite envolta num maravilhoso manto de estrelas, ouviam-se os sons e o eco dos gomas e dos tchinguvos (tambores) a chamarem os convidados.
A chegada foi edílica, e… talvez… assustadora.
Próximo das cubatas, no cercado da festa, ardiam as fogueiras, com fortes labaredas em espadas de fogo, onde se projectavam sombras fantásticas e gigantes agitados. Eram às centenas os vultos esbatidos a dançarem e a tocarem, ou a fumarem em silêncio a sua mutopa (cachimbo).
Os tocadores imprimiam um ritmo frenético aos seus tambores, que aqueciam periodicamente ao fogo, para retesarem ainda mais as peles que vibravam retumbantemente acelerando ainda mais o rodar dos dançarinos no louco rodopio do batuque.
Nada era feito ao acaso.
Ainda recordo as palavras do chefe da aldeia na sua voz forte, a dizer: Esta dança não pode acontecer sem as mulheres. Tudo é permitido, não há maridos nem esposas, unicamente homens e mulheres. Por conseguinte, quem tiver ciúmes que vá para casa ou se deixe ficar com as mulheres junto da fogueira. Deixem as rixas, as inimizades e os maus instintos lá fora, aqui, é só para comer, beber, fumar, dançar e gozar a vida com alegria e bom humor.
Hangane-nu cafema (dançai bem).
Numa grande roda, com homens de um lado e mulheres do outro, dançando e entoando uma monótona canção com um motivo musical que se repete indefinidamente, alternam no centro da roda, alguns homens, que se agitam de uma forma espantosa, e as mulheres, que se desdobram em formas corporais provocantes de movimentos circulares com o desejo a subir, e a crescer sempre.
Noite dentro, apareceram outras dançarinas, muito jovens, esbeltas, de seios firmes, parcialmente cobertas com um pano colorido (quitengue), solto ou preso à cintura, e ornamentadas nos braços e nas pernas com argolas e pulseiras feitas de minúsculas cabaças, produzindo um novo som, numa noite arrepiante, excitante e sensual.
É esse louco rodopiar do batuque que arrasta, uns para os maiores excessos de sensualidade e convida outros a ficarem acocorados junto à fogueira fumando silenciosamente a sua mutopa, sem pensarem no batuque ou até, a ficarem longe do mundo.
Foi, sem dúvida, uma noite vivida, uma daquelas inesquecíveis noites africanas, quentes e banhadas por estrelas como não há igual, de festa rija, misteriosa, ardente e agitada, onde todos, de uma maneira ou de outra, se divertiam.
Apesar de ser um militar conhecido, embora estivesse à civil, ninguém, em momento algum, me hostilizou. Fizeram jus à proverbial hospitalidade africana. Mesmo em tempo de guerra, aquele povo acolheu-me no seu seio de braços abertos e tratou-me exactamente como se fosse um seu membro. Enquanto lá estive, senti-me bem, participante e parte integrante daquela terra, como se tivesse ali nascido ou sempre vivido. Como em muitos outros dias, também nesta noite, senti África, vivi África e fui África.

5.- MULHERES DE FOGO
Em Maio de 1973, depois de um mês de férias no “Putu” (Portugal), o pequeno avião que me transportava da cidade de Luanda para a cidade de Henrique de Carvalho (Saurimo), devido a um valente temporal, foi desviado para a cidade de Silva Porto (Kuito).
Não me lembro muito da cidade.
Sei que pernoitei, sem luxos, no pequeno Hotel Girão, perto da casa de uma família a que chamavam de “Meiaonça”.
Ao jantar, o empregado, que dava apoio ao serviço das mesas, acercou-se de mim e muito baixinho, disse:
- Hoje, é a noite da mulher nua! São 50 angolares, ida e volta!
- Obrigado, mas já vi disso nos bares de Luanda.
- “Cá”! Não é isso, não! Esta é festa na sanzala, da boa, é dança de preto, mesmo!
Efectivamente, numa noite muito escura e carregada de nuvens, fui encontrar um espectáculo raro, curioso e sério.
Chamavam-lhe a dança das mulheres de fogo.
Na sanzala reinava um intrigante silêncio, entrecortado a espaços por vários e misteriosos ruídos, sem origem definida, parecendo os fantasmas errantes do imaginário das mentes de um povo residente na selva.
De um lado, havia tocadores de gomas e tchinguvos (tambores), ágeis e fortes nas suas pancadas, e do outro lado, vários tocadores de quissange (instrumento de palhetas) com sons e melodias muito doces, dim-dom-dim. Ao centro, alguns homens com vozes roucas, em coro forte e ritmado são acompanhados por um coro de vozes femininas.
Mais longe, na selva, num lugar indeterminado, um outro grupo de mulheres, responde entoando sons e cantares parecidos.
Momentaneamente, os tambores começam a tocar muito fortes e apressados… puum, puum… puum, puum, as vozes dos homens tornam-se mais claras e precisas e lá ao fundo na selva no negrume da noite dispara um outro coro de vozes femininas… é tudo empolgante, e, ao mesmo tempo, arrepiante.
Acreditem! Aqui, começa o deslumbramento total.
Surgem chamas e faúlhas de todos os lados, iluminando a noite, e as mulheres até aqui escondidas, aparecem nuas, completamente nuas, envoltas, nos pulsos, nos tornozelos e na cintura, com um material herbáceo a arder e a produzir uma chama azulada.
As atitudes, o fogo, os bailados, os cantares e os sons, dos chocalhos, das argolas, dos gomas, dos tchinguvos e dos quissange, formavam uma beleza rítmica impressionante, ao ponto de até o ar parecer fosforescente e fantasmagórico.
Estávamos ao ar livre a presenciar um cenário natural… e a viver momentos de uma arte maravilhosa com origens muito primitivas.
Porque era tabu, as mulheres de fogo, sempre visíveis, e também ao nosso alcance, não se aproximavam dos homens mas insistiam nos movimentos sensuais e num bailado de um profundo orgasmo, como estivessem a ser possuídas por uma divindade da dança.
Esta dança, admirável, envolvente e tão estranha, em conjunto com o fogo e os sons, glorificava a nudez sem complexos e a criação da vida.

6.- O BATUQUE DOS MUQUIXES
O batuque dos Muquixes era a dança mais exótica do folclore na região do Alto Chicapa (Lunda Sul).
Muquixe, era um mascarado. Vestia-se, cobrindo todo o corpo, com “fatos” feitos de vegetais, de cascas de árvore, tecidos velhos e de cordas. A cabeça e a cara eram tapadas por uma máscara, geralmente muito pouco simpática. Nas mãos agitavam pequenos chicotes, tendo na extremidade pequenas bolas que emitiam sons intimidatórios, como se fossem matracas.
Apareciam no batuque, de uma forma quase sempre inesperada, pulando, agilmente, em deslocações rápidas e de uma forma desengonçada. Os seus bailados, acompanhados de uivos, eram geralmente muito acrobáticos.
Estes batuques, como são feitos de dia, em tardes cheias de sol, são os mais frequentados, pelo muito povo, vindo de todos os lados, de muitos e muitos quilómetros de distância.
As jovens, em maior número, aproveitam o dia para ostentar os seus panos garridos, alguns penteados, os enfeites naturais e dentes imaculadamente brancos. Os panos e algumas missangas, estrategicamente presos à cintura, mostravam um tronco semi-nu, bem torneado, de onde emergiam tensos seios.
Era um dia de festa, ardente e tumultuosa, com cânticos ritmados, batimentos de palmas e danças em grandes rodas.

Os meus apontamentos, da época, ainda me recordam, mais ou menos, isto:
Tchikai mbongo menda (a mulher e o homem andam).
- Coro – Wóhó! Yaya! Ahééé!
Xouyée, makutu (agita o pénis).
- Coro – Yóó hóó yóó hóó
Mu Tchenge… (A mulher bonita…)
- Coro – Heya heya yelé hehe
- Coro – Yéóléé… Há! Hó! Hou! Hewa!

Repentinamente, ouvem-se vozes agitadas e gritos estridentes. Num abrir e fechar de olhos todas as mulheres fogem às gargalhadas, gritando Muquixe!... Muquixe!...
Sempre que um dos bailarinos corre em direcção ao local das jovens, a mesma cena vai-se repetindo várias vezes, Muquixe!... Muquixe!...
Em complemento, Sá Moço dizia-me:
- Em tempos, alguns feiticeiros, aproveitavam-se do traje para espalharem o medo nas pessoas, praticarem violações em caminhos isolados e malefícios no quimbo, durante a noite.
Naqueles anos setenta, pude sentir, que o povo quioco, mesmo continuando a temer, profundamente, os feiticeiros, materializou estas lendas com a figura do Muquixe, que cobria o rosto para que não fosse reconhecido, modificava a voz, com o intuito de não denunciar a sua condição de mascarado, assegurando-lhe uma origem sobrenatural e mágica. Mesmo assim, nutria um grande respeito divertindo-se com eles nas festas, mas não restavam dúvidas que o traje e a própria máscara eram uma fonte inesgotável de emoções e de mistério num evento poderoso na sua vida social e psíquica.

7.- MEDOS E FEITIÇOS
Naquela época (1972/74), os medos e os feitiços ocupavam um lugar de muito destaque na vida do povo e das aldeias (quimbos) ao redor do posto administrativo do Alto Chicapa, no município do Cacolo.
Confesso! Quando hoje penso, naquela carga psíquica, acho, que só serei capaz de escrever simples e despretensiosos apontamentos para temas tão complexos, onde, tantas vezes, me senti incapaz de fazer juízos e compreender muitas das representações e manifestações colectivas.
Era um mundo sobrenatural, cheio de contrastes.
Acreditavam e temiam a um Deus supremo, Nzambi, que rege o mundo e os homens, e, simultaneamente, também aceitavam a existência dos espíritos, quase sempre maus, que andavam perdidos na noite em lugares solitários. Parecia-me tudo tão estranho e de difícil entendimento, mas, sinceramente, era uma fonte inesgotável de emoções e de mistério. Tantas vezes, comparei tudo isto com a crendice do povo das nossas aldeias, nas almas penadas e nas do outro mundo.
Na doença, quando achavam que os espíritos se tinham apoderado do corpo realizavam uma mahamba, uma cerimónia onde parecia estar-se num mundo de magia, cheia de elementos adjuvantes, amuletos, muitas pessoas a assistirem ou a dançarem com a música dos thinguvos e dos gomas e um final… cheio de mistérios, numa possessão assustadora.
Na morte, diziam que o espírito do falecido não ia ficar tranquilo e sossegado além-túmulo, se não lhe fossem feitas as devidas cerimónias festivas, durante uma ou em várias noites, com muita comida e bebida, num longo batuque. Tudo feito, como sendo a condição indispensável à sua dignidade e ao seu sossego. Todos, mesmo todos, acreditavam, que se tal cerimónia não existisse ou não fosse digna, o falecido transformava-se num espírito mau, atormentando a aldeia.
O feiticeiro (tchinganga), manobrando na sombra, sem ninguém o ver ou o conhecer, era muito temido. Achavam-no poderoso, e com capacidades para causar, mesmo à distância, terríveis malefícios aos corpos e aos espíritos. Todos conheciam, muito bem, as formas de actuação, os venenos colocados na água ou na comida e os castigos emanados, à distância, por estatuetas ou forças espirituais. O medo do feitiço determinava a qualidade da vida do povo e levava-os a optarem por um dia-a-dia sem grandes haveres ou desejos e a pensarem, que amanhã podem estar mortos.
Sá Moço, dizia, tantas vezes, o futuro pertence a Nzambi (Deus), aos espíritos e aos feiticeiros.
Quando o questionei sobre estes assuntos, ficou… “cá, cá…” assustado e sem fala.
Mesmo assim, algumas semanas depois, lá consegui ouvi-lo dizer:
- O tchinganga é poderoso! Não se pode andar por aí a falar dele! Se suspeitar que alguém o descobriu troca-lhe o espírito e a personalidade, para nunca mais se lembrar do passado.
- Na aldeia… só mata ou faz adoecer as pessoas más e os assassinos, e… quando a justiça do chefe de posto poupa os malfeitores.
- Eu não sei nada! Os mais velhos é que contam! Durante a lua nova, entre danças e ao som, imperceptível, de um instrumento mágico, reúnem-se todos, debaixo de uma grande árvore, junto da Gruta do Museke (no Alto Chicapa, entre o rio Cuilo e o rio Luchico – estive lá – Latitude 10º 50´ Sul e Longitude 19º 12´ Este).
- O chefe da aldeia, diz: Ninguém deve ter medo do feiticeiro, ele é apenas um ser invisível, com poderes sobrenaturais, a qualquer momento, só castiga os criminosos, os imorais e quem não respeite os costumes.
Enquanto estive no Alto Chicapa, foi fácil perceber que a administração colonial do posto sabia conviver tacitamente com esta crença lendária, talvez por exercer uma acção benéfica e dissuasora contra os assassinos e os malfeitores.
Efectivamente, apesar do medo, ouvia-se nos quimbos: O feiticeiro nunca mata ninguém sem ter um bom motivo, porque até um engano trás o feitiço de volta para liquidar o autor do feitiço ou um elemento da sua família.
No entanto, no meio de toda esta crendice e medo, ainda havia pessoas sem escrúpulos que se aproveitavam da situação para práticas especulativas e abusos em proveito próprio.
Finalmente! Convivi com algumas pessoas, ditas mais cultas, aprovadas em estudos liceais, próximas da cultura europeia, que afirmavam terem deixado de acreditar nestas crenças e até diziam, são “matumbos”, mas… lá no fundo, nunca estavam tranquilos e felizes, acabavam por ficar apáticos e derrotados com o medo do poder dos espíritos e dos feitiços… deixavam de conhecer o amigo e era muito difícil traze-los de novo à realidade.

8.- A DOENÇA
Nenhuma observação simples, como as que fazia nas cerimónias e na manifestação dos costumes do povo quioco, me podia levar ao conhecimento do que têm de mais íntimo e quase impenetrável, o psíquico.
Era fácil observar toda a sua vida material, que até confiantemente punham a descoberto, mas quando se queria perceber a vida psíquica, as dificuldades eram enormes, encobriam os segredos e os mistérios.
Mesmo assim, ainda consegui lidar com uma grande diversidade de elementos ligados aos rituais da medicina.
Aqui, dominavam duas figuras, o Tchimbanda – o homem que cura as doenças do corpo, um curandeiro, uma espécie de fisioterapeuta e o único que conhecia os minerais e as espécies botânicas – e o Taí – o adivinhador -, um homem com muito prestígio entre os do seu quimbo e dos que ficavam próximos.
Quando alguém estava ou se sentia doente, o adivinhador era sempre consultado em primeiro lugar. A consulta começava, quase sempre, num ambiente de segredos e sinais.
De um cesto, chamado de adivinhação, colocado estrategicamente junto do doente, começava por retirar e colocar no chão, com gestos ritmados e misteriosos, um arco de metal a representar a aldeia. Depois, sucessivamente, ia colocando figuras de madeira, que eram o doente e alguma da sua família, patas de galinha, ossos, pedras, moedas… tudo envolto num líquido oleoso e avermelhado.
A verdadeira cerimónia de adivinhação começava com o Taí a invocar os espíritos ancestrais, a soprar num pequeno chifre de cabra, a comer, o que parecia ser comida, e a recitar palavras rituais sobre o que via.
Finalmente, sentenciava o mal.
Se o indivíduo estava com problemas psíquicos, informava a família que era um feitiço, qual o espírito irado, as rezas e os pagamentos a fazer e o que era necessário para a realização da mahamba, uma cerimónia de exorcismo para afastar o mal.
Se a doença era do corpo, então tinha de consultar o Tchimbanda, porque só ele, conhecedor das espécies botânicas, infusões, seivas, raízes, minerais e venenos, o poderia curar.
Em 1972, na região do Luatamba / Canage, vivi, como se costuma dizer, portas meias com um curandeiro, que tinha as duas valências, Taí e Tchimbanda. Embora fosse a pessoa mais importante da comunidade, eu nunca tive uma boa impressão sobre os seus modos de vida, achava-o um parasita, subornável.
Vivia comodamente à custa das crenças, explorava quem lhe caísse nas mãos e em caso de julgados, recebia de ambas as partes. Perante um doente em estado terminal, apresentava-se à família como um salvador. Dizia: - Será tratado, mas todos sabem que já está morto, embora respire.
Em 1974, no Alto Chicapa e nas aldeias próximas, devido ao trabalho desenvolvido pelo grupo de enfermagem da nossa Companhia, a 3485, os adivinhadores já tinham perdido quase toda a sua influência.
Sá Moço, sempre muito atento e temerário, nestas coisas, embora conhecendo melhor do que ninguém a actuação dos nossos enfermeiros e a mais-valia do médico, a nossa presença constante nas aldeias, o uso de um helicóptero para evacuação de doentes graves e os muitos pacientes que se deslocavam diariamente para tratamentos, ao posto de enfermagem do quartel, afirmava: - As doenças são provocadas por feitiços ou por espíritos, nunca são naturais.
Os mais novos, com o êxodo de algumas comunidades rurais para os centros urbanos, questionavam as crendices dos mais velhos e a utilidade de certas manifestações, apresentavam-se como pessoas importantes e copiavam a nossa cultura, embora, muitas vezes, segundo os piores métodos europeus, vadiavam, bebiam muito e viviam na chamada vida fácil.

9.- A MAHAMBA
Em 1972, a mahamba, era, segundo a crença, a cerimónia mais necessária para libertar um doente de um espírito mau, que se tinha alojado no seu corpo para o fazer sofrer, ou matar.
Estas manifestações, anti-espíritos maus, eram, quase sempre, realizadas à noite.
Em redor das fogueiras, sentavam-se o invocador dos espíritos, o chamado homem da mahamba, o doente, a família e o povo que queria assistir. A um canto, estavam os tocadores de gomas e tchinguvos.
Entre manifestações de magia, com sinais de evasão terrena e um forte rufar de tambores, o homem da mahamba tirava de uma cabaça um medicamento, por ele preparado, e sempre ao som de um ribombar estrondoso, com os homens e as mulheres a dançarem numa evocação aos espíritos, o corpo do doente era pintado com o remédio.
A certa altura, entre os cânticos, as danças e as frases rituais do homem da mahamba, o doente levantava-se em estado de convulsão, a tremer da cabeça aos pés, a gritar, a dançar, a gesticular e com os olhos raiados de sangue, a saltarem das orbitas, num autêntico estado de possessão.
A certa altura, o doente, que mais parecia estar em estado de hipnose, diz com voz rouca e forte, como se fosse um outro a falar dentro dele, qual o espírito que o aflige. Imediatamente, alguns familiares, correm para junto dele e sem perderem tempo retiraram-no para um lugar recatado e afastado de toda a cerimónia.
Era um final esperado por todos, menos por mim!
Os restantes acontecimentos, já me foram contados à posterior. Os relatos, sempre medrosos, diziam, que o doente ia continuar com o corpo marcado com as pinturas da mahamba durante alguns dias e, que à porta de sua casa, num suporte próprio, ficava uma panela ou uma cabaça com os remédios e os amuletos que o ajudavam a melhorar.

10.- A MORTE
Na região do Alto Chicapa, entre os anos de 1972 e 1974, a morte era encarada pelo povo como a passagem de um indivíduo a um estado de espírito.
Sem saber o que estava a acontecer e sem estar muito à vontade, assisti a parte de um ritual funerário. Perante o meu pouco à vontade, tranquilizaram-me dizendo que era uma cerimónia necessária para o morto ficar sossegado, além-túmulo.
Quando não o faziam, acreditavam que uma grande inquietação angustiosa se apoderava do espírito do falecido exercendo uma influência nefasta sobre todos, sobre a aldeia e principalmente naqueles a quem competia terem feito a cerimónia, a família.
Consistia, quase sempre, em batuques ruidosos, onde o choro e o carpir andava de mãos dadas com o som dos tchinguvos, com comezainas, mais ou menos fartas conforme as posses e a importância do morto, e… em libações descontroladas, que me assustaram!
Estes rituais, que duravam uma ou duas noites, acabavam no dia do enterro.
Como sempre o fazia noutros casos, confirmei com o Sá Moço alguns dos acontecimentos passados naquela noite. Devido ao meu interesse, acabou por me contar alguns episódios passados com a morte de um Soba, onde era tudo muito complicado, mais demorado e extravagante.
Contou-me, que o falecido ficava em casa durante cinco dias, guardado por vários homens e só ao sexto dia era enterrado. Durante esses dias havia batuques, sem parar, matavam-se cabras, porcos, galinhas e até bois… a cerimónia deveria ser muito digna.
Ao sexto dia, depois do enterro, a sua casa era queimada e alguns dos seus bens eram destruídos. O povo, sempre com muito medo da morte e de um contágio generalizado, mudava-se para um outro local para construir uma nova aldeia.
Uma outra observação, espontânea, extremamente curiosa, aliás, frequente no Sá Moço, quando estava confiante e liberto de medos, referia-se ao costume contado pelos mais velhos, de sepultarem os Sobas com uma das suas mulheres… acreditavam que a vida terrestre se prolongava após a morte e que todo o defunto mantinha a sua situação social ocupada em vida.

11.- O FIM DO LUTO
O chamado luto pesado durava quatro dias.
A viúva, rapava o cabelo, não se lavava e não mudava de roupa. A sua alimentação era feita à base de alimentos crus e água.
Durante um ano, isolava-se, vestia-se com alguns trapos enrolados ao corpo e não podia ter actividade sexual.
Decorrido este tempo, acontecia o chamado rito da purificação, que consistia em ter relações sexuais com um homem estranho à aldeia, para descarregar as suas impurezas. Quando não era possível encontrar um estranho usavam uma mulher mais velha que fazia o papel de macho. Utilizavam um tubérculo de mandioca, preparado para o efeito, numa cópula simulada e realizada junto às margens de um rio. Depois de tomar um banho purificador, a viúva ficava liberta, podendo casar-se novamente.
Depois dos actos purificadores, realizava a cerimónia do fim do luto, junto dos seus familiares e de toda a gente da aldeia. Era um dia cheio de cantares, danças, comidas e muitas bebidas alcoólicas.
Quando era o homem a ficar viúvo, tudo era mais complicado.
Tinha de indemnizar a família da morta e era, sempre, acusado de negligência, de maus tratos e de ser o responsável.
Durante o luto pesado o viúvo dormia fora de casa, não cortava a barba e o cabelo, e andava vestido com panos amarrados à cintura.
A purificação acontecia, de um modo igual ao da viúva. Depois de um ritual sexual com uma mulher estranha ou através da masturbação, banhava-se no rio e bebia uma infusão preparada pelo tahi (adivinho).
Naquela época, o mundo dos quiôcos, era uma sociedade cheia de valores, até na morte. Esta, significava o fim da força vital de um ser humano, e por este ser considerado como um elemento integrante da comunidade, a aldeia sentia-se atingida.

12.- AS NÚPCIAS
Começando pelo fim do texto, um casamento era um acordo entre duas famílias.
Relativamente a este tema o Sá Moço era muito afirmativo, orgulhava-se da sua progenitura e contava-me com alegria: - Quando nasceu o meu primeiro filho mandei reservar uma filha, a nascer, de um casal amigo para que os nossos laços de amizade ficassem mais fortes com o casamento deles. No final da conversa, o Sá Moço ainda acrescentou: - Mulher que não se compra, é prostituta!
Entre os quiôcos, o casamento era polígamo e efectuado através da compra da mulher. Nunca era um acto comercial nem dava o direito ao marido a uma futura venda, era, apenas, o processo de transferência da tutela dos pais, a permissão de coabitação, de gerar descendência, tomar conta do lar e dos filhos, trabalhar nas lavras e ao longo do tempo ganharem consideração e respeito mútuo.
Tudo começava com uma espécie de noivado.
Quando a noiva vivia em casa dos pais o futuro marido fazia-lhe visitas assíduas para que a sua presença futura não fosse a de um estranho. Oferecia prendas à noiva e à família.
Quando, esta, coabitava com o homem prometido passava o tempo a ajudar as outras mulheres, em pequenos trabalhos, e a visitar com regularidade os familiares da sua aldeia, onde ficava algumas semanas. Nestas ocasiões, aconteciam, com naturalidade, algumas ligações amorosas com um qualquer rapaz do seu agrado, sem que isso tivesse alguma importância para o futuro marido.
As núpcias, que começavam a seguir à primeira menstruação da mulher e só depois de o homem ter feito a entrega do valor da compra aos pais, era a cerimónia decorrente da colocação da noiva em casa do marido (podem ler mais detalhes em: A iniciação das raparigas).
A comunidade organizava um cortejo nupcial, com a noiva, os seus familiares e convidados, os familiares do noivo e várias crianças, até à nova residência na aldeia do marido, onde era recebida em festa, pintada com caulino e sentada sobre uma esteira à porta da casa. De seguida, juntavam-se os dois, sobre a esteira, onde se marcavam mutuamente com uma massa branca na fronte e no peito.
A noiva depois declarar, para que todos a ouvissem, que tinha atingido a idade adulta, tocava na perna do marido e iniciava um bailado nupcial, marcando o ritmo com o ondular do corpo, dirigindo-se sempre para dentro de casa.
O toque na perna era interpretado por todos como o reconhecimento do marido, a união no lar e a entrega sexual.
Na primeira noite, em pleno batuque, os noivos ficavam na casa, onde já dormiam juntos.
Como não podiam ter relações sexuais nas duas primeiras noites, faziam-se acompanhar por uma criança para dormir no meio deles.
No dia seguinte comiam uma refeição de frango, sem nunca partirem ou trincarem os ossos, numa representação quase pública em que a devoção, à fecundidade da mulher e ao respeito mútuo do casal, era apoiada e confirmada por todos.
Como não acompanhei de perto estes momentos ou não lhes dei a devida atenção, Sá Moço teve o cuidado de me alertar para a importância deste facto e acrescentou: - Esta é a única vez que marido e mulher comem juntos, daí em diante comem separados. Primeiro o homem e depois a mulher e os filhos, quando os houver. Comer juntos representa ser de descendência comum e estarem em consanguinidade, o que os impede de terem relações sexuais por ser equivalente a uma relação incestuosa.
Na terceira noite, depois de o homem ter prestado culto aos antepassados comuns, colocava uma pena do frango entre os cabelos. Quando a mulher o imitava, estava a dizer-lhe que a partir daquele momento ficava pronta para uma intensa relação sexual, que, com toda a naturalidade, se prolongava por três a quatro dias, sem saírem da casa.
Este casamento, acordado inicialmente por duas famílias amigas, que passava pela fase de compra e pelo conhecimento e respeito mútuo da mulher e do homem, só seria confirmado após o nascimento do primeiro filho.

A INICIAÇÃO DAS RAPARIGAS
Voltando a Maio de 1973, e ao tempo em que o ambiente entre as NT e as populações eram de confiança e de descontracção, lembro-me:
Do momento em que fui convidado para ver a parte final e ficar a conhecer os preparativos da iniciação das raparigas.
Tudo acontece quando a adolescente tem o 1º fluxo menstrual e foge para o mato, embora para perto da aldeia, mas longe da vista dos homens.
Uma das mulheres adultas, a que chamavam de mestra, procura a jovem e leva-a para junto de uma árvore e aí mantêm-na acocorada. Dá-lhe umas raízes a comer e leva-a tapada para a casa das menstruadas, que fica fora da aldeia.
A iniciação dura uma semana, na companhia da mestra e de uma virgem, com quem dorme.
Diziam que, durante esta semana, a mestra ensinava e exemplificava o verdadeiro comportamento nas relações sexuais, a prática dos movimentos ondulatórios da vagina e as técnicas para a obtenção do máximo prazer.
Todas as mulheres que participavam nos ensinamentos, ficavam agarradas umas às outras, tal como homem e mulher.
Cada lição de aprendizagem só terminava quando a aluna e a professora atingiam o orgasmo.
No corpo da iniciada, também são feitos alguns golpes transversais, acima da púbis, nas costas, cintura e rins. Estas linhas, têm finalidades eróticas, excitantes e indicam onde o homem deve colocar a mão esquerda durante o acto sexual.
Logo que termina o fluxo menstrual, a iniciada é lavada e levada para casa da família ou do marido, onde a pintam toda de branco, e lhe dão um novo nome.
É nesta altura que passa a dormir com o marido, mas só na terceira noite lhe é permitido ter relações sexuais.
Enfim, independentemente da anterior vida da jovem, com ou sem relações sexuais, o que contava para a mulher era o dia do 1º fluxo menstrual e era a partir daí que acontecia a verdadeira vida de casada.

13.- O NASCIMENTO
O homem e a mulher só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade, os filhos eram o principal alvo.
Quando a mulher engravidava, toda a sua vida se alterava. Era envolvida por muitos cuidados, como o repouso e o fim do trabalho nas lavras. Às refeições, passava a ingerir seivas fortificantes e mastigava raízes anti-vermes.
No início da gravidez, consultava o adivinho (taí) para saber quais as cerimónias e os amuletos protectores que eram necessários para o bom desenvolvimento e saúde do feto e… ficar longe de feitiços e maus-olhados.
As relações sexuais e os contactos com os homens também eram suspensos.
Afirmavam, que, durante a gravidez, a mãe não podia comer certos alimentos, como, entre outros, a carne de porco, senão o filho nasceria com a cara em formato de porco.
No último mês da gestação a mulher mudava-se para uma casa mais pequena, mais rudimentar, ou para a cozinha onde ia ter a criança.
Devido a medos, a uma deficiente gestação ou outros motivos que nunca cheguei a perceber, havia casos, em que as mulheres iam ter o filho, completamente sozinhas, fora da aldeia, em plena mata, e apenas encostadas ou agarradas a uma árvore. Lidei, acidentalmente, com uma situação destas, na orla da pista de aviação do Alto Chicapa, onde o gemido de uma mulher e o choro de uma criança me atraíram.
Não sabia o que estava a acontecer, mas era algo diferente.
Com alguma irresponsabilidade, e totalmente desprotegido, aproximei-me.
Felizmente, era uma criança a acabar de nascer bem e uma super mãe a fazer todo o trabalho, parto e pós parto.
A minha acção foi paupérrima e, acima de tudo, envergonhada, mas aquela mãe só me deu liberdade para chamar a primeira mulher, que visse na aldeia dos GEs.
Quando os partos ficavam muito difíceis e eram assistidos por uma mulher mais velha (uma espécie de parteira), esta introduzia na vagina da parturiente folhas de uma árvore, para ajudar à dilatação, e ao mesmo tempo ia-lhe perguntando os nomes dos homens com quem tinha tido relações sexuais, além do marido, e insistia sempre para que não ficasse nenhum esquecido .
A seguir ao parto, a mulher bebia uma infusão de folhas com propriedades cicatrizantes, fazia lavagens vaginais com a água de folhas de mandioca e tomava vários banhos frios no rio.
Sobre o leite materno, foi-me contado: Quando uma mãe não tinha ou lhe faltava o leite, a criança era alimentada por uma outra mulher da família ou da aldeia com filhos latentes e se isto não fosse possível, uma das outras mulheres do marido ingeria umas raízes, que em dois dias lhe provocava o aparecimento de leite.
Era engraçado ver estas crianças a acompanharem a mãe para todo o lado e em todos os trabalhos, repousando sobre as suas costas com os seios sempre à sua disposição, logo que o desejavam.
A mulher revia-se nos filhos, sempre com um acompanhamento e carinho inigualável desde o berço até à sua vida de adulto, num círculo inquestionável, que nenhuma vicissitude podia romper.
Os valores familiares deste mundo quioco eram muito fortes, só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade!

14.- POLIGAMIA
Naquela época e na região da Lunda era normal a pluralidade de uniões, em família, de um homem com várias mulheres, onde os mais novos tinham três ou quatro, e os mais velhos, e alguns sobas, chegavam aos dezasseis casamentos.
Tive a sorte e o privilégio de conhecer um desses homens, “chefe” de uma grande família e de uma vasta prole, uma autêntica comunidade. Tinha uma idade avançada, era sábio e estava sempre sorridente. Vivia feliz, de uma forma imparável e jovial, parecia ser detentor de um segredo. Era apaparicado, pelas várias mulheres muito jovens, mesmo muito! Dizia sempre a sorrir: - Nenhuma tem razão de queixa!
Só por curiosidade, mas em sentido oposto, na região do Luatamba, Moxico, havia alguns casos de poliandria em que uma mulher vivia casada com dois ou três homens. Embora nunca tivesse contactado, de perto, com uma comunidade deste tipo, contavam que o primeiro marido era quem detinha todos os privilégios e direitos, e era, sempre, considerado o pai legal de todos os filhos.
Voltando à Lunda. A poligamia era o sistema familiar usual, onde, fosse qual fosse o número de mulheres do polígamo, havia, entre elas, uma, que era a preferida e mais confidente, a principal (muári), que usufruía um tratamento especial na gestão do lar, na vida do marido e no que vestia. As outras, as raparigas (tusula), eram tratadas em pé de igualdade nas relações sexuais, em parte do vestuário, nos trabalhos domésticos e nas lavras.
Dos, diversos, contactos, que tive ao longo de dois anos e meio de permanência, na região, percebi que a poligamia, não era só o sexo e os filhos, era o poder económico desenvolvido por cada uma das mulheres, era a aliança entre famílias e era a posição social do homem na comunidade.
Durante uma patrulha militar, no final de um dia, entrei em diálogo com o meu bom amigo e guia Sá Moço. Estava, numa prefeita contemplação do horizonte e perdido no tempo, a mascar raízes.
- Então Sá Moço, estás a comer raízes?
- Sim! É, só, remédio, para dar força! As mulheres esperam-me!
- Todas?
- Sim, todas! As mulheres são ciumentas e não se podem alterar ou adiar as visitas conjugais. Todas pedem para ser contempladas, de igual modo, com força, com as regras acordadas e com uma duração de quatro dias.
- E… quando o homem não pode, por doença ou está velho?
- Quando o homem está doente, a mulher, pelo casamento, está obrigada de fidelidade ao marido.
- Mas… quando não pode, mesmo… por ser velho?
- Que há-de fazer uma mulher nova, a quem a família entregou a um marido idoso com mais mulheres, filhas da mesma idade e, muitas vezes, já incapacitado de cumprir os seus deveres de progenitor?

15.- O ADULTÉRIO
O quioco atribuía à infidelidade da mulher, o termo sedução.
O adultério, em certas condições, até era bem tolerado, porque era, muitas vezes, o próprio marido que contribuía para a mulher se tornar adúltera, não só por algum abandono declarado mas também pelo proveito material que podia tirar disso.
Havia casos, em que homens idosos, rodeados por várias mulheres, duas ou três muito novas, longe de serem a figura do marido ultrajado, aproveitavam-se da situação para aumentarem os seus proveitos, naturalmente, oriundo, delas seduzirem ou deixarem-se seduzir.
Noutros casos, o desejo de descendência era tão grande que o próprio marido consentia o adultério e muitas vezes com um homem indicado por ele. Este, porém, não tinha qualquer direito sobre a mulher e nem estava obrigado a entregar qualquer contribuição material.
Na região do Alto Chicapa, para além de um ou outro caso sazonal vindo de fora, não havia comércio sexual, como em Luanda ou em Henrique de Carvalho, havia sim a tal sedução ou até, talvez, um favor recebido sem pagamento predefinido, onde, no fim, entre sensatos, nunca deveria ficar esquecida a troca material pela utilização do corpo da mulher ou… até do homem.
A sedução era frequente e quase sempre banalizada, mas não se pense que a moralidade estava ausente, pelo contrário haviam muitos valores de vida, impossíveis de ser avaliados à luz do pensamento e da mentalidade europeia.
Nos casos mais complicados, que eram raros, o adultério era encarado como um roubo, e, como tal, o ladrão tinha de indemnizar o roubado com um pagamento em dinheiro, gado ou outros utensílios.

16.- A MULHER QUIÔCA
Pelo seu trabalho em casa e nas lavras, e pela maternidade, a mulher assumia uma função económica e social abrangente. Cabiam-lhe as tarefas mais árduas e uma posição importante na comunidade, qualificada e não deprimente, e nunca inferior à do marido como se poderia pensar inicialmente.
Era desde tenra idade que o seu casamento era ajustado. Durante a fase da infância, a sua educação processava-se no convívio da família. Na adolescência, já muito independente, em tudo, gozava de uma ampla liberdade sexual, concedendo os seus favores a quem lhe agradava. Depois, durante o noivado, tornava-se exigente na forma e na frequência das visitas, e como desejava ser presenteada pelo homem que será o seu futuro marido, caso contrário era esquecido.
Quando chega a primeira menstruação, retira-se para a casa das raparigas menstruadas onde aprende tudo o que uma mulher deveria saber.
Do momento em que fui convidado para ver a parte final e ficar a conhecer os preparativos da iniciação das raparigas.
Tudo acontece quando a adolescente tem o 1º fluxo menstrual e foge para o mato, embora para perto da aldeia, mas longe da vista dos homens.
Uma das mulheres adultas, a que chamavam de mestra, procura a jovem e leva-a para junto de uma árvore e aí mantêm-na acocorada. Dá-lhe umas raízes a comer e leva-a tapada para a casa das menstruadas, que fica fora da aldeia.
A iniciação dura uma semana, na companhia da mestra e de uma virgem, com quem dorme.
Diziam que, durante esta semana, a mestra ensinava e exemplificava o verdadeiro comportamento nas relações sexuais, a prática dos movimentos ondulatórios da vagina e as técnicas para a obtenção do máximo prazer.
Todas as mulheres que participavam nos ensinamentos, ficavam agarradas umas às outras, tal como homem e mulher.
Cada lição de aprendizagem só terminava quando a aluna e a professora atingiam o orgasmo.
No corpo da iniciada, também são feitos alguns golpes transversais, acima da púbis, nas costas, cintura e rins. Estas linhas, têm finalidades eróticas, excitantes e indicam onde o homem deve colocar a mão esquerda durante o acto sexual.
Logo que termina o fluxo menstrual, a iniciada é lavada e levada para casa da família ou do marido, onde a pintam toda de branco, e lhe dão um novo nome.
É nesta altura que passa a dormir com o marido, mas só na terceira noite lhe é permitido ter relações sexuais.
Enfim, independentemente da anterior vida da jovem, com ou sem relações sexuais, o que contava para a mulher era o dia do 1º fluxo menstrual e era a partir daí que acontecia a verdadeira vida de casada.
Depois de pago o dote de casamento aos pais é colocada em casa do marido, assumindo dai em diante uma posição social importante e legitimada para uma união sexual reprodutiva.
A nova fase da vida da mulher muda completamente, e é feita de inúmeras atribulações, onde até as relações sexuais e os contactos com o marido lhe serão dispensados à vez ou por turnos.
O casamento, que era indissolúvel, podia ser interrompido pela morte, pelos maus tratos ou pela esterilidade da mulher.
Perante a esterilidade feminina, Sá Moço dizia: - Mulher infecunda é mulher moribunda, mas… em muitos casos é o marido, o responsável, que, pelo excesso de mulheres, a idade avançada ou a incapacidade nas suas faculdades, fica inapto para a sua acção procriadora.
Por isso, é frequente, devido ao desejo de maternidade, que prevalece sobre qualquer outro sentimento, arranjar um homem, com ou sem o conhecimento do marido, para lhe dar os filhos desejados.
A mulher era sempre desejada, por dar a vida, e ser a obreira da família e do poder económico, mas também era temida, por na menopausa ter mau humor e a acharem com poderes maléficos, e daí a considerarem, algumas vezes, uma feiticeira.
O quioco atribuía à infidelidade da mulher, o termo sedução.

Numa época e numa região onde a divisão sexual, era em tudo notada, o homem ficava com todos os trabalhos que exigiam uma apreciável força física, a construção da casa, o derrube de árvores, a caça, o auxílio da família, a compra de panos para as mulheres e do vestuário para os filhos. A mulher era responsável por todos os trabalhos domésticos, tratava da casa e dos filhos, ia à água e à lenha, preparava e cozinhava os alimentos, trabalhava nas lavras e ia à pesca.
Era na época das chuvas, com início em Setembro, que a mulher preparava as sementeiras na lavra.
A mandioca, a base da alimentação do povo quioco, era plantada por estacas, três a quatro em cada montículo de terra, com as pontas afastadas. Nos intervalos, em buracos abertos com o calcanhar, semeavam ainda milho e feijão.
Na altura das mondas, do capim, muitas mulheres juntavam-se nas lavras, numa enorme barulheira, para se ajudarem mutuamente.
Para protegerem as culturas dos animais, javalis, macacos e pássaros, erguiam, em redor da plantação, paliçadas de paus e penduravam diversos objectos para produzirem ruídos ao sabor do vento.
Próximo da aldeia, mantinham pequenas sementeiras de amendoim e tabaco.
A agricultura era muito primitiva, não faziam a rotação de culturas e não utilizavam estrumes.
Os instrumentos de trabalho também eram escassos, havia uma pequeno machado / enxada (jimbo), um machado maior para o derrube de árvores e uma catana para o desbaste da mata e a abertura de covas.
A farinha de mandioca era obtida por métodos muito tradicionais.
Desenterravam os tubérculos quando estavam maduros, mas só os necessários;
Eram descascados;
Maceravam-nos no rio durante uns dias para perderem os componentes tóxicos;
Depois, ficavam estendidos ao sol, durante algum tempo, em pequenas esteiras sobre o telhado de colmo das casas;
Depois de cortados aos bocados, eram pisados com um pilão num grande almofariz de madeira (tchino); e
A farinha resultante era peneirada com a ajuda de um cesto tubular.
Depois destas operações, faziam por cozedura o funge, uma papa espessa com água que era constantemente mexida com uma colher de pau de cabo arredondado e terminada em forma de espátula (lerico(?)).
Quando as mulheres tiravam a panela do lume, continuavam a mexer aquela papa durante algum tempo, e era interessante vê-las a manterem a panela sempre segura com os pés.
Com as folhas tenras da mandioca ainda faziam uma espécie de esparregado, que era temperado com óleo de palma e gindungo, acalmavam as mordeduras de abelhas e as feridas da varicela. O pó que restava dos tubérculos depois de torrados servia de calmante e desinfectante para os ferimentos.
As maçarocas do milho, ainda na forma leitosa, eram comidas assadas. O milho depois de maduro era usado para fazerem bebidas, e só raramente era transformado em farinha.
O feijão, sempre cozido e temperado com óleo de palma, também acompanhava o funge.
A batata-doce, que eu tanto apreciava, era assada com a casca.
As frutas silvestres, as bananas maçã, o abacaxi e os maboques (laranjas do mato), os cogumelos, o mel, os ratos do campo, os gafanhotos, as lagartas das plantas e as formigas de asas também faziam parte da alimentação.
Normalmente faziam duas refeições, que eram realizadas quando tinham mais fome (nzala). A da manhã, era a mais simples, constituída por funge ou batata-doce, e a do fim do dia, a principal, era a mais completa.
Sobreviver era preciso, e, acreditem, era mesmo assim a dura lei da vida na selva!
Num alambique muito rudimentar, constituído por uma panela, tapada por metade de uma cabaça, de onde saia um tubo, tipo cano de água, a servir de serpentina e que atravessava um lata cheia de água fria, destilavam milho, mandioca e alguns frutos selvagens, que originavam em conjunto ou em separado uma aguardente a que davam o nome de Catchipembe.
O tabaco, plantado junto da aldeia, era largamente apreciado como rapé e para fumar. A mulher também fumava, usava um cachimbo simples e os homens cachimbos de água (mutopa).
Além do tabaco, cultivavam o muito divulgado cânhamo, que era mais conhecido por maconha ou liamba. Havia algumas plantações isoladas, que eram proibidas pelo posto administrativo, mas em nada eram controladas.
As plantas, que conheci, com a altura de um homem, tinham folhas médias e um pouco rendilhadas, davam flores esverdeadas e um fruto parecido com um grão. O cheiro, incaracterístico, era difícil de se esquecer quando se passava por perto. No final do período vegetativo a planta largava uma cola que era vendida para, noutros locais, a transformarem em haschich.
Localmente limitavam-se a fumar algumas folhas misturadas com tabaco, e só os mais viciados fumavam, a cola, os caules e os frutos triturados com as folhas, até lhe chamavam “Sá Num Zanga” (Senhor de que se gosta e não se consegue esquecer).
Os efeitos eram nefastos e muito tóxicos para a mente, transformando por completo homens ou mulheres.
Para terminar, resta-me uma pequena referência à preparação do fogo. Muitas vezes ainda era feito pelo homem, por fricção de dois pedaços de madeira encostados a uma espécie de lã de casca de árvore, de resto o uso dos fósforos ou do isqueiro a petróleo estavam totalmente generalizados.

Havia muitos afrodisíacos naturais. Utilizavam-nos ao mais pequeno sintoma de fraqueza e, em muitos casos, devido ao excesso de mulheres e a uma alimentação deficiente.
Nos meus apontamentos registei:
A planta Mundundo – Retiravam da entre casca uma espécie de raspas moles de cor avermelhada com as quais faziam infusões. Nós, os europeus chamávamos-lhe o Pau de Cabinda do Leste. A sua acção era tão intensa, que a excitação era capaz de durar toda a noite.
As Cantáridas – Um insecto, que depois de seco era transformado em pó. Quando necessário, era misturado numa bebida ou na comida para provocar uma excitação rápida e intensa.
A planta Mundonda – A acção afrodisíaca era obtida através da seiva e das raízes mastigadas. Era utilizada pelas mulheres, que queriam ter um maior prazer sexual.
A planta Mulolo – As mulheres usavam-na com frequência para receberem e darem mais prazer. A raiz desta planta era usada para friccionar a vagina e ajudar a distender e a dilatar os pequenos lábios e o clítoris.
Sá Moço, sendo, ele, consumidor frequente de afrodisíacos naturais, dizia-me com frequência.
- Tudo o que sirva para estimular o pénis (lukutu), excitar a vagina (sundji) ou provocar prazeres múltiplos, é bom, porque um homem ou uma mulher sem desejo, são cadáveres vivos.

19.- O HOMEM
O homem vivia quotidianamente de uma forma bastante calma. Muita vezes… até deixava transparecer alguma preguiça.
O seu principal objectivo, era ter uma família com o maior número de mulheres. Quantas mais mulheres, mais braços tinha para trabalhar nas lavras e mais prestígio adquiria com o aumento do número de filhos.
Para aumentar a sua riqueza, quando lhe era economicamente viável, casava com uma outra mulher, geralmente, mais nova, que a anterior. Era, assim, do trabalho das mulheres, que obtinha os rendimentos, que lhe permitia casar novamente, ter mais filhos e atingir uma posição social na comunidade.
Depois de atingir um certo estatuto e até o título de muata, mostrava-se, fumava muito, bebia e dava passeios em visita aos amigos e familiares.
Depois de passar ao grupo dos mais velhos, devido à experiencia de vida adquirida e aos saberes e tradições, era solicitado para dar conselhos e intervir como juiz de partes em conflito.
Quando ficava incapacitado, devido à idade, era sempre acompanhado pelos filhos ou pelas mulheres mais novas. Também era durante esta fase da vida, com um conhecimento amplo da comunidade e da vida, que lhe era atribuída, erradamente, praticas de feiticeiro e de ligações a forças sobrenaturais.

A INICIAÇÃO DOS RAPAZES
Voltando a Maio de 1973, e ao tempo em que o ambiente entre as NT e as populações eram de confiança e de descontracção, lembro-me:
Do momento em que fui convidado a participar na festa da iniciação dos rapazes, que com cerca de catorze anos vão para a “mukanda”, onde são submetidos à circuncisão e onde lhes são também ministrados todos os ensinamentos.
Durante alguns dias haverá uma enorme actividade que gira em redor do rapaz / aluno / iniciado, dos pais, do operador, do ajudante, do professor e a aldeia.
No final do serviço, quando o aluno sai, há sempre um pagamento obrigatório, geralmente feito em animais domésticos, bebidas, ou outros bens.
Tudo acontece num cercado redondo com uma única entrada que fica virada para a aldeia, a “tchifwa”. Lá dentro, existe uma pequena palhota destinada à mulher mais idosa da aldeia a quem compete a preparação das refeições para que os circuncidados não emagreçam, não adoeçam ou morram, (diziam que tudo podia correr mal se fossem preparadas por uma mulher de estado impuro, isto é que pudesse ter relações sexuais).
À frente da porta, é plantado, numa pequena cova, uma espécie de arbusto, terminado em forquilha, com duas pontas, uma mais alta que a outra, e a que dão o nome de “mwehe”.
Na véspera da entrada dos rapazes, logo que anoitece, todos os casais da aldeia e outros estranhos vão para dentro do cercado onde acendem varias fogueiras, junto das quais se sentam, dançam, gozam a vida, comem e bebem até mais não poder.
Quando se ouvem imensos sons ensurdecedores acompanhados por batuques, começa a dança da circuncisão, a “tchisela”, a noite propiciatória e licenciosa, como diziam. Era o início de todas as liberdades, onde todas as brincadeiras são permitidas.
Nesta noite, não há casais, não há adultério, apenas homens e mulheres. É a noite dos amantes, em que a todos é permitido divertirem-se com a mulher do próximo.
Para que não haja dúvidas, o chefe da aldeia informa todos que ninguém pode provocar desordens ou estragar a alegria dos outros.
Cada participante tem a liberdade de dançar, agarrar, apertar ou apalpar outro do sexo oposto desde que se sintam mutuamente atraídos. As relações sexuais consentidas, procuradas ou toleradas, nesta noite, são todas praticadas fora do cercado, e só, até ao nascer do dia, quando acaba a dança.
Logo que nasce o sol, o chefe da aldeia, acompanhado de todos, vai rezar aos espíritos dos seus antepassados para que tudo corra bem e livre os circuncidados de toda e qualquer doença, feitiço ou mal.
Depois, os operadores, os seus ajudantes e o “mukiche” (mascarado), vão abrir outra saída no cercado, no lado oposto à única existente, por onde vão sair a fim de procederem ao corte dos prepúcios.
Com os braços prendem-nos, e a cabeça é virada para o lado para não verem a operação, que é feita sem anestesia ou outros cuidados anti-inflamatórios.
Enquanto os iniciados do ano anterior, dançam e cantam, o “mukiche” guarda o local da operação, para evitar que as pessoas alheias profanem o recinto da circuncisão.
Depois de operados, completamente nus, ficam em fila virados para nascente com o pénis a sangrar (não podem olhar para poente e para o local onde foram operados).
Para acalmar a agitação, o medo e a dor dos iniciados, é lhes colocado, na cabeça, um pouco de argila branca bem molhada e para fazer parar o sangue, põem sobre o golpe, um pouco de pó proveniente de plantas.
Por fim, os iniciados dormem três noites ao ar livre junto de uma fogueira, e depois dentro de umas palhotas que construíram.
Ao romper do dia, sentam-se virados para o nascente, assistem ao nascer do Sol e pedem para que lhes dê fecundidade e potência sexual.
A partir da data da circuncisão, passam a ser considerados homens e adquirem um novo nome.

20.- O PENSADOR
Esta imagem, vinda do Alto Chicapa, e que só hoje vos deixo, quase no final dos meus apontamentos, é a de, O Pensador.
É uma bela estatueta Quiôca (Tchokwe), que representa um ancião. Na Lunda, o idoso tinha (ou tem) um estatuto privilegiado, por representar a tradição, a sabedoria, a experiência dada pelos anos e os segredos da vida.
O Pensador, um símbolo emblemático da cultura angolana, com origem numa tradição convencionada, o cesto de adivinhação, onde o adivinhador (Taí) usava, entre vários objectos, pequenas figuras esculpidas em madeira.
As primeiras figuras de O Pensador foram esculpidas no Dundo, por artesãos locais, no ano de 1947, e por iniciativa de alguns colaboradores da Diamang, a então Companhia dos Diamantes da Lunda.


A lua e o sol
A lua era a companheira da noite, do mal, da doença e até da morte. O sol era a luz, o dia, a vida, a saúde e o alimento dos homens na terra.
Por este motivo, as conspirações, os acordos, os ditos, as estórias e as lendas, só eram contadas à luz da lua ou de uma fogueira.

Cidade de Saurimo
Saurimo deriva de Sá Urimbo, um chefe quioco que habitava aquela área onde foi fundada a cidade, também chamada de Henrique de Carvalho em homenagem ao general português
General Henrique de Carvalho e o Muatianvua Sá Madiamba - Foto obtida, em 1973, de um quadro de 1886, existente numa das paredes da Tasca do Mais Velho (restaurante) na povoação do Cacolo / Saurimo.

Sá era título de paternidade dado a todos os homens que eram pais.
Depois da independência de Angola a cidade voltou a ter o seu nome inicial.
Administrador do Alto Chicapa
Chamavam-lhe o Kaputu.

Atitudes
A mão direita era usada para comer, para cumprimentar, oferecer, receber e para todos os actos de rotina, enquanto a mão esquerda era reservada para tocar nos órgãos sexuais e para excitar a mulher antes do acto sexual.
As pinturas brancas no corpo, com que apareciam muitas vezes, eram feitas com caulino (Pemba), significavam o bem, a verdade, a vida e a saúde.
Faziam segredo das atitudes mais intimas, tinham vergonha de gazear ruidosamente ou de satisfazer as suas necessidades fisiológicas se alguém estivesse nas proximidades.
Os homens usavam na cabeça, pequenos pentes de madeira (tissaculo?), alguns com arte e gosto.

Algumas palavras
Lunga           - Homem
Pfwo              - Mulher
Mwana          - Criança
Kanuke         - Moço(a)
Demba         - Galo
Tchari           - Galinha
Zambi           - Deus
Mwalva         - Sol
Kakweji        - Lua
Kai                - Cabra do Mato
Lukutu          - Pénis
Sundji           - Vagina
Meia              - Água
Lwiko            - Colher do pirão
Makoso        - Lagartas comestíveis que viviam na arvore Mukoso
Moyo             - Saudação
Moyo weno  - Saudação com mais respeito
Muata           - Chefe da aldeia
Muatianvua - Nome dado ao imperador do Império da Lunda
Jimbo           - Machado pequeno
Mutopa         - Cachimbo de água

22.- SÁ MOÇO
Eu gostava de falar com ele. Era um homem do Tchicapa que sabia contar coisas fabulosas sobre a guerra entre tribos, dos primeiros espelhos, de princesas raptadas por homem branco, dos revoltosos em 1961 e dos acontecimentos contra os colonos.
Falava-me de pedras com feitiço onde estava gravado o pé da Rainha N’Ginga e dos guerreiros invisíveis que logravam vencer tudo e todos e de tantas coisas que um branco, como eu, vindo de outra civilização, nunca sonhou ser possível.
E, também falava da família e dos seus filhos. – Um é assim, o outro assim, dizia ele, alteando a mão do solo, para me explicar o tamanho dos filhos.
Mas os seus olhos, perdiam vivacidade e todo o entusiasmo quando me falava do chefe de posto (kaputu) e dos cipaios quando faziam as rusgas na aldeia, durante o tempo das colheitas, e obrigavam muitos a ir trabalhar, debaixo do chicote, dos momentos difíceis durante a permanência dos combatentes da FLNA, e… quase chorava.
Depois voltava, a ser o mesmo, a desviar a conversa e explicava-me com todos os detalhes como se vivia no quimbo.
Não lhe conheci qualquer tipo de traição, mas era um teimoso, um negociador a favor dos seus e… apoquentava-se abertamente quando as coisas poderiam correr mal.
Sá Moço, um companheiro na selva, na guerrilha e no dia-a-dia, também foi, nestes textos, uma denúncia frontal para que não adormeçam as memórias e simultaneamente uma afirmação de esperança e confiança na vida.
Alto Chicapa / Angola, uma fonte inesgotável de ensinamentos, de emoções e de mistério.

CONCLUSÃO
Alto Chicapa 1972/74
Jean de La Bruyére disse: “a vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”.
Para mim, a vida deve estar entre o sentir e o pensar, entre a tragédia e a comédia, porque só sentindo uma tragédia, saberemos o que é uma comédia, só estando envolvido entre risos e gargalhadas, saberemos o que é o mais triste dos dramas, só sentir não basta, só pensar é insuficiente…
Foi sem grandes risos ou pensamentos, que vivi durante dois anos e meio, entre 1972 e 1974, num mundo diferente, cheio de mistérios, de valores, de usos e costumes muito primitivos, numa região isolada muito pobre onde se travava uma luta constante com a natureza para a sobrevivência, e onde a mulher, paciente e activa, tomava conta de tudo e tinha tempo para ser fêmea e mãe dedicada.
Num raio de 300 kms residiam apenas meia dúzia de europeus.
Durante aquele tempo, senti, que, em silêncio, o povo sofria… com os fantasmas dos feitiços, com a prepotência dos chicotes dos cipaios, com a ignorância dos colonos a cilindrarem tradições, com os militares a destruírem resistências e com a administração colonial a deslocar estrategicamente as aldeias.
Em 1975, depois da chamada guerra colonial ter terminado, vivíamos uma época em que muitas pessoas se interrogavam sobre o que efectivamente tinham feito os portugueses em África, onde os heróis já tinham caído com o rolar das estátuas, o arrear apressado da nossa bandeira sem uma digna passagem de testemunho, o abandonar de um povo a uma guerra civil e a realidade, ignorada pela revolução dos cravos, Generais Spínola e Costa Gomes incluídos, da aliança secreta anteriormente estabelecida entre Portugal, África do Sul e Rodésia para o plano de defesa para a África Austral denominada Exercício Alcora ou PAPO (em inglês), Organização Permanente de Planeamento Álcora, onde Portugal transferia para a África do Sul a capacidade de dirigir as forças militares para terminar com o “terrorismo”.
Publicar estes textos e o documento Tchicapa, o final da viagem, numa época em que toda a actuação portuguesa era posta em causa, não era tarefa fácil. A corrida política e económica para África e o choque entre grandes potências transcende em muito os temas que escrevi, que são a outra face da realidade, a da verdadeira África, que eu, europeu, gosto.
Prestes a dar por concluída estas breves reflexões, resta-me dizer, que foi tudo projectado para não deixar morrer as nossas memórias, sempre assentes num conjunto de acções e de afectos e sustentadas num passado que naturalmente, importa considerar.

Ao Sá Moço, e a todos, que directa ou indirectamente leram e possibilitaram a apresentação destes textos, obrigado.

Os nossos agradecimentos a Carlos Alberto Santos por nos ter permitido partilhar este seu documento.
Carlos Alberto Santos

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