quinta-feira, 9 de abril de 2020

PÁSCOA SANGRENTA


Antigamente, o dia de Páscoa era passado na aldeia da minha mulher. Era um dia de festa que reunia a família mais chegada.
Nesse dia da visita pascal, o anfitrião recebia o senhor prior à entrada da casa. A campainha soava "canada" acima indicando a proximidade do padre e dos respectivos acompanhantes. Aquela subida era dura, principalmente para quem não estava habituado. A primeira passagem era na loja(adega) para se molhar a boca com um branquinho fresco e descansarem um pouco. À porta da loja, uns cãozitos que os acompanhavam à espera de uma qualquer guloseima, porque, afinal, a Páscoa também era deles.
Após esta breve pausa, os homens, vestidos segundo as regras, subiam ao primeiro andar onde os aguardavam os restantes familiares. Em cima da mesa, de acordo com a tradição, estava um prato com bolos caseiros confeccionados pela senhora Júlia - minha sogra -, um jarro do branquinho caseiro e uma garrafa de vinho do Porto. No outro pires, exposta, uma notita. Era pequena porque as grandes andavam por outras carteiras...Num ápice, ela desapareceu do prato como por encanto, direitinha à sacola da pessoa encarregada de receber o óbolo.
As palavras da ordem, dirigidas à família, as benzeduras do costume e os votos de Festas Felizes. Após isto, lá vão de novo canada abaixo para outras paragens, porque o dia ainda era longo.
Estas eram as Páscoas passadas em absoluta tranquilidade e paz de espírito e harmonia.
Mas o dia de Páscoa que me proponho relatar tem outra realidade. Foi passada bem longe da aldeia, bem longe de outras aldeias!
Vivida por mim, em 1971, Aeródromo 51, Mueda, Planalto dos Macondes, Moçambique.
Aqui, não havia padre nem sineta a tocar e muito menos as benzeduras pascais.
Manhã cedo. Como era domingo de Páscoa, a rapaziada apresentava-se com uma indumentária domingueira, deixando a farda no quarto. Eu vestia uma roupa civil em que pontificava uma camisa com o colarinho semiroto, calças desbotadas comidas pelo tempo e pela ajuda e "carícias" meigas do mainato aquando das suas lavagens...O cenário da ilusão era completado com o par de sapatos de gáspeas também gastinhas...Para dar um toque domingueiro, ouvia-se uma música de Percy Sledge ou uma marrabenta do Rádio Clube de Moçambique para agitar o "capacete".
Era 11 de Abril de 1971. A tranquilidade, naquela manhã, terminou com mais um chamamento para uma missão urgente.
Tratava-se de mais evacuação em que havia feridos graves e também alguns mortos.
Era 11 de Abril de 1971 e, segundo o calendário litúrgico, domingo de Páscoa. Segundo as coordenadas, a evacuação era para o Monte das Oliveiras. Todos os helicópteros que estavam estacionados em Mueda, foram quantos se dirigiram para aquele local. Não houve tempo para mudar de roupa e foi mesmo com a roupita civil que segui. O aparelho a meu cargo, o 9353, era um dos indicados para tal missão. Do piloto que me acompanhava não me recordo. Talvez o Marmota, talvez o Saltitão, ou o Falcão ou o Nipon... Não me recordo. Mas sei que todos eles foram bons pilotos e ainda hoje grandes amigos.
Efeitos de uma mina anti-carro

Descolámos, como sempre, com grande nervosismo e com uma certeza: alguém em sofrimento necessitava de nós. Voávamos alto e em formação larga o que nos dava uma grande amplitude do terreno, proporcionando, ao mesmo tempo, avistar em pleno o objectivo que nos proponhamos.
O local para a aterragem era totalmente diferente dos habituais. Desta vez não havia mata nem picada, mas sim uma estrada de asfalto. Quando nos aproximávamos, a percepção da gravidade de tudo aquilo era indescritível: um unimog transformado em ferros retorcidos, pneus ainda a fumegar e corpos espalhados numa vasta área. Os camaradas vivos faziam o possível por socorrer os feridos e juntar os mortos.
Raimundo noutra evacuação
Ordeiramente fomos aterrando e, com a rapidez que se impunha, fomos colocando os corpos nos aparelhos. A mim coube-me um ferido grave e um corpo já sem vida. Como era hábito em situações análogas e durante os voos, piloto e mecânico mantinham uma conversação que até dava para descontrair. Desta vez, o silêncio era total, só interrompido a espaços com os gritos de dor do ferido grave, que insistentemente pedia água.
Coisa impossível de satisfazer! O outro, queimado de cima a baixo! Na cabine, como o ar entrava pelas frestas do aparelho, pequenos pedaços de pele voavam diante dos nosso olhos. o cheiro adocicado a carne queimada tornava o ar pesado no habitáculo. A alternativa era queimar cigarros atrás de cigarros para atenuar aquele odor!
O voo teve a duração de uma hora e quinze minutos, como consta da caderneta de voo. O destino foi o hospital de Mueda, onde deixei um camarada em grande sofrimento e outro, que, infelizmente, não pôde gozar aquela Páscoa. Posteriormente, tive conhecimento de que aquele acidente fora provocado por uma mina anti-carro reforçada com bomba de avião, colocada pelos guerrilheiros por debaixo do asfalto e comandada à distância.
Se algum dos nossos companheiros do exército pertencente a essa companhia ler este documento, talvez recorde o que foi essa Páscoa Sangrenta.










José Manuel Raimundo - MMA/Índio/Hélis

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