quinta-feira, 27 de junho de 2019

ATERRAGEM NO MILHEIRAL


O Capitão Carlos Acabado, como piloto, foi uma das referências do AB4.
Fazendo várias comissões, conheceu como ninguém Angola e principalmente as terras do leste de Angola, onde também viveu uma série de peripécias e acidentes, bem retratados nos seus livros.
Uma pouco conhecida foi esta, a aterragem no milheiral !
Segundo o Cap. Acabado, certo dia, voando um DO 27, o motor do avião começou a aquecer demasiado e o mecânico Isidro, mais conhecido por "Meirim", que o acompanhava, diagnosticou uma fuga de óleo que os forçou a aterrar de emergência no mato, algures para os lados de Lumege.
Seria o que Deus nosso Senhor quisesse! Escolheram um milheiral com a plantação ainda rasa, a aterragem correu bem e até conseguiram comunicar à base a respectiva localização.
O problema era que estavam no meio de nenhures e naquela altura ainda não havia helicópteros a operarem na região, logo o mais provável seria terem de se aguentar por sua conta e risco durante uns dias até que uma companhia do Exército os fosse resgatar.Não sabendo se estavam em território amigável ou hostil, decidiram afastar-se do avião transportando o kit de sobrevivência, as rações de combate e os cantis da água. 
Foi nessa altura que viram vir ao seu encontro um grupo de locais com ar amistoso e sorridente: representavam o soba local, que convidava os homens do ar a aceitarem a sua hospitalidade na sanzala ali próxima.
Aliviados, os dois sinistrados aceitaram o convite e foram agradavelmente surpreendidos pela hospitalidade do soba Caxito, que era um homem cheio de dignidade e de histórias. Ancião fiel ao regime, ostentava mesmo orgulhosamente uma bandeira portuguesa que lhe tinha sido oferecida pelo anterior Presidente da República Craveiro Lopes num encontro atestado por uma fotografia em que o chefe de Estado posava com o velho soba, na altura bastante mais jovem.Enquanto os recém-chegados trocavam palavras cordiais com o homem grande daquela povoação, as mulheres preparavam com esmero uma refeição de moamba com dendém que seria acompanhada com hidromel que circulava numa cabaça partilhada por todos. Aparentemente em honra dos visitantes, seguiu-se um impressionante batuque pela noite dentro, num terreiro ao ar livre iluminado pelo calor das fogueiras: uma incursão ao que África tem de mais profundo e autêntico.
Para o Cap. Acabado, esta recepção foi uma das experiências mais intensas de sempre. O impacto do bater dos pés no solo e a dança dos corpos ao ritmo frenético dos batuques em aparentes transes que ficaram por explicar (seriam ervas?) emanavam um poder quase hipnótico que a todos embalava, e que se foi esbatendo já altas horas quase sem darem conta, à medida que os dançarinos se iam cansando e recolhendo.
Todos beneficiaram então do contrastante silêncio da noite, e piloto e mecânico compensaram então as emoções do dia num merecido descanso, lado a lado em duas esteiras de verga numa cubata que gentilmente lhes havia sido destinada. 
No dia seguinte, era altura de agir com pragmatismo: a forma mais fácil de saírem dali era aproveitarem o facto de o avião estar incólume, mandarem vir por «encomenda aérea» o material necessário para repararem a avaria, limparem a "pista" para conseguirem descolar e seguirem viagem sem precisarem de esperar por ninguém. 

E assim foi: contactada a base, lá apareceram caídos dos céus uma lata de óleo e um novo tubo. As mulheres da aldeia foram mobilizadas para alisarem a pista e a dupla de homens do ar despediu-se com carinho e amizade daquela gente boa que os tinha recebido de maneira exemplar.

Nota:
As fotos apresentadas não se referem ao incidente relatado.

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