quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

NÃO TE DESPEDES DO RAPAZ ?


-Não te despedes do rapaz?

-Já há muito tempo que ando a despedir-me dele, ouvi em voz morta de angústia.
-Ó homem nem parece teu...
- Mulher, isto é uma vida danada, o outro já na Guiné, agora este de abalada para Angola!
-Foi assim que quiseste, os da D. Ofélia também são gémeos e foi um de cada vez.
-Sim, sim, mas prefiro passar dois anos em sofrimento do que quatro em permanente agonia. Não ia aguentar tanto tempo na incerteza de dias sem sol na alma, nem a falta de notícias durante tantos anos.
-Nossa senhora dos Montes Ermos há-de protegê-los, estou cheia de fé.
-Pois, pois, Nossa Senhora…
Ouvi a porta da rua bater, o som lento das botas a descer as escadas, o ranger do portão que dava para a rua...

-António Júlio, vem comer, as sopas já estão no sítio.
Entrei na cozinha, a malga fumegante com sopas de café com leite eram fiéis ao local, no parapeito da janela da cozinha que dava para a restolha do Calaia. Desde os tempos do liceu que era assim, dali via os lameiros onde, depois das aulas, jogávamos à bola e por lá também passava o caminho para o rio.
Em cima do aparador, o velho rádio dava som a “tu te reconnaitras” na voz da luso-luxemburguesa Anne Marie David, ainda na moda, pela vitória alcançada no festival da eurovisão desse ano.

Vi-o descer a restolha, cana de pesca na mão direita, rosto a contar os passos, em cadência de desalento. Baixou ao lameiro do Lima e parou. Voltou o rosto e olhou para a janela durante alguns minutos. Sabia bem que eu estava lá, não fez qualquer sinal, simplesmente parou para olhar.
Eu sei pai, que não gostavas que te víssemos chorar. Só uma vez o fizeste diante de nós. Lembro-me do comício ,que a oposição ao regime fez em clandestinidade na serração do Martins Novo. Eu estudante, tu um pai cheio de ideais, cantámos o hino nacional e saíram-te umas lágrimas de Pátria e liberdade.
Sei porque saíste sem despedida, sei que não ias à pesca, sei, que quando o combóio partisse de Bragança, já estarias em casa.
Continuou a afastar-se, agora num passo lento carregado de tristeza e emoção, atravessou o lameiro da Joana Dias e perdeu-se na lomba da estrada junto à quinta de Ricafé.
Era tempo de ir para a estação. A mãe acompanhou-me até ao portão de casa banhada em lágrimas. O carteiro, na pessoa do “velho” Conhés tirava da sacola um aerograma.
-Cá está mais um D. Beatriz, vem da Guiné.
A ansiedade apoderou-se de ambos, com a mão trémula abri e comecei a ler.
O Júlio já foi para Angola? - Os da aviação têm uma vida melhor que nós, tudo há-de correr bem com ele!
Irmão, porque não retardaste um pouco mais as tuas notícias!...

(aconteceu há 45 anos)
Jcorredeira
In”fragmentos de memórias”

4 comentários:

  1. Está uma descrição de cinco estrelas. Era assim naquele tempo... as despedidas e a ansiedade dos familiares pelas notícias que tardavam. Parabéns pela narrativa!

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  2. Não vivi estes dramas, felizmente, mas compreendo bem o sofrimento de pai, mãe irmãos namoradas e amigos. Enfim já lá vai.Paz às almas de quem partiu e a saúde possível para os que ficaram. Bela narrativa. Parabéns e um abraço aos camaradas de armas.

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  3. muito bom. Obrigado pela partilha

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  4. Quando "botas"cá para fora com uma colectânea impressa das tuas histórias?
    gil koca

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