AR de Santa Eulália - Norte de Angola
Em finais de Março de 1970 terminei o destacamento de quase cinco meses em Santa Eulália.
Ansioso por regressar a Luanda para beber umas Cucas e dar uns mergulhos na praia da Barracuda, passava os dias atento a qualquer avião que aterrasse pronto para “cravar” uma boleia.
Depois de uma ou duas negas lá apareceu ao terceiro dia, por volta da hora do almoço, um Auster vulgo “Teco-Teco” e assim chamado por ser uma "avioneta" com aspecto muito frágil. Torci o nariz e resolvi não pedir a boleia.
Chegada a hora do almoço fui-me aproximando da messe. O meu nariz não me enganava, nesse dia era frango de churrasco com piri-piri e batata frita. A meio do almoço, Já tinha marchado um naco de frango e estava a preparar-me para abocanhar outro quando reparei que o piloto do Teco também estava noutra mesa a almoçar e em amena cavaqueira com o tenente – de que não consigo recordar o nome - comandante do destacamento. Em dado momento os nossos olhares cruzaram-se e vejo-o com ar sorridente fazer com o polegar o sinal de ok! Correspondi estranhando a atitude, mas como o frango estava cinco estrelas, a coisa passou. Terminado o almoço fui para o bar beber o café e uma aguardente Mosca, muito em voga na altura.
Ainda não tinha acabado de “emborcar” a aguardente, quando se aproxima de mim o piloto com um ar todo prazenteiro e diz-me que o comandante o informara que eu precisava de boleia para Luanda.
Apanhado de surpresa, gaguejei mas lá disse que sim, tendo ele de imediato dito que iria para Luanda daí a pouco e que tinha boleia se quisesse, ressalvando que teríamos primeiro de sobrevoar uma zona junto dos Dembos. para distribuir propaganda da psico e depois teríamos de ir à Fazenda Maria Fernanda fazer a evacuação de um militar do exército que tinha dado um tiro no pé.
Sem querer dar parte de fraco, mas apreensivo - o ar dele não me inspirou confiança - aceitei a boleia e fui buscar o saco. Ia a caminho do posto de rádio – onde dormia e tinha a roupa - quando me segredaram que o piloto era um novato naquelas andanças e que tinha entrado há muito pouco tempo para a FAV (Força Aérea Voluntária) e ao que se sabia aquele era o segundo ou terceiro voo dele. Percebi a sacanagem e mais de pé atrás fiquei, mas especialista que se prezasse não podia ter medo de andar de avião, pensei eu. E lá fui placa fora até ao Teco que nunca me pareceu tão frágil como naquele momento. Ao sentar-me no avião fiquei todo enclinado para trás e só via o céu. Isto porque tinha de ter os pés sobre um monte de propaganda da dita acção psico-social que quase ficava com os joelhos na barriga.
Começámos a rolar na pista para a descolagem e ao passarmos frente à torre de controle vejo a “maltinha” com grande ar de gozo, a acenar-me com lenços e a dizerem-me adeus. Ainda estava a olhar para aquele espectáculo quando o avião descreve abruptamente uma volta apertada à esquerda, a pouca altitude e por pouco não entrámos em perda.
Comecei a olhar desconfiado para o piloto que ia agarrado ao manche como um náufrago a uma bóia de salvação e optei por olhar para o lado e imaginar o que iria fazer quando chegasse a Luanda. Não tive tempo para imaginar o que quer que fosse... No horizonte desenhavam-se umas nuvens negras que pareciam formar um muro inultrapassável. Questionei o piloto se nos íamos meter naquele sarilho ou voltávamos para trás. Respondeu-me que não havia problema que aquilo não era nada!
Assim sendo lá fomos direitos ao “muro” e o que se passou foi indescritível. O avião começou aos solavancos e a andar de lado por força da turbulência e de repente ficou tudo escuro à nossa volta.A chuva tinha uma intensidade tal, que as portas de tela do avião estremeciam dando a impressão que queriam ir para outras paragens, e a água entrava sem pedir licença! A bússola girava estilo ventoinha e o altímetro subia e descia mais parecendo que andávamos na montanha russa...
Não sei quanto tempo demorou a atravessar a tempestade, mas para mim foi uma eternidade. Sei que quando saímos daquelas nuvens negras e começámos a voar por entre farrapos de nuvens, não estávamos muito longe do solo e o piloto estava branco como a cal! Respirei fundo e agradeci a todos os santinhos por ter escapado daquela embrulhada. Mais uns minutos de voo e decidiu-se que era por ali que largaríamos a propaganda.
Outra aventura! Ao largarmos a propaganda os panfletos começaram a bater na cauda e no leme de direcção porque não respeitámos a técnica de enrolá-los uns nos outros, atirando-os depois no sentido da roda, em vez de atirá-los à balda pela janela! Demos com a marosca a tempo e horas senão podíamos ter arranjado uma dor de cabeça... Mas lá nos safámos com mais calafrio menos calafrio e rumámos à fazenda Maria Fernanda onde íamos evacuar o tal soldado.
Na aproximação à pista tão depressa via o morro como via a pista, subíamos e descíamos como se estivéssemos no cimo de uma onda, a dúvida residia em saber se acertaríamos na pista ou no morro! Lá se acertou na pista e fomos aos saltos até o Teco parar. Saltei do Teco para fumar um cigarro e pensar na puta de viagem que me tinha saído na rifa! Ainda não tinha acabado de dar a última passa quando vejo sair dum jeep um soldado a coxear e com ar de quem seguramente não batia bem da bola. Ainda o estava a mirar quando vi tirar do mesmo jeep uma caixa com abacaxis – uns sete ou oito – e pedirem ao piloto se os podia levar pois estaria alguém na placa para os receber, até porque eram para um oficial da BA9. O piloto anuiu contrariado - já começava a ver o Teco muito pesado - e vai de carregar os abacaxis e embarcar o soldado.
Tomei o meu lugar e ao olhar para trás vejo o soldado de olhos esbugalhados, agarrado aos banco do piloto e a tagarelar qualquer coisa entre nós que eu não entendia. Pensei logo para com os meus botões que o tipo era meio doido e se já tinha dado um tiro num pé, também era menino para se agarrar ao pescoço do piloto e “espetar” com o Teco por ali abaixo. Durante a descolagem que nunca mais o era, a ideia não me saía da cabeça e quanto mais altitude o Teco ganhava mais eu me enervava... Às duas por três dei-lhe um berro e disse-lhe para soltar os bancos e encostar-se para trás.
A resposta foi um grunhido mas lá se encostou. O voo foi curto e quando vi o mar respirei fundo pois sabia que estava muito próximo da BA9. Aterrámos sem problemas de maior e o piloto dirigiu o Teco para a placa onde ficavam os DO’s, Auster etc., não muito longe da minha camarata. Não vimos ninguém à nossa espera para receber o soldado nem os abacaxis. O soldado perguntou-me onde era a porta de armas e a coxear seguiu caminho, ficando eu a fazer companhia ao piloto. Passado um bocado virou-se para mim e sugeriu que o melhor era deixar os abacaxis no Teco e ele avisaria o oficial de dia.
Chegado à camarata contei ao Valente (Fred), um OPC de 68 e meu grande amigo, a história dos abacaxis. Logo ali ele aventou a hipótese de lhes darmos a “palmada”.
Depois do jantar fizemos um RVIS – reporte visual – e constatámos que os abacaxis ainda lá estavam à nossa espera.
Fomos para a camarata fazer tempo e passado uma ou duas horas lá fizemos o “golpe de mão”. Carregámos os abacaxis para a sala de ensaio do grupo musical da base, onde o Fred e o Luís Canhão tocavam, e que por sinal se chamava “Os Tecos”.
No dia seguinte comemos os abacaxis como quem come melão às fatias. Não foram precisas muitas horas para ficarmos todos com a boca inchada e bolhas nos lábios. Andei acagaçado durante uns dias porque se constou que um oficial andava a fazer perguntas no Bar de Especialistas, sobre uns abacaxis que tinham desaparecido de dentro de um Auster, mas felizmente ninguém fez muitas ondas e o assunto ficou por ali, encerrando-se deste modo a minha atribulada viagem.
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